#20 Territórios em Trânsito | Entre a incerteza e a criação: transformações contemporâneas no trabalho dos artistas da dança

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Bruna Mascaro
Artista da dança, professora, pesquisadora e gestora cultural. Graduada e Mestra em Dança (UFPE e UFBA) e Especialista em Gestão Cultural (Senac-SP)
Uma sala branca, geralmente fria, um quadro de flores impressionistas na parede e uma cadeira que, por mais confortável que seja, me parece nunca ser o suficiente. Do outro lado da mesa, a promessa do futuro à espreita.
Seja bem-vindo a esta entrevista de emprego. Fale sobre você. Quais são seus pontos fortes? Quais os pontos fracos? Onde você se vê em cinco anos? Como você lida com o trabalho em equipe? Como você lida com prazos?
Checklist institucional: Aptidão em adaptar currículos e desejos. Habilidade em aceitar desvio de função. Vocação para atender demandas imprevistas. Dom natural para priorizar urgências alheias. Competência em transformar expectativas impossíveis em metas alcançáveis.
Desde minha primeira experiência profissional, ainda adolescente, como dançarina, os sentimentos relacionados ao trabalho sempre foram conflitantes. Oscilando entre realização pessoal e frustração, vitalidade e exaustão, bem-estar social e exploração, a contradição é uma velha funcionária que sempre bate ponto.
Este ensaio deambula pelas dinâmicas de afirmação e negação do trabalho e surge desde o momento em que escolhi seguir profissionalmente no campo da dança. Depois que completei 30 anos de idade, o café da manhã é diariamente acompanhado pelo desejo de compreender as complexidades, as constantes instabilidades e a necessidade de adaptação contínua agenciadas pelos artistas da dança em contexto laboral.
Como os trabalhadores da dança operacionalizam suas vidas para sobreviver e se manter produzindo na área? De que forma as condições de trabalho impactam as produções artísticas?
As dificuldades enfrentadas pelos artistas da dança em Recife são numerosas. Em minha trajetória profissional, observei que muitos colegas são forçados a mudar de profissão por não conseguirem sustento adequado, enquanto outros migram para diferentes estados em busca de melhores oportunidades. Além disso, há uma perceptível diminuição de espaços próprios dos grupos e companhias de dança na cidade, como no caso do Grupo Experimental[1], da Compassos Cia. de Danças[2], do Coletivo Lugar Comum[3] e de outros grupos consolidados que perderam suas sedes nos últimos anos. A manutenção de espaços próprios para ensaios tornou-se um projeto cada vez mais difícil, principalmente devido aos altos custos envolvidos. Consequentemente, diante da descontinuidade nas atividades, os grupos têm se adaptado. Um exemplo dessa adaptação é o trabalho com elencos não fixos, montados para cada criação.
Somado a isso, noto que dentro de grupos e iniciativas de menor porte, há uma preferência pelo trabalho com equipes reduzidas. Essa tendência surge como uma resposta à realidade de recursos limitados disponíveis para viabilizar criações artísticas. Com menos membros, é possível que cada um receba um valor mais justo pelo seu trabalho. No entanto, muitas vezes, isso também implica em uma carga de trabalho aumentada para cada integrante, que acaba acumulando outras funções.
Minha experiência na Coletiva – grupo recifense que trabalha com performances urbanas em uma perspectiva de gênero – traz à tona outra reflexão sobre a dimensão do espaço. Neste coletivo, a utilização do espaço público foi e continua sendo uma escolha política, artística e estética. Contudo, percebi que essa escolha também decorre das precárias condições de criação às quais estamos submetidas. Ao defender a utilização do espaço público em processos criativos, frequentemente se ignora que esse fato pode ser mais do que uma escolha artística, mas também reflete as dificuldades enfrentadas pelos grupos. Utilizar o espaço público tornou-se uma forma do coletivo seguir criando de maneira autônoma, independente de subsídios financeiros. Estamos habituadas a criar e trabalhar sem equipamentos de luz, som adequado ou suporte técnico.
Em certo momento, o grupo percebeu que também nutria o desejo de realizar criações dentro da caixa cênica, com estrutura e equipamento de qualidade, mas, diante das escolhas ou condições, essa foi a maneira que encontramos para nos manter em atividade. Há uma tendência a não reconhecer abertamente essas dificuldades, pois fazê-lo envolve uma consciência crítica e a aceitação de um sentimento generalizado de fracasso. Esse reconhecimento das vulnerabilidades é crucial para compreender a complexidade das decisões artísticas e as condições reais de trabalho dos grupos.
Além disso, noto que a falta de recursos impede investimentos em formação contínua, e a falta de reconhecimento pode repercutir negativamente na autoestima e na motivação para se manter na área. Tudo isso pode ter consequências diretas sobre a saúde física e mental, agravando situações de adoecimento.
É recorrente que artistas mantenham suas atividades através da execução de projetos financiados por editais e fomentos. Nesse contexto, é comum que os artistas assumam funções de produtores culturais, realizem projetos dentro de prazos curtos e participem de consecutivos projetos, muitas vezes de forma isolada, o que pode não promover um senso de continuidade das práticas.
Essas são apenas algumas das dificuldades vivenciadas pelos artistas da dança em Recife. É urgente que estejamos atentos às transformações contemporâneas no trabalho dos artistas da dança, pela necessidade de discutir e propor alternativas para melhorar as condições de trabalho, considerando o cenário capitalista que acentua a flexibilização e a exploração.
Cardoso (2019) comenta que no Brasil, as noções de trabalho são marcadas por um país que teve mão de obra escravizada até fins do século XIX, uma economia dependente do mercado externo, uma industrialização tardia e uma frágil estruturação do mercado de trabalho. Compreendendo a complexa realidade na qual países que sofreram processo de colonização estão envolvidos, é imprescindível frisar que as dinâmicas de trabalho desenvolvidas após o período da escravidão colonial, profundamente atravessadas pelas práticas de barbárie reforçadas pelas políticas eugênicas brasileiras, perpetuaram a marginalização econômica e social da população negra, consolidando sua posição de desigualdade na sociedade e no mercado de trabalho.
Os estudos contemporâneos da Sociologia do Trabalho no Brasil, como os desenvolvidos por Ruy Braga (2017), destacam que o trabalho no mundo atual escancara um grande rasgo: a precarização. Segundo o IBGE[4], 41,2% dos trabalhadores da cultura estavam na informalidade em 2020. A instabilidade no emprego, os longos períodos sem trabalho e o risco são características marcantes da vida do artista, que tem a incerteza como categoria central.
Sobre a flexibilidade no setor artístico, Braga e Marques (2017) observam que os trabalhadores das artes no Brasil enfrentam uma alternância constante entre períodos de emprego, desemprego com ou sem indenização, busca por trabalho, gestão de redes de contatos e múltiplas atividades dentro ou fora do campo artístico. Além disso, há a presença constante de estágios mal remunerados, contratos subsidiados, situações de subemprego e empreendedorismo, cada vez mais incentivados por políticas públicas voltadas para o setor.
Pesquisas recentes apontam que as políticas para as artes foram reduzidas a fomento via editais. No Recife, essa realidade não é diferente: os editais são frequentemente vistos como sinônimo de políticas setoriais, tornando-se o foco central das ações na área. Considerando esta realidade, Matos (2017) cunhou o termo “fast-cult“, inspirado no conceito de fast-food, para descrever a conjuntura socioeconômica atual e seus impactos na organização do trabalho artístico na dança. Este termo reflete os efeitos das políticas de editais de curto prazo sobre a produção artística e
“uma produção seriada, mecanizada, com um pré-determinado tempo para a criação e apresentação da obra, sem grandes preocupações com a relação artista-obra-público. Fast-cult implica um menor tempo dirigido ao processo de criação / pesquisa e uma maior atenção ao cronograma de execução dos projetos para garantir a sobrevivência financeira com os editais. Essa é uma das consequências das políticas neoliberais no campo das artes, além da excessiva “flexibilidade” nas relações trabalhistas” (MATOS, 2017, p. 109).
Segnini (2007) aponta que, no Brasil, o Estado ainda é o principal financiador das atividades artísticas, mas na última década viu um aumento significativo na participação do capital privado, incentivado por políticas estatais. A dependência de recursos públicos se manifesta em políticas de curta duração, editais, cachês e leis de renúncia fiscal.
A autora analisa ainda que entre 2003 e 2007, houve um crescimento nas matrículas em cursos de graduação em dança, evidenciando a escolarização formal como um fator para melhores oportunidades de emprego, apesar da persistente instabilidade e falta de políticas públicas de longo prazo para os artistas.
A partir da década de 1970, no âmbito dos estudos trabalhistas, emergiram as teorias pós-fordistas que, de maneira geral, rejeitavam a centralidade do trabalho e a teoria do valor-trabalho. Essas teorias sugerem o surgimento de novos elementos, como o conhecimento, a ascensão do trabalho imaterial e o advento das novas tecnologias. A emergência de novas categorias profissionais, focadas não na produção material, mas em outras formas de trabalho, persiste até hoje, evidenciando novas formas de subjetivação entre os trabalhadores e com o trabalho em si. O trabalho imaterial não resulta na produção de bens tangíveis ou quantificáveis, mas sim na criação e experimentação de conhecimentos, afetos e relações sociais.
O conceito de trabalho, normalmente definido como atividade física ou mental realizada em troca de pagamento, agora se amplia para abranger atividades criativas e imateriais, refletindo as exigências de uma economia baseada no conhecimento e na flexibilidade. Na arte contemporânea, os processos de trabalho ilustram de forma precisa e intensa essas dinâmicas. Esse conceito é crucial para entender as demandas subjetivas impostas ao trabalhador contemporâneo, tanto no ambiente de trabalho quanto na sua vida pessoal.
Segundo Marcel van der Linden (2013), a condição proletária não se restringe apenas aos trabalhadores que realizam tarefas em fábricas e usinas. O pesquisador argumenta que a proletarização também abrange artistas e intelectuais, caracterizada pelo crescimento no número de trabalhadores que não têm controle sobre os meios de produção e que precisam vender seu trabalho no mercado para garantir sua subsistência.
Bojana Kunst (2015) destaca que, nas últimas décadas, o trabalho do artista contemporâneo envolve uma variedade de atividades, abrangendo organização, produção, criação, difusão, meios de apresentação, encontros, intercâmbios, colaborações, reflexões, gravações, vendas, trabalho em rede, publicidade e planejamento de projetos. Essa abordagem multifacetada do trabalho artístico está intimamente ligada à maneira como ele é valorizado e reconhecido hoje. “A natureza aberta, interdisciplinar, instável e flexível do trabalho artístico contemporâneo não é apenas uma qualidade estética, mas algo profundamente conectado com as formas como as obras são produzidas.” (KUNST, 2015, p. 152, tradução nossa).
Estes entendimentos reforçam que a precariedade não é um evento isolado, mas sim uma estratégia deliberada de governança, longe de ser uma anomalia, ela é a norma nas sociedades contemporâneas. Kunst (2015) argumenta que é inviável separar a materialidade da imaterialidade no trabalho artístico, nem é possível discernir nitidamente entre suas múltiplas atividades, vida pessoal e profissional, criação e organização, ou entre criatividade e difusão. Para ela, o trabalho artístico não se resume simplesmente ao desenvolvimento da obra em si, mas engloba todas as atividades correlacionadas. No contexto contemporâneo pós-fordista, predominantemente comunicativo e linguístico, o trabalho artístico ocorre sob uma constante difusão pública.
Segundo a pesquisadora, precisamos reconsiderar a diluição da fronteira entre o trabalho artístico e o trabalho comum, em muitas práticas artísticas esse fenômeno está relacionado ao desaparecimento da separação entre vida e arte. A autora revela que, na sociedade atual, o artista tornou-se um modelo do trabalhador flexível e precário moderno, pois o trabalho artístico está intrinsecamente ligado à própria produção da vida, ou seja, à produção de subjetividade e ao excesso de socialidade. Kunst (2015) diz que “hoje em dia, a dissolução da linha divisória entre vida e trabalho, que muitos artistas do século XX situaram no centro de suas tendências emancipatórias, encontra-se também no centro dos processos capitalistas de exploração da vida.” (KUNST, 2015, p. 154, tradução nossa).
É possível perceber que a fronteira entre a vida e o trabalho é cada vez mais borrada em meio às práticas do empreendedorismo. Braga e Marques (2017) comentam que nessa condição, o artista-empreendedor assume a responsabilidade integral pelo processo de criação e distribuição de sua obra até atingir o consumidor final. Este indivíduo autossuficiente, explorando a própria força de trabalho, torna-se um ícone do neoliberalismo, uma vez que se espera que os produtores sejam cada vez mais versáteis e multifuncionais. Além disso, devem gerir sua própria educação e formação, assim como administrar seu capital pessoal.
Neste cenário, percebemos que os trabalhadores da arte se responsabilizam por todos os riscos atrelados a sua profissão e se afastam dos direitos trabalhistas básicos, como o direito a férias, licença médica, licença maternidade, 13º salário, entre outros. Ainda sobre as existências profissionais atravessadas pela precarização, Vassilis Tsianos e Dimitris Papadopoulos apontam que:
a experiência corporal da precariedade é caracterizada por: (a) vulnerabilidade: a experiência constante de flexibilidade sem qualquer forma de proteção; (b) hiperatividade: o imperativo de manter uma disponibilidade constante; (c) simultaneidade: a habilidade de lidar ao mesmo tempo com diferentes ritmos e velocidades de múltiplas atividades; (d) recombinação: as travessias entre várias redes, espaços sociais e recursos disponíveis; (e) pós-sexualidade: o outro como objeto sexual; (f) intimidades fluidas: a produção corporal de relações de gênero indeterminadas; (g) inquietação: ser exposto e tentar lidar com a superabundância de comunicação, cooperação e interatividade; (h) instabilidade: a experiência contínua de mobilidade através de diferentes espaços e linhas do tempo; (i) exaustão afetiva: exploração emocional, ou, emoção como um elemento importante para o controle da empregabilidade e múltiplas dependências; (j) astúcia: capaz de ser enganador, persistente, oportunista, um trapaceiro. (TSIANOS, PAPADOPOULOS, 2006, tradução nossa)[5]
Esta perspectiva de uma experiência da precariedade inscrita no corpo é indispensável para o campo da dança, pois é, ao mesmo tempo, condição e ponto de partida para a transformação.
Alguns trabalhos no campo da dança e da performance dedicam-se a tensionar a noção de trabalho como questão central da obra, explorando as relações entre corpo, tempo e produção. Essas criações frequentemente colocam em evidência os paradoxos e as tensões que emergem ao se tratar a arte como labor, abrindo espaço para debates sobre precariedade, utilidade e a resistência à lógica produtivista, como veremos a seguir.
A obra “Trabalho Normal”, de Cláudia Müller, trata-se de um conjunto de cinco performances, cada uma delas com a duração de uma jornada de trabalho convencional. As obras discutem o paradoxo da inutilidade da arte e levantam questões sobre tempo, ócio e movimento. As obras ainda possibilitam uma discussão sobre a utilidade versus inutilidade da arte, um debate muito caro em tempos neoliberais de produtivismo exacerbado.

Performance “Trabalho Normal” de Cláudia Müller | Fonte: Haroldo Saboia (2023) | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Outras duas referências importantes para o debate são intituladas “Breve Atlas do Trabalho” e “Metáforas do Trabalho”, desenvolvidas por João Marcelo Emediato. Estes trabalhos investigam como a teoria da linguagem, a comunicação visual e a performance podem contribuir para a compreensão e representação de diferentes noções de trabalho. O artista se propôs a fazer um inventário dos conceitos abstratos que orbitam nossa compreensão geral da palavra ‘trabalho’, propondo traduções corporais de palavras a fim de dissecar, amplificar e tensionar seus significados. Os trabalhos revelam sentidos corporificados vivenciados no cotidiano no trabalho e oferecem diversas possibilidades de reflexão.

Metáforas do Trabalho, de João Marcelo Emediato | Fonte: Ethel Braga, Jo Hislop, e Sheung Yiu (2022) | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Já o trabalho “A babá quer passear”, de Ana Flávia Cavalcanti, foca na discussão sobre os direitos trabalhistas e as condições de trabalho de quem atua na faxina e no cuidado de crianças. Ana, filha de uma trabalhadora doméstica aposentada, encontra na experiência de sua mãe e na sua própria existência, os grandes disparadores para criar a performance. A artista tensiona a situação atual das trabalhadoras domésticas no Brasil, destacando os mecanismos abusivos e exploradores utilizados pelos empregadores. A obra nos convida a refletir sobre as dinâmicas de trabalho perpetuadas após a escravidão, que seguem, até os dias de hoje, marginalizando a população negra.

Performance “A babá quer passear”, de Ana Flávia Cavalcanti | Fonte: João Torres e Taylla de Paula (2020) | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Outro trabalho que colabora para as reflexões propostas é “Bola de Fogo”. O espetáculo foi criado em 2017 quando Fábio Osório Monteiro decide se tornar baiana de acarajé, através de registro oficial, pela necessidade de subsistência diante da instabilidade financeira do trabalho em arte. Em “Bola de Fogo”, Fábio Osório Monteiro pauta temas como ancestralidade, afetividade e questões ligadas ao corpo negro, enquanto prepara a massa do acarajé, frita o bolinho e o compartilha. De forma geral, a obra revela uma questão crucial: a problemática da mudança de carreira motivada pela precariedade das condições de trabalho no setor. Essa necessidade de migração para outras áreas profissionais resulta em uma perda significativa de profissionais na área, além de evidenciar a falta de apoio estrutural e econômico para os artistas.

Performance “Bola de Fogo”, de Fábio Osório | Fonte: Patricia Almeida (2017) | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
As obras mencionadas levantam reflexões sobre o trabalho, não apenas como uma atividade econômica, mas como um fenômeno que atravessa corpos, histórias e estruturas sociais. Elas expõem desigualdades, tensionam as relações de poder e convidam o público a questionar sistemas naturalizados que sustentam precariedades e exclusões. É nesse território de criação que surgem interrogações fundamentais para pensar possibilidades de mudança e resistência.
Me pergunto: Qual o potencial da esperança para estes tempos? Quais as possibilidades de contramovimento? Como vislumbrar possibilidades de resistências e organizações em contexto de incertezas?
É fácil cair no fatalismo pessimista que sugere a impotência da arte, acreditando que ela está totalmente dominada pelas formas capitalistas de produção e que o trabalho capitalista capturou completamente a subjetividade artística. É bastante desafiador romper com o mantra social que insiste em associar uma vida sem trabalho à uma vida sem propósito. As mesmas questões me ressoam em um looping programado ao tempo do mercado: Como materializar criações artísticas diante da falta de recursos e condições adequadas para sua produção? É possível ser artista e ter condições dignas de sobrevivência financeira? Viver significa, exclusivamente, trabalhar?
Contudo, a criação de sociabilidade e o trabalho colaborativo surgem como aspectos fundamentais e centrais em revide à esta situação. No lugar de práticas isoladas, os artistas contemporâneos frequentemente se engajam em esforços coletivos, criando redes de cooperação e suporte mútuo. Estas práticas não só produzem obras de arte, mas também constroem comunidades e formas de sociabilidade que, por vezes, desafiam as lógicas tradicionais do mercado de trabalho.
A coletividade se apresenta não apenas como uma técnica de produção, mas como uma estratégia de resistência às condições precárias e exploratórias que marcam o capitalismo atual. Quando artistas trabalham em conjunto, eles conseguem compartilhar recursos, trocar conhecimentos e oferecer apoio emocional, reduzindo a vulnerabilidade individual e fortalecendo a resiliência do grupo. Esse modelo colaborativo também abre portas para a criação de espaços de experimentação. Projetos autogestionados, coletivos de artistas e redes colaborativas exemplificam como o trabalho artístico pode se desviar dos caminhos tradicionais do mercado e criar alternativas viáveis e significativas.
Práticas colaborativas permitem que os artistas compartilhem recursos, conhecimentos e responsabilidades, criando uma rede de apoio mútuo que fortalece a comunidade e promove a sustentabilidade do trabalho artístico. Essas iniciativas são fundamentais para compreender como diferentes grupos e indivíduos se organizam para criar alternativas ao modelo capitalista tradicional.
Considerando que a arte se fundamenta na partilha de um “produto”, é crucial analisar a importância de sensibilizar a sociedade para desenvolver o interesse por esse tipo de “produto”. Em sistemas políticos sociais democratas, há uma tendência de apoiar segmentos profissionais da sociedade que, por motivos históricos ou culturais, não conseguem se manter por conta própria, através de políticas públicas. Contudo, essa assistência pode criar uma dependência que limita a autonomia do setor. Sem um público com interesse genuíno e constante na arte, os artistas continuarão a depender de subsídios governamentais. É essencial, portanto, desenvolver estratégias educativas e culturais que incentivem o apreço pela arte.
É necessário um debate mais profundo e ações concretas para promover a dignidade e sustentabilidade do trabalho artístico na dança. É perceptível que, no contexto brasileiro, há muito a ser explorado nesse campo, com poucas análises profundas sobre o trabalho do artista, especialmente no que diz respeito ao artista da dança. Ao apresentar as realidades e desafios enfrentados pelos artistas da dança, este ensaio almeja ser um catalisador para alimentar debates e transformações no setor, proporcionando melhores condições de trabalho e reconhecimento para esses profissionais.
Referências
CARDOSO, A. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Amazon, 2019.
BRAGA, Ruy. Uma sociologia da condição proletária contemporânea. Tempo Social, v. 18, p. 133-152, 2006.
BRAGA, Ruy; MARQUES, Joana. Trabalho, globalização e contramovimentos: dinâmicas da ação coletiva do precariado artístico no Brasil e em Portugal. Sociologias, v. 19, p. 52-80, 2017.
MATOS, Lúcia. (Des) conjunturas das políticas setoriais para a dança: Uma análise do papel da Funarte e do Edital Klauss Vianna. Políticas Culturais em Revista, v. 10, n. 2, 2017.
SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Criação rima com precarização: análise do mercado de trabalho artístico no Brasil. In: Congresso Brasileiro de Sociologia. 2007. p. 1-35.
SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli; ALVES, Maria Aparecida. Música, dança e artes visuais: especificidades do trabalho artístico em discussão. Trabalho artístico e técnico na indústria cultural, p. 59-75, 2016.
VAN DER LINDEN, M. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
KUNST, Bojana. Artist at Work: Proximity of Art and Capitalism. Winchester: Zero Books, 2015.
KUNST, Bojana. Danza y trabajo: el potencial político y estético de la danza. Lecturas sobre Danza y Coreografía, Isabel Naverán e Amparo Écija (editoras), Castilla-La Mancha: Artea, p. 47-59, 2013.
KUNST, Bojana. Las dimensiones afectivas del trabajo artístico: la paradoja de la visibilidad. Ejercícios de ocupação. Afectos, vida y trabalho, p. 126-151, 2015.
TSIANOS, Vassilis; PAPADOPOULOS, Dimitris. Precarity: A Savage Journey to the Heart of Embodied Capitalism. Transversal, máquinas e subjetivação, instituto europeu para políticas culturais progressistas. Disponível AQUI [Consulta: 2 de julho de 2024].
Notas de Rodapé
[1] O Grupo Experimental foi fundado em 1993, em Recife-PE. A companhia conta com um acervo de 20 criações reconhecidas nacional e internacionalmente, atuando no panorama artístico da dança contemporânea de Pernambuco.
[2] A Compassos Cia. de Danças surge em 1990, por iniciativa de Raimundo Branco. Inicialmente, o grupo se vale de elementos da dança popular para suas criações, mas se consolida na cena recifense por desenvolver um trabalho de dança contemporânea em diálogo com a linguagem do teatro.
[3] O Coletivo Lugar Comum atua desde agosto de 2007 em Recife, reunindo artistas de diferentes linguagens. Inquietos com as dificuldades da produção em arte e suas necessidades de criação, aperfeiçoamento e troca com a sociedade, o grupo resolveu criar o Coletivo.
[4] Fonte: Sistema de Informações e Indicadores Culturais – 2020.