O verdadeiro rosto | Entrevista – Jair Raso
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Imagem – Pedro Vale
Após temporada no Teatro Fashion Mall, Maio, antes que você me esqueça continua na capital carioca até julho. O espetáculo tem novas apresentações no Teatro Solar de Botafogo, de 21 de junho a 20 de julho, com sessões às sextas e sábados às 20h.
Helio (Ilvio Amaral), que está acometido pelo Alzheimer, precisa passar um fim de semana na casa do filho Mauro (Mauricio Canguçú), com quem sempre manteve uma relação distante. Mauro tem uma irmã, que é quem cuida de fato do pai, e um irmão que mora longe e nunca aparece. Durante esses dias juntos, enfrentando estranhamentos e revivendo episódios do passado, pai e filho se redescobrem e ressignificam seus afetos e memórias.
Jair Raso, que assina a direção e o texto, é neurocirurgião além de dramaturgo. O conhecimento teórico e prático que possui deu ao diretor a capacidade de navegar pelo tema também no palco, onde pai e filho, interpretados por Ilvio Amaral e Maurício Canguçú, redescobrem seus afetos entre memórias, lapsos e ressentimentos. Para saber um pouco mais sobre o processo de criação, o dramaturgo e diretor Jair Raso conversa com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
O que inspirou você a escrever “Maio, antes que você me esqueça” e abordar o tema do Alzheimer no teatro?
Tenho uma peça que aborda a relação de um filho com sua mãe. Chama-se “Três Mães”. Ela foi escrita e encenada em 2002. Desde então, sempre quis escrever um texto que abordasse a relação de um filho com seu pai. A oportunidade surgiu em 2009, quando Ilvio Amaral e Mauricio Canguçu, dois grandes atores mineiros, me convidaram para escrever um texto para eles, que abordasse a questão do Alzheimer. A diferença de idade entre os dois, me fez pensar que eles poderiam contracenar como pai e filho. O tema proposto, o Alzheimer, faz parte do meu cotidiano como médico. Assim surgiu “Maio, antes que você me esqueça”.
Resolvi abordar duas características da doença: seu início, em que há uma mudança de comportamento sem que o diagnóstico seja nem mesmo cogitado. E, claro, a questão da memória. A doença se manifesta inicialmente com a perda da memória para fatos recentes, mantendo preservada a memória para fatos antigos. Tal como na vida, situações tristes têm seus momentos engraçados. Ilvio e Maurício são ótimos comediantes. Começo o texto como se fosse uma comédia antes de apresentar de forma explícita o conflito do filho com seu pai. A doença crônica adoece a família. Os conflitos já existentes podem ser agravados, como também podem ser resolvidos, criando-se novamente laços de amor e afeto eventualmente perdidos. Penso que “Maio, antes que você me esqueça” é uma peça sobre relacionamento, mais do que uma peça sobre o Alzheimer.
Como sua experiência como neurocirurgião influenciou a criação do texto e a direção da peça?
São trabalhos diferentes tendo como ponto comum a neurociência. No momento de escrever não é possível desligar o médico e ligar o dramaturgo. É tudo misturado. Fragmentos das histórias dos pacientes se misturam com minha própria história, mas meus textos não são biográficos. Na direção teatral, há vários anos utilizo conhecimentos adquiridos no estudo da neurociência para meu trabalho com os atores. Para dar um exemplo, princípios práticos dos mecanismos neurais da memória e da atenção são transformados em exercícios para os atores, durante os ensaios. Exploro muito as descobertas relativamente recentes das funções do hemisfério cerebral direito, buscando estimular a criatividade.
Pode nos contar mais sobre o processo de preparação dos atores Ilvio Amaral e Maurício Canguçú para seus papéis na peça?
Ilvio e Maurício são muito disciplinados. Se entregaram ao processo de criação do espetáculo de maneira intensa e prazerosa. Ensaiamos em plena pandemia. Andrea Raso, minha assistente de direção e eu usando máscaras, enquanto os dois se empenhavam nos exercícios e nas marcações das cenas. Maurício perdeu a mãe, que teve a doença de Alzheimer. O pai de Ilvio, também falecido, tinha Parkinson. Os dois utilizaram muito suas memórias afetivas no processo de criação dos personagens.
Você mencionou que a doença de Alzheimer pode ser uma oportunidade para rever relações de afeto dentro da família. Pode elaborar mais sobre essa perspectiva?
Não só a doença de Alzheimer. Qualquer doença pode retirar o véu que esconde o verdadeiro rosto de cada um de nós. Pense, por exemplo, na figura de um pai austero, encarnando a figura do provedor da família, procurando passar com rigor seus valores para seus filhos, impondo um relacionamento centrado no respeito. É sua forma de manifestar seu amor pela família, pelos filhos. Uma vez doente, esse mesmo pai se transforma, se fragiliza, necessita de cuidados. Cai a armadura, pois ele se transforma num ser humano como outro qualquer. Isso abre caminho para aproximação dos filhos, que passam a ter oportunidade de manifestar seu amor no ato de cuidar.
Como você vê o papel do teatro e das artes em geral na conscientização e educação sobre temas de saúde mental e doenças crônicas?
Busco em meu trabalho unir diversão e pensamento. Acredito no teatro que diverte, emociona e faz pensar. Trazer para o teatro temas como esses é sempre um desafio. Embora reconheça a importância de educar e trazer informações qualificadas, fujo do didatismo. Procuro trazer o homem para o centro do palco e fazer com que seu drama, seus conflitos e sofrimentos possam estimular a empatia e compaixão.