Os fluidos são espírito | Entrevista – rodrigo de odé

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Imagem – MariSer
O livro Elegbára Beat – um comentário épico sobre o poder é fruto dos 20 anos de pesquisa de rodrigo de odé sobre as relações entre capoeira angola, teatro negro, cinema, candomblé e filosofia africana. A dramaturgia vai ser lançada em grande estilo, com dois eventos em locais e datas diferentes, em São Paulo.
Publicado pela Kitabu Editora, o texto parte da diversidade racial negra para refletir sobre as relações de poder no mundo de hoje. O autor estabelece conexões entre o mito de nascimento de Exu Elegbára e algumas tragédias recentes, como o assassinato do Mestre Moa do Katendê, o assassinato de George Floyd, a morte do menino Miguel Otávio e a pandemia de Covid-19.
Para abordar os principais temas e o processo de escrita do livro, o autor rodrigo de odé conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
O livro ‘Elegbára Beat – um comentário épico sobre o poder’ resulta de 20 anos de pesquisa. Quais foram os principais desafios e descobertas ao longo desse extenso período de criação?
Eu me lembro do ano de 1988, quando houve uma forte difusão da reflexão sobre a condição da população negra na sociedade brasileira, em virtude dos 100 anos da abolição. Eu tinha 11 anos de idade e, no dia 13 de maio, me deparei com uma fotografia na capa do Jornal do Brasil. Nessa fotografia, dois policiais militares negros prendiam outros 3 ou 4 homens negros com uma corda amarrada em seus pescoços. Para mim, foi um golpe violentíssimo. Fiquei transtornado, triste, com meus pensamentos acossados pelo desespero e pela revolta.
Constatei naquele momento que eu ainda vivia numa sociedade escravocrata e que pertencia à classe, à família dos escravos. Foi quando comecei a perceber pela primeira vez como o racismo é um sistema de domínio e controle social, político e cultural. Não é apenas uma questão de preconceito e discriminação. Irresistivelmente, desde cedo fui capturado pela rede do racismo, introjetei uma péssima percepção da minha própria negritude e me lembro de me sentir frequentemente perseguido pela vergonha, pelo medo, pela ansiedade e pelo complexo de inferioridade.
Então, um dos principais desafios que precisei enfrentar foi superar essa condição indigna e começar a cultivar o amor próprio, o orgulho e o autocuidado. Transformar a vida em algo desejável. Três coisas surgiram na minha vida, já na idade adulta, que me ajudaram a deslocar meu olhar sobre mim mesmo e a cultivar uma cosmopercepção bem mais saudável: a capoeira angola, a Cia dos Comuns (companhia carioca de teatro negro fundada em 2001) e o candomblé, com toda a força e todos os símbolos da filosofia de vida dos orixás. Até hoje, esses são os principais pilares da minha vida como artista, educador e cidadão.
Elegbára Beat começou a ser escrita num momento esplendoroso de afirmação da minha negritude, enquanto eu elaborava minha tese sobre a filosofia do teatro de nação, conjugando uma produção teórica com a vivência naqueles três pilares. Descobrir a capoeira angola, o teatro negro e a filosofia dos orixás no candomblé foi fundamental e revigorante para mim. Simboliza recondicionamento em diversos sentidos, simboliza a descoberta do meu amor próprio pela afirmação da minha negritude. Significa também o orgulho de um projeto de vida e o sentido da minha responsabilidade.
A obra aborda questões de poder a partir da diversidade racial negra. Como você vê a importância de trazer essa perspectiva para o teatro e para a literatura contemporâneos?
Este texto foi deliberadamente criado para ser um discurso da negritude (compreendida nessa articulação entre Exu e o afrobeat), escrito em língua portuguesa, para ser lido como dramaturgia ou encenado como expressão de performance negra. A discussão sobre o poder que gostaríamos de fomentar, portanto, se dirige tanto ao público negro quanto ao não-negro que se interessa, no mínimo, por teatro e relações raciais, e que esteja familiarizado com os modos pelos quais a sociedade brasileira tem lidado historicamente com essas relações e com o problema do racismo.
Embora vivamos em um mundo confuso e confusamente percebido, como diria o geógrafo Milton Santos, acredito que, no Brasil, podemos destacar alguns símbolos de poder altamente sedutores, alçados à posição privilegiada de objetos de disputa, quando não são empregados como armas nas próprias dinâmicas dessa disputa.
No meu entender, esses símbolos são a terra, o lucro, a Bíblia (a religião), a arma de fogo e os meios de comunicação. Creio que uma das qualidades de Elegbára Beat é apresentar uma perspectiva política, racial e cultural que pode ser tomada como referência consistente na abordagem desses símbolos. Ou seja, uma perspectiva colocada à disposição para contribuir no debate sobre relações de poder na sociedade brasileira.
As artes em geral, e o teatro especificamente, são modos de atividade que as pessoas escolhem para lidar, entre outras coisas, com a ordem simbólica; e a importância do simbólico na vida de uma sociedade determina os modos como essa sociedade age no real, no trabalho, na família, na escola, na rua, enfim, no teatro. E o modo como as pessoas agem no real também determina a estrutura e os conteúdos da ordem simbólica.
Então, quando escolhemos falar sobre relações de poder no teatro, empregando uma poética específica que conjuga Exu, afrobeat, cinema, música, ancestralidade e contemporaneidade, estamos apostando em uma proposta com uma simbologia bem específica, que implica uma reação particular do público (que conseguimos mais ou menos prever).
O fato é que, ao elaborar essa proposta nos termos do teatro contemporâneo, em que privilegio o jogo entre realidade e ficção como uma de suas mais marcantes características, estamos apostando também na produção de um futuro diverso deste que se desenha com base nas disputas atuais envolvendo os símbolos que mencionei acima (a terra, o lucro, a Bíblia ou a religião, a arma de fogo e a comunicação). E qual seria a característica da diversidade desse futuro? No contexto de Elegbára Beat, talvez a resposta dependa do lugar que a negritude venha a ocupar diante da dinâmica dessas disputas. No meu entender, são pelo menos três lugares possíveis.
O mito de nascimento de Exu Elegbára é central na dramaturgia. Como essa figura mitológica dialoga com os eventos trágicos recentes, como o assassinato de George Floyd e a pandemia de Covid-19?
Muito interessante essa questão, porque me faz rever o jeito que eu havia pensado essa relação de Exu com os eventos. Ao longo do meu ofício de pesquisador, passei a me interessar pela vigência de um estilo propriamente mítico de pensar, nesta era da lógica e do racionalismo exacerbado. Acreditava que o mito poderia me restituir algo importante sobre a vida que a razão talvez me impedisse de alcançar.
A razão foi alçada ao ápice dos fundamentos relativos à moral e ao conhecimento pela história da filosofia e da ciência no Ocidente. Ela foi criada como o elemento que caracteriza a suposta superioridade da espécie humana sobre todas as outras. Mas nós aprendemos, para nossa alegria, que a história de supervalorização da razão não vai muito além dos termos de mais uma fabricação mitológica. Se a razão foi instaurada como condição de possibilidade máxima da verdade, isso se deve ao fato de a história da razão ter sempre andado de braços dados com a violência colonial e com a violência gratuita do racismo. Em si mesma, não há nada na razão que justifique sua prerrogativa de detentora dos discursos verdadeiros, a não ser a desonestidade e a obsessão dos humanos pela verdade.
Em Elegbára Beat, a figura de Exu também fala sobre um certo antagonismo à crença exagerada na figura da razão. Parafraseando uma ideia de Mãe Beata de Yemonjá, nossos mitos têm o mesmo poder que os deles, talvez até mais, porque são milenares. Uma vez que descobrimos que não existe uma hierarquia entre mito e razão, já que a razão também é fruto de uma mitologia, compreendemos que não faz sentido submeter o discurso de Exu ao discurso racional, tal como ele foi concebido pelo Ocidente. Nos compete, porém, aprender o que Exu nos ensina sobre a nossa razão negra.
Considerando o caso de George Floyd e a pandemia de Covid-19, constatamos dois exemplos de um irracionalismo brutal, expressão da decadência de uma civilização incapaz de solucionar os problemas que seu funcionamento produz, como diria Aimé Césaire. Não creio que os procedimentos usuais da sociologia, da antropologia, da história e da biologia possam explicar satisfatoriamente a pandemia e o evento George Floyd, assim como tantos outros crimes raciais em metástase pela civilização ocidental. Porque, além da explicação, é necessário mobilizar um sistema de saberes que conduza a uma interferência no real e a uma transformação nesse estado de coisas.
Creio ainda que só um sistema de saberes enunciado por uma razão negra possa mobilizar a mudança, uma vez que essa mesma razão negra possa assumir solidariamente uma responsabilidade existencial com as vítimas desses crimes historicamente produzidos. A razão negra é a expressão de racionalidade que orienta a reação das vítimas. Assim, fica evidente que, no contexto de Elegbára Beat, Exu também é apresentado como símbolo de racionalidade, expressando a razão negra necessária à compreensão e à transformação da condição de indignidade fabricada historicamente pelo racismo, entendido aqui como dispositivo de poder.
A sua formação em Filosofia, capoeira angola, e as experiências com a Cia dos Comuns influenciaram diretamente na criação da obra. Como essas diversas influências se interconectam no texto?
A filosofia do teatro de nação é a ideia que sintetiza, no texto, a coexistência de elementos da filosofia africana, da capoeira angola e da minha experiência vivida na Comuns. O Cobrinha (o ator, diretor e produtor cultural Hilton Cobra, fundador da Cia dos Comuns) sempre nos estimulou, na Comuns, a nos prepararmos tanto para a cena quanto para a cultura política, enfatizando a importância do discurso e do trabalho de corpo.
Aqui, no teatro de nação, a relação entre corpo e discurso passa pela concepção da sabedoria muscular e da poética da revolta. Tanto uma quanto a outra são empregadas como dispositivos criativos para pensar e criar cenas, diálogos, situações, ações, imagens e qualquer elemento necessário à composição de uma obra sinestésica e propositiva.
A poética da revolta é uma ideia mais ligada à estrutura formal de Elegbára Beat e provém de uma articulação da minha vivência na Comuns com o estudo de algumas revoltas negras, como a Revolução Haitiana, por exemplo. Já a sabedoria muscular se refere mais ao conteúdo do texto: seu discurso, sua poesia, o tema de cada cena. Ela resulta de uma articulação dos elementos, valores e saberes aprendidos entre a prática da capoeira angola, o terreiro de candomblé e uma leitura de Fanon sobre a tensão muscular no corpo do colonizado.
De modo sucinto, a sabedoria muscular é a substituição da tensão produzida na situação colonial pelos saberes cultivados na vida dos terreiros. Assim, os personagens da peça transitam entre a tensão muscular e a sabedoria; falam uns com os outros como se estivessem jogando capoeira; todo o texto é entrecortado por música, ritmo e poesia; e seus solilóquios são discursos poéticos que tratam de temas afins à filosofia do teatro de nação, como revolta, estratégias de sobrevivência, quilombagem, filosofia africana, alegria, amor e desejo.
O lançamento do livro será acompanhado por oficinas de capoeira angola, teatro negro e afrobeat. Como essas atividades complementam e expandem o conteúdo apresentado na obra?
A ideia do ciclo de oficinas sempre foi compartilhar com a comunidade interessada em performance negra um pouco da vivência que me permitiu a criação do texto e a elaboração da filosofia do teatro de nação. Acho que pode ser muito interessante experimentar no próprio corpo a impressão dos mesmos elementos que dão corpo (mas também espírito) ao texto.
Creio que a apreensão desses elementos ao longo das oficinas vai familiarizar os participantes com a proposta do texto de uma forma mais completa, porque o corpo presente coloca em jogo todo o seu aparato sensorial, espiritual, emocional e intelectual nessas relações de ensino e aprendizagem. Bem, nem sempre é assim, uma vez que nós padecemos de diversos bloqueios (de diversas ordens). Afinal, cada pessoa tem suas dificuldades.
Mas penso nessas oficinas também como um lugar de acolhimento, em que poderemos ficar todes, todos e todas à vontade para confluir, aprender e aumentar, com professores acolhendo participantes e participantes acolhendo professores. Vejo nessas oficinas também um espaço para impulsionar desejos e necessidades criativas.
Assim como terei a oportunidade de rever e ampliar os sentidos e o propósito do trabalho com meu grupo, a Malta Teatro de Nação, espero que as pessoas aproveitem também para desenvolver seus próprios trabalhos, para desejar mais, para criar mais, para se organizar mais. O texto também fala sobre desejo, criação e organização. Foi escrito com fluidos: suor, saliva, lágrimas, sangue, sêmen.
Parafraseando o velho Nietzsche de “Assim Falou Zaratustra”, eu diria que só acredito naquilo que alguém escreve com fluidos (ele diria, metonimicamente, “escreve com sangue”). Escreve com fluidos e verás que os fluidos são espírito. Quer dizer, que os fluidos são corpo e que o corpo é o espírito.
Então, organizar o lançamento de Elegbára Beat no contexto de um ciclo de oficinas como esse, em que os trabalhos do corpo ganham especial atenção, foi absolutamente necessário.