#21 Ruínas ou Reinvenção? | Reinvenção Artística em Territórios de Precariedade: Exorcismos Urbanos

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Wagner Pyter
Artista e pesquisador em fotoperformance. Formado pelo IHAC/UFBA, investiga resistência e reencantamento urbano
A imagem se reescreve. Uma ruína reinventada, um convite ao que virá. A arte quebra o texto, reconecta a alma e a comunidade. Este ensaio, parte do Dossiê “Ruínas ou Reinvenção?“, é um fluxo em construção.
Ruínas. Vulnerabilidade. E a arte? Minha reinvenção começa aqui. A arte, força vital, reinventa-se em lugares inacabados: seja em ocupações performáticas, edições digitais ou com inteligência artificial. Minha trajetória, um exercício contínuo de resistência e ressignificação do cotidiano, alinha-se ao Dossiê “Ruínas ou Reinvenção?“. Percebo a vulnerabilidade não como obstáculo, mas como potência, uma condição prévia para a resposta criativa e transformadora em tempos de exaustão.
O projeto Exorcismos Urbanos nasceu em 2012, a partir de um convite da professora Karla Brunet, do Grupo de Pesquisa Ecoarte (UFBA). Iniciamos com uma série de intervenções fotográficas em Plataforma, no Subúrbio Ferroviário, onde, usando máscaras de gás, registrávamos locais como a linha do trem e uma fábrica abandonada. As imagens eram então compartilhadas em plataformas online, dialogando desde o início com o coletivo internacional Urban Exorcism, que propõe a ressignificação de espaços negligenciados através da arte. Este projeto se entrelaça com minha própria trajetória acadêmica inacabada na UFBA, abandonado em 2015 após um esgotamento pessoal. Assim, o trabalho sobre os prédios inacabados da universidade reflete meu próprio ciclo, que busco concluir aqui.
Os “elefantes brancos” da UFBA, com suas estruturas interrompidas, refletem não apenas uma falha institucional, mas também minha própria trajetória acadêmica. Mais que meras ruínas, esses edifícios são “não-lugares” institucionais, como define o antropólogo Marc Augé (2012): espaços transitórios que, segundo o autor, quando desprovidos de identidade, história e relação, tornam-se símbolos de um potencial não realizado. Atualmente, nove obras da UFBA estão paralisadas, com milhões já gastos sem a devida entrega, gerando insegurança e afetando o cotidiano universitário. A reabilitação desses espaços, portanto, transcende a arquitetura; ela sugere a ressignificação de processos subjetivos e a conclusão de trajetórias pessoais.
Meu percurso é impulsionado por um ativismo social que questiona a cidade, propondo soluções através de um urbanismo crítico. Nesse caminho, dialogo com obras como as de Rogério Ferrari (1965-2021), fotógrafo e antropólogo que fundiu arte, academia e ativismo. Suas imagens eram instrumentos de denúncia e diálogo, capturando a potência de quem resiste. A pixação “Selvagem como o Abandono“, do artista soteropolitano Timóteo Lopes, tornou-se o lema conceitual que guia minha pesquisa. Nascida da escuta das ruas e trazida para o ambiente universitário, essa frase revela a complexidade de Salvador como um território de contrastes e resistências.
Salvador, a “Roma Negra“, é um epicentro da cultura afro-brasileira, mas também um reflexo das profundas desigualdades do racismo estrutural. Celebramos nossa herança africana, contudo, enfrentamos dilemas como a gentrificação do Pelourinho, onde a “revitalização” expulsa moradores tradicionais. A violência racial é uma chaga aberta, Salvador tem um dos maiores índices de homicídios de jovens negros do país, com operações policiais violentas em periferias. A cidade, que se vende como capital da cultura negra, falha em proteger sua população. O turismo predatório explora terreiros e baianas de acarajé sem benefício às comunidades, enquanto a desigualdade urbana e o racismo ambiental agravam a situação em bairros históricos e periféricos. Há ainda o apagamento da história indígena, invisibilizada pela narrativa da “Roma Negra“. Apesar de tudo, Salvador é um espaço vibrante de resistência, onde coletivos e movimentos sociais reescrevem continuamente sua história.
A metodologia de “Exorcismos Urbanos na Universidade” é inovadora. Não se trata de mera requalificação física, mas de intervenções performáticas que catalisam a transformação de “não-lugares” em vibrantes territórios de criação. O “exorcismo” aqui é metamorfose: não apaga o passado, mas inscreve novas narrativas. Essa abordagem é intrinsecamente colaborativa, desenvolvida com uma rede fundamental de artistas e coletivos, a maioria baseada em Salvador, como Marcelo.scr, Paula Moreira, Casa Dona Alzira, Antonia Cunha, Timóteo Lopes e Marina Figueiredo. O projeto “Pedra Bruta – Exorcismos Urbanos na Universidade” é um exemplo dessa sinergia.
As práticas de ocupação artística, guiadas pelo lema “Selvagem como o Abandono“, exploram a precariedade como matéria-prima. Um exemplo central é a videoarte “Reencantamento“, que concebi com Marcelo Scr. Lançado com a ocupação “3 Andares do Tempo“, em 2023, na Galeria do IHAC, o vídeo propõe um “ritual cíclico” inspirado pelo mestre quilombola Nêgo Bispo e sua máxima “tudo nosso é na circularidade“. A obra convida à reflexão sobre a conexão entre o urbano, o ritualístico e o encantamento, simbolizando a renovação constante da vida e da arte.
A colaboração com o artista Awal resultou em “A Corrida Espiritual“, mostra inspirada no filme “Bicho de Sete Cabeças” (2000). Realizada em 2023 na galeria da Casa Dona Alzira, no Nordeste de Amaralina, a exposição explorou “corpos na cidade“, contrastando estruturas abandonadas com expressões artísticas. A arte, aqui, liberta: da internação à reinvenção. A Casa Dona Alzira, espaço cultural e educativo, sediou a mostra até fevereiro de 2024, oferecendo oficinas e cinedebates, ampliados pela mediação cultural de Paula Moreira, que sublinhou a dimensão terapêutica do projeto.
O “Sarau Exorcismos Urbanos“, uma vivência experimental com o coletivo da Casa Dona Alzira, levou a arte para a Praça da Praia de Amaralina em 2024, reforçando o compromisso com o engajamento público. Enraizada nas vivências da comunidade, a iniciativa transcende os muros da universidade, atuando como um “exorcismo de confinamentos” que promove cura e renovação.
A dimensão do projeto é ilustrada pela colaboração PhotoPixo, uma metodologia que une fotografia e intervenções artísticas urbanas, e pelo “Manifesto Ciborgue“. Este último, um ensaio performático realizado na Escola de Dança da UFBA em 2024, questionou as fronteiras entre visível e invisível, ecoando Nêgo Bispo e o “Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway.
A PhotoPixo, por sua vez, foi destaque no Colóquio “Olhares & Territórios” em 2025, com um pôster colaborativo de Juh Dreher. Como ela descreveu em suas redes sociais após ver as fotos do pôster, a arte “tem esse poder bonito de conectar tempos, histórias e afetos” (DREHER, 2024). Inspirado por essa luta, o projeto Enxame071, uma plataforma de mapeamento de potências comunitárias, apoiou iniciativas como a Casa Dona Alzira, Quabales e Gueto Lounge/O Gueto é Um Luxo.
“A Ghost Story“, ensaio fotográfico sobre prédios históricos abandonados de Salvador, foi apresentado na revista Deuinsight em 2024. O projeto, desenvolvido em colaboração com artistas como Ana Eliza Morgana, Tuti Minervino, Rayara Almeida e Janayna Araújo, explora memória e ausência. Inspirado pelo prédio Correios da Pituba e pela Ocupação Carlos Marighella, que luta por moradia no centro da cidade, o ensaio contrasta espaços como o Edifício Sulacap com a invisibilidade de ocupações, buscando reconhecimento e dignidade.
Nossas ações são mais que práticas artísticas; são afirmações existenciais. Alinham-se aos princípios do urbanismo crítico, perspectiva que aprendi em seminários como “Corpo Cidade” (2008-2009) e que nos ensina a ver as feridas abertas e a reconhecer a vida que ali pulsa. Essa abordagem ressoa com a visão de Rogério Ferrari, cuja conexão se aprofunda no filme “Muros” (2015), e com o geógrafo Milton Santos, que conheci em 2004 ao digitar sua biografia. Dele aprendi que a cidade é um “laboratório do possível”. Nosso projeto opera nessa intersecção: ao intervir em ruínas, desvelamos contradições e amplificamos narrativas de quem resiste.
A arte urbana, embora poderosa, enfrenta riscos. Para evitar a cooptação, buscamos parcerias transparentes e controle comunitário. A falta de recursos é um desafio, mas o apoio de ONGs e coletivos locais garante a independência do projeto. Cada obra é um passo contra o abandono.
Em “Exorcismos Urbanos na Universidade“, propus a arte como força vital para revitalizar espaços, usando a precariedade como potência. Minha experiência de burnout na universidade representou uma ‘ruína pessoal’, um ‘inacabado’ que ecoa as estruturas que o projeto aborda. Essa fragilidade tornou-se o motor para redefinir o trabalho, transformando a ruína pessoal em catalisador para a resiliência.
Através de práticas como “3 Andares do Tempo“, “A Corrida Espiritual“, “Manifesto Ciborgue” e “A Ghost Story“, guiadas pelo lema “Selvagem como o Abandono”, o projeto comprova que a arte é ferramenta poderosa para investigar memória, resistência e pertencimento. A arte, aqui, não é um fim em si mesma, mas um meio de converter ruínas em reinvenções.
Nosso próximo passo é criar um fotolivro que documente as intervenções do PhotoPixo e produzir ímãs para vender em feiras, apoiando artistas e espaços culturais. Este projeto, ainda em construção, é um convite para que comunidades reescrevam suas histórias, como um mapa afetivo que conecta resistência e criação.
Dedicatória
Para Antonia Cunha.
Pelo apoio incondicional.
Sem você, esta obra não existiria.
Agradecimentos
Um agradecimento especial à pesquisadora Ana Lúcia Lage Pereira. Em um momento decisivo, durante o recesso de São João, quando a cidade parecia vazia e o prazo se aproximava, ela generosamente dedicou seu tempo para revisar este trabalho. Suas críticas, enviadas pelo WhatsApp, foram precisas e fundamentais, ajudando-me a reformular o texto para a submissão à revista Quarta Parede. Sou imensamente grato por sua ajuda indispensável.
Referências
- Fundamentação Teórica e Crítica (Livros e Artigos Acadêmicos)
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 9. ed. Campinas: Papirus, 2012.
BRANDÃO, Maria A. Milton Santos e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
BRANDÃO, Timóteo Lucas Lopes. Traços do Invisível: Xilografia, Arte Urbana e tridimensionalidades. 2024. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2024.
FERRARI, Rogério. A Eloquência do Sangue: Palestina. São Paulo: Editora Sundermann, 2004.
FERRARI, Rogério. Curdos, uma nação esquecida. São Paulo: Ímã Foto Galeria, 2011.
FERRARI, Rogério. Parentes. Salvador: EFC, 2018.
HARAWAY, Donna J. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Em: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Corpos e Cenários Urbanos: Territórios e fluxos em Salvador. Salvador: EDUFBA, 2006.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2006.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
WILBER, Ken. O Espectro da Consciência. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
WILBER, Ken. Psicologia Integral: Consciência, espírito, psicologia, terapia. São Paulo: Cultrix, 2002.
- Filmografia (Documentários e Obras Cinematográficas)
A GHOST STORY. Direção: David Lowery. EUA, 2017.
A LAGOA do Abaeté: um cartão postal ameaçado. Direção: Carlos Pronzato. Brasil, 2011.
AS CRUZES E OS CREDOS. Direção: Fabrício Ramos e Camele Queiroz. Brasil, 2014.
BICHO DE SETE CABEÇAS. Direção: Laís Bodanzky. Brasil/Itália, 2000.
CONFLUÊNCIAS. Direção: Dácia Ibiapina. Brasil, 2023.
CRAVOS. Direção: Marco Del Fiol. Brasil, 2022.
E A MULHER CRIOU HOLLYWOOD (Et la femme créa Hollywood). Direção: Julia Kuperberg, Clara Kuperberg. França, 2016.
MATRIX. Direção: Lana Wachowski, Lilly Wachowski. EUA/Austrália, 1999.
MENINO JOEL. Direção: Max Gaggino. Brasil, 2010.
MESTRE Moa do Katendê: a primeira vítima. Direção: Carlos Pronzato. Brasil, 2018.
MUROS. Direção: Fabrício Ramos e Camele Queiroz. Brasil, 2015.
O EXORCISTA. Direção: William Friedkin. EUA, 1973.
PARA QUE NÃO NOS SINTAMOS TÃO SÓS. Direção: Fabrício Ramos e Camele Queiroz. Brasil, 2013.
TREM DO SUBÚRBIO. Direção: Carlos Pronzato. Brasil, 2010.
- Trilha Sonora e Influências Musicais
HART, Daniel. A Ghost Story (Original Soundtrack). Milão: Milan Records, 2017.
LED ZEPPELIN. Led Zeppelin IV. Londres: Atlantic Records, 1971.
MATRIX: The Album. [Trilha Sonora]. Burbank: Warner Bros. Records, 1999.
OZZETTI, Ná. Ná e Zé: Balangandãs. São Paulo: MCD, 2000.
- Seminários e Influências Formativas
ARTE CIDADE. Evento/Seminário. Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia (FAUFBA). Salvador, BA, 2008.
CORPO CIDADE: Debates em Dança, Arquitetura e Urbanismo. Evento/Seminário. Salvador, BA, 2008-2009.
- Projetos e Ativismo
OCUPAÇÃO Carlos Marighella. Movimento de ocupação por moradia. Edifício Sulacap, Salvador, BA.
SILVA, Wagner Pyter Fernandes (Agente Ativador). Ciclo de Protestos (Occupy Brazil, Jornadas de Junho e Lutas contra o Aumento). Movimentos sociais por direitos civis e contra o aumento de tarifas. Salvador, BA, 2011-presente.
SILVA, Wagner Pyter Fernandes (Idealizador e Organizador). Ocupa Salvador. Movimento de ocupação e intervenção urbana. Salvador, BA, 2011-2016.
- Fontes Digitais, Imprensa e Depoimentos
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BRUNET, Karla. Intervenção urbana: Exorcismo Urbano em Salvador. Karla Brunet, 4 set. 2012. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
CINE CINEASTA traz obras de Fabrício Ramos e Camele Queiroz à Saladearte. Toda Bahia, Salvador, 1 dez. 2022. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
COLETIVO CASA DONA ALZIRA. Mostra “Corrida Espiritual”. [Galeria de Fotos Online]. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
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ENXAME071. Salvador, BA. Perfil na rede social Instagram. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
GRUPO ‘exorciza’ locais abandonados em cidades pelo mundo. Catraca Livre, São Paulo, 13 set. 2012. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
SILVA, Wagner Pyter Fernandes. Coisas pra Fazer em Salvador. Palestra apresentada no TEDxPelourinho, Salvador, BA, 2011. Disponível em: [Sem link]. Acesso em: 19 jun. 2025.
SILVA, Wagner Pyter Fernandes. Wagner Pyter Fotografia. [Portfólio Online]. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.
REDAÇÃO DO IHAC. 3 ANDARES DO TEMPO | Ocupação celebra 15 anos do IHAC com rituais, pixações e documentação arquitetônica. IHAC Digital, 24 out. 2023. Disponível AQUI. Acesso em: 19 jun. 2025.











