Festival Luz Negra – 4ª edição | Anotações para um quilombo
Ouça essa notícia
|
Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
#1
Um festival, uma gira, um quilombo. O Poste abre sua casa para nos receber. Evento de troca, lugar de chegada, de repouso, de circulação. Lugar de encantamento. De ideias, memórias, estéticas e discursos.
Luz negra. Aquilo que se irradia, cria fotoluminescência. Tornar visível. Mas o que há entre os caminhos expostos pela luz? Quais seus discursos? Suas escolhas estéticas? O que se quer fazer ver? Quem (ou o que) estamos vendo? De onde se lança a luz?
#2
A música do Grupo Bongar abriu os caminhos do IV Festival Luz Negra – O negro em estado de representação. Guitinho da Xambá (1983-2021), que se encantou recentemente, foi o homenageado dessa edição. Naná, Samuel e Agrinez, anfitriãs, gestoras e Orís do festival, guiaram os dez dias de programação. Pergunto-me como a energia de Guitinho, da Nação Xambá, do Bongar, poderia circular entre o FLN. Num festival, como aproximar as obras e pensamentos de alguém que está sendo rememorado?
#3
A fruição e produção textual com o Luz Negra entrecruzaram-se com algumas das minhas pesquisas sobre o Teatro Experimental do Negro (1944-1968). Por alguns momentos, vi nas linhas dos artigos produzidos por Abdias Nascimento (1914-2011) o desejo que parece alimentar o festival pernambucano: criar imagens não-estereotipadas das pessoas negras; visibilizar artistas pretes; apoiar e fortalecer atores e atrizes negras; movimentar a cena dentro de um arranjo não-hegemônico. No entanto, em quase 100 anos que distanciam a 4ª edição do FLN da criação do TEN, mudou muita coisa, não é? O que permanece? Como permanece? Por que ainda estamos articulando nossas atividades, lutas e produções artísticas de maneira tão semelhante a dos nossos ancestrais? O que não aprendemos com eles? O que estamos construindo com isso? Por onde isso tem nos levado a caminhar?
#4
Há um lugar de encontro e de circulação de memórias muito preciosos no Luz Negra. Quem já esteve no quilombo urbano do Poste sabe que lá se faz um agrupamento ímpar. Uma ocupação. Como Guitinho canta em Vento Corredor, é o chão do terreiro que é o umbigo do mundo para muitos e muitas artistas: lá é onde se aprende, se dá os primeiros passos e onde se caminha para outros espaços que o universo pode oferendar. Intuo que o sentimento em relação ao espetáculo Periferia Quebra Tudo, com jovens artistas do bairro de Peixinhos, delineia um pouco isso. A exibição de (Trans)passar, com Sophia Williams e Aurora Jamelo, também. O mesmo aconteceu em outra edição, com a Mostra de Jovens Talentos Pretos, onde boa parte das artistas hoje seguem ocupando as atividades do Poste e de outros grupos locais.
#5
Se há um pouco de TEN no FLN, também há segundaPRETA (BH). Lembrei do texto Bater laje e refazer a cabeça, da Tatiana Carvalho Costa sobre a segundaPRETA: A resistência negra em diversos espaços (não somente físicos), num tornar-se negro coletivo, é um fenômeno de aquilombamento [Beatriz Nascimento]. O quilombo como metáfora aponta para seus possíveis topônimos – favelas, bailes funks, comunidades negras rurais – e para outras conformações que reúnam pessoas negras com o objetivo de reconhecerem, celebrarem e fortalecerem sua negritude. Mas o aquilombar-se e o tornar-se não são fatos dados. Tornar-se é um permanente movimento-rito.
#6
Essa escrita foi atravessada pelo Cenas do Nordeste (RN), outro festival online com exibição de arquivos audiovisuais, que me levou para diversos territórios criativos. Lá também encontrei criações negras, como Nebulosa (PI), Sonhoridades para desadormecer serpentes (MA) e Entre Rio e Mar Há Lagoanas (AL). Mas aqui, gostaria de chamar atenção à curadoria, questão que acompanhou boa parte da conversa na live com os críticos e críticas que integraram a edição do Cenas em 2021.
Daniel Guerra, da Revista Barril (BA), chamou atenção à programação do festival sobre como se alimentava o discurso de diversidade (no sentido de diferença poética) para abarcar o critério de seleção dos espetáculos a serem exibidos esse ano. Assim como o FLN, o Cenas foi gestado para ser um agrupamento. Além de situar a produção nordestina dentro do contexto artístico nacional, o projeto do Rio Grande do Norte tem como objetivo visibilizar artistas e grupos nordestinos, além de lançar luz para as infinitas possibilidades de criação que perpassam os sete estados brasileiros que integram nossa região.
Esse desenho de curadoria, realizado num raio bem delimitado de abrangência, por questões estruturais do evento e pela escolha de convidar todas as apresentações que integram a programação (algo em comum com o Festival Luz Negra), funciona na chave da representatividade e produz um diagnóstico circunstancialmente importante: a existência de circuitos artísticos para além do eixo sul-sudeste e a invisibilização de boa parte deles.
Após a conversa de encerramento do Cenas do Nordeste, fiquei refletindo sobre algumas coisas: depois da segunda edição, ao constatarmos a invisibilidade e fomentarmos a cena regional, qual seria o próximo passo? O volume de produção é relativamente grande, as formas de apresentá-lo são infinitas. Há mudanças visíveis entre a primeira e segunda edição do CN, inclusive com a incorporação de um corpo crítico para acompanhá-la. Mas, agora que sabemos que somos muitas, como tomar a decisão de exibir um arquivo em detrimento de outro? Como delinear essas miradas aos nordestes? O que isso implica? O que ficaria de fora e por quê? Como manejar e criar pensamentos para os que serão, enfim, exibidos?
#7
O Festival Luz Negra esteve em sua quarta edição. Quando perguntado no blog Satisfeita, Yolanda? (PE) sobre a curadoria desse ano, o grupo O Poste afirmou que foi realizada “dentro da base emergencial”. Explicaram as condições impostas pela Lei Aldir Blanc (LAB), o fator do tempo, curtíssimo para a realização dos projetos (!!!), e dos limites do próprio edital que, como proposição, demanda que as grades de programação sejam preenchidas majoritariamente por produções locais. Ainda na mesma entrevista, compartilharam o desejo de nacionalizar o festival, o que foi impossibilitado por conta da LAB.
Escavando as memórias das edições anteriores do Festival Luz Negra, entre blogs, sites e matérias da imprensa, percebo que o discurso curatorial do projeto pouco mudou. Evidentemente, há um impacto de sua realização na cena local, inclusive como ponto importante para o surgimento de outros grupos e artistas, como o Rede Afrocentradas e o Festival PretAção. Assim como deve ter impactado o Festival de Arte Negra e a Semana Daruê Malungo em suas realizações anteriores.
Mas, ainda fincado na proposta da representatividade, me parece que o FLN caminha entre os mesmos lugares, sobretudo em suas escolhas temáticas. Se há um pouco de segundaPRETA aqui, se distancia consideravelmente por percorrer por espaços pouco autorreferenciais no que toca sua programação, ainda num lugar de contraposição e resposta ao mundo anti-negro. Não só nas questões que levanta, mas em seu modo de falar sobre elas.
#8
Assim como o Cenas do Nordeste, lanço perguntas para que o Luz Negra, na continuidade de seus trabalhos, possa tomar novas decisões. Tanto no plano local, como nacional, a produção negra é maior do que era em 2017 (ano de estreia do FLN). Claro que estamos, muitas vezes, imbricados na impossibilidade: financeira, energética, estrutural. Mas essas escolhas podem fazer-e-refazer a cena local (preta!) de modos distintos, fazendo pontes e construindo outros caminhos para habitar e negritar o palco e as ruas da cidade. Exigiria, se assim for o desejo, um outro dinamismo, de um jeito que as energias (das criações, do festival) possam ser transmutadas, modificadas ou reelaboradas.
Poderia reescrever as perguntas que faço ao Cenas do Nordeste no tópico anterior, mas também estou consciente que há especificidades que distanciam os dois festivais. E não falo só no sentido histórico. Mas busco fazer esses questionamentos porque acredito que a representatividade é um beco sem saída. E, apesar de estarmos negociando com ela o tempo inteiro, seu discurso palatável e sedutor (afinal, é muito tempo sem um chão para chamar de seu, como nos diz Jhanaína em Mi Madre), nos impede, muitas vezes, de olhar para a diversidade de uma outra forma que possa ser tão propositiva quanto, mas que não opera apenas naquilo que está estabelecido como demanda ou como agenda a se cumprir. Como Daniel falou: a diversidade como algo que nos convoca a estar com as obras de um jeito diferente, que nos bagunça por dentro, por não compartilharem o que está necessariamente circunscrito dentro daquilo que conhecemos previamente.
#9
Essa é só uma das possibilidades, claro. Mas falo isso também por um permanente estado de incômodo que estabeleci com boa parte das obras do Festival Luz Negra, como fui deixando registrado nos quatro textos que desenvolvi durante a cobertura crítica do festival. Retorno à questão da autorreferencialidade e da possibilidade de dizer desdizendo, de fazer jogos ópticos como Exu faz. Ou como Naná habita a cena em A Receita, afinal, tempero pode ser veneno e vice-versa.
É evidente o esforço de se afirmar, fortalecer sua negritude, se fazer ver numa cena artística ainda desigual. Mas isso não deveria ser o nosso único esforço. Como olhar para dentro desse terreiro e reformulá-lo, mantendo aquilo que há de mais importante, que é o sentido de comunidade, ainda que isso envolva fazer outras escolhas?
#10
A exibição da tríade de espetáculos do Poste (A Receita, Cordel do Amor sem Fim e Ombela) é um presente. Acompanhar o desdobramento das pesquisas do grupo, as escolhas representacionais e a complexificação de suas poéticas produz um material riquíssimo a partir dos arquivos. Cria-se quase que um memorial dentro da programação do Festival, frente a oportunidade de fazer do espaço virtual um caminho para se conectar com outros públicos, algo que justifica sua presença reincidente. Um traçado curatorial mais evidente no Festival Luz Negra colocaria em perspectiva a maneira como o grupo está vendo a sua produção em relação ao de seus pares, posicionando-a em confronto ou combinação.
#11
Escrevendo o texto, lembrei-me de uma fala da Glenda Nicácio numa entrevista para a Revista Cinética: O segredo sempre é uma companhia que nós nunca desprezamos. Isso é muito nosso. Afinal, não ser vista é também não ser vigiada.
Sei lá, pareceu importante compartilhar aqui.
#12
A relação do festival com as questões formativas chama atenção. Além de uma oficina teatral, ministrada pelo grupo, o público contou uma aula de História sobre as populações negras no estado de Pernambuco, com o historiador Flávio Cabral. O empenho do Poste em relação a isso não é novidade. Há algum tempo ministrando cursos, essa dedicação é um acúmulo das ações desenvolvidas pelo grupo, que ganha grande expressão com a Escola de Antropologia Teatral, fundada em 2019, em Recife.
#13
Uma possibilidade nos dias de destruição, disse Beatriz Nascimento sobre os quilombos. Talvez, o Festival Luz Negra, também tenha um pouco disso.
Em meio à pandemia da COVID-19, onde a maior parte das pessoas que morrem e sofrem com as consequências do vírus e desse governo genocida é preta, a chance de se aglomerar virtualmente e estar com os nossos e aqueles que chegam para somar é, desde-já, uma conquista, um feito, um respiro, um ganho.
#14
Fiquei pensando novamente no nome do festival. Luz negra. Esse é um tipo de luz que é invisível aos olhos, né? Será que tem pista por aí? Uma dobra, um corte ou uma fissura por dentro da visibilidade tão abertamente defendida e enunciada?
#15
Foi bonito ver nesses dias o reencontro das pessoas através do YouTube. O chat era fila de teatro, depois se transformava em platéia e logo em seguida era ponto de conversa. Bonito como Samuel compartilhou com Orun Santana sua admiração pelo Mestre Meia Noite e como a figura dele foi importante para sua juventude, durante uma conversa após a abertura do festival, com o solo Meia Noite.
Num outro dia, Agrinez comemorava pela possibilidade de seus parentes verem o Histórias Bordadas em Mim, algo que não tinha sido feito até então. Naná sempre muito entusiasmada com a presença das artistas convidadas e com as falas do público no chat, compartilhando memórias, situações de outras edições, do tempo que a gente também se encontrava presencialmente. Até Heloísa, filha de Agrinez, ocupou e preencheu o espaço com sua espontaneidade.
A amplitude do festival também soma aos ganhos da realização online. Público de outros estados, numeroso em contraste em relação a quando ocorria no espaço físico do Poste. A participação de dois espetáculos do Rio de Janeiro contribuiu para a chegada de novas pessoas a esse quilombo.
No entanto, ainda é impossível mensurar o impacto dessa realização. Por isso mesmo, parece ser uma boa hora para recalcular as rotas do festival. Fazer algumas escolhas, como falava anteriormente. Digo isso no sentido curatorial, mas sei que esse é um desdobramento muito sensível para as cenas negras.
Aposto que possa ser igualmente imensurável o ganho da escolha de se ter um acompanhamento crítico, como esse que realizamos em parceria com o Quarta Parede: para artistas, para o grupo, para a cidade e para o festival. Para além da visibilidade e do sentido documental da escrita crítica, isso também é uma questão pedagógica (que é diferente de didatismos mirabolantes): é sobre mediação, possibilidade de diálogo e desenvolvimento de pensamento sobre as artes da cena.
#16
Construir comunidades deve ser sempre caminho para a heterogeneidade, não só na forma, nos corpos e corpas, mas também nas ideias.
Por enquanto, ainda sinto uma voz uníssona no Festival Luz Negra.
Como multiplicá-la?
E digo isso vislumbrando a alternativa de ser silêncio (que é diferente de silenciamento).
Esse texto foi produzido durante a cobertura crítica do Festival Luz Negra 2021 (Grupo O Poste), realizado na modalidade on-line com incentivo da Lei Aldir Blanc – Pernambuco.