A era do abandono | Entrevista – Coletivo (In)Comum
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Imagem – Renata Mariane
De 08 a 29 de junho, sempre aos sábados, às 21h, o Cine Joia (RJ) recebe temporada do espetáculo Cine Coração, realizado pelo Coletivo (In)Comum, que marca o reencontro entre o diretor pernambucano, Wellington Fernandes e o ator gaúcho, Klever Schneider. A reunião dos artistas parte do desejo de estudantes nordestinos em pesquisarem a dramaturgia contemporânea do Nordeste e temas do universo gay e resulta no espetáculo que aborda a história de Célio, que conta a sua história a partir de uma pegação no trem.
Brincando entre teatro, antiteatralidade e cinema, Cine Coração reune de diversos textos escritos por Marcelino Freire, Caio Fernando Abreu, Tulio Carella, Jomard Muniz de Britto e Wellington Fernandes (este último diretor do espetáculo) que ajudam a abordar temas como: solidão, a obsessão pelo objeto de desejo, os encontros efêmeros e a eterna busca da natureza humana: amor, paixão e prazer.
Para saber mais sobre o encontro entre o ator e o diretor e o processo de criação do espetáculo, ambos conversaram com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Antes de tudo, poderia fazer uma breve apresentação da sua trajetória e do seu encontro com Wellington Fernandes, diretor do espetáculo?
Klever: Morei no Recife durante 10 anos. Fiz o Curso Regular de Teatro no SESC_Santo Amaro, em 2002. Lembro que eles estavam voltando com essa formação. Entre os professores: José Manoel, Luciana Lyra, Breno Fitipaldi e Wellington Junior. Em 2004, Wellington dirigiu a peça de formação chamada “A Boa” de Aimar Labaki. Na capital pernambucana, eu fiz outras peças como O Noviço, de Martins Pena, e O Olhar do Anjo Pornográfico, uma adaptação de A Mulher sem pecado de Nelson Rodrigues-ambas com direção de Geraldo Dias, As Mulheres de Garcia Lorca, direção de Rodrigo Dourado. Lembrei que o último trabalho foi uma leitura dramatizada “Outra vez, era uma vez“, texto do André Filho (in memorian) e direção de Samuel Santos.
Wellington faz o seu Doutorado na UNIRIO. Eu já morava aqui desde 2010 e tinha o desejo em voltar a atuar. Quando nos encontramos em espetáculos, eu sempre brincava com ele da minha intenção em fazer algo. Desde 2006, eu estava afastado. Eu precisava tirar a poeira. No ano passado (20230, isso foi ficando mais forte. Então, ele me liga e fala de um festival aqui na região de cenas-curtas e propõe o conto “Coração”, de Marcelino Freire. O evento acabou não acontecendo. Resolvemos amadurecer a ideia e montar um espetáculo.
Havia já ali um sentimento de que seria interessante aprofundar esse trabalho. Então é um reencontro na cena com ele depois de 20 anos daquela montagem. Para mim, isso é simbólico. É afetivo. Voltar a ser dirigido por quem me ajudou na formação. Em Cine Coração, o personagem Célio está buscando busca algo. Há uma busca nessa montagem. E tem a minha busca pessoal. Sempre estamos em busca de algo que nos preencha. Tudo tem seu momento. E quando a gente para e pensa, vê que o tempo voa.
Então precisamos reorganizar as prioridades, recomeçar e se envolver com o que te faz bem também. Senti que era agora. Nada é por acaso, eu acredito nisso. Por mais clichê que seja, o bichinho do teatro te reencontra. Provoca! Em nossas vidas, vamos criando um inventário de amor pelas pessoas, pelos nossos sonhos. Carregamos lembranças boas e ruins. Mas deixamos algo também para o outro.
Para mim, é um resgate da minha essência. Vivenciar novamente isso com consciência da importância do papel do teatro. Eu sempre brinco que sou um ‘Pergaoca’, um gaúcho, que viveu intensamente em Pernambuco e agora tem nas terras cariocas uma paixão intensa. Essa mistura de “Brasis” distintos está presente na equipe técnica também. Gente de Teresina (PI), Recife(PE), Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Natal(RN) e Santo Ângelo (RS). Cada um carrega o seu inventário do amor.
“Cine Coração” aborda temas como solidão, obsessão e a busca pelo amor. Como vocês chegaram no desejo de trabalhar com esses temas e como chegaram nos textos a serem trabalhados na dramaturgia?
Wellington: Partimos da obra do Marcelino Freire – especificamente do conto Coração. Depois observei que seria necessário trazer outros textos que pudessem criar “desloucamentos” nessa obra. Venho pesquisando um processo de uma cena DESVEADA do sentido de Nordeste. Então, para criar uma contra-dicção nos ajuda com as contra-narrativas de uma região banhada nos coronéis da cultura e nos feudalismo da cultura. Então precisávamos fazer os textículos se misturarem como uma f(r)icção entre corpus e desejo.
Fizemos nossos arrecifes de desejos. A contra-dramaturgia da peça é esse gesto em negativo. Não falamos do individuozinho pequeno burguês, isso é so aparência. Essa solidão, essa obsessão é nossa tragédia nordestina, nordestinada. Pois os donos do poder nos impossibilitam amar. É na verdade um grito de amor como meio, como um ato de criação. Como cinema-teatro. São pedaços, rastros, fixações do fugidio.
Klever: Em Cine Coração há um relacionamento forte com quem está ali presente. É esse agora. Tentar diante de tantos estímulos no nosso mundo, que nos impede de contemplar mais as coisas,ouvir uma história e, de alguma forma, participar dela. O que vai ocorrer desse encontro com quem estará conosco? Hoje, a gente desliza o feed nas redes digitais em busca de pequenas doses de distração. Somos engolidos por essa distração. Às vezes, nem aprofundamos o que sentimos. Nem sabemos nomear o que sentimos.
Há uma fissura entre o que somos, o que esperam que sejamos, o que queremos ser….uma ilusão que nos afasta de nossa essência. Então o que desejamos é que cada um com sua pluralidade de memórias, sintam, venham juntos e criem seus significados. Que possamos nos encontrar e desencontrar. No paradoxo, algo ocorre. Cada um sabe o inventário que carrega. Cada um carrega muitas memórias. Quando escuta uma frase, trecho de um filme ou senta na poltrona. Há algo muito particular. Há frustrações. Há conquistas. Arrependimentos, dores, dores. Criamos feridas, coisas que podíamos abandonar, mas insistimos. Mas elas nos impulsionam também.
um teXtículo que escrevi durante o processo
“Cada um que cruzei deixou um pouco em mim.
Com certeza, levaram também.
Mas hoje, se eu tatuasse meu corpo não teria
espaço para outro nome que não fosse o seu.
Tenho algumas feridas abertas…mas é na dor que
se cura.
Você inibe a minha dor, sabia?
Haja calor!
Melhor eu parar por aqui ou não?”
O amor e a solidão estão presentes em nossas vidas. Não importa quando. Mas se não experimentou, você vai sentir.
Em relação a peça, nosso desejo é que levem um pouco de nós. É o nosso inventário do amor.
Como foi o processo de seleção dos textos de Marcelino Freire, Caio Fernando Abreu, Tulio Carella e Jomard Muniz de Britto para compor o espetáculo?
Wellington: Surge da necessidade. Essa contra-dramaturgia é como as séries nas artes visuais se montam. Tudo vai sendo puxado. Ai liga e desliga. Tudo parece um drama na vida, mas na verdade é DRAMA EM FATIAS. São reflexos estilhaçados. Contra-imagem. É o abismo. Os textículos entram e são abandonados. Porque vivemos a era do abandono. São amores abandonados. Políticas públicas da cultura abandonadas. Processos abandonados. Teatros abandonados. Cinemas abandonados. Os textos chegam em nosso processo e deixamos abandonar. Mas tudo parece drama. Tudo parece (na aparência) uma lógica de drama como uma paródia, um chiste, um sarro com o mercado teatral das políticas da editalização da cultura, das festivalizações do teatro.
Klever: Eu valorizo o que cada um que esteve antes de mim realizou e ainda realiza. As transgressões, a crítica, aquela provocação que faz refletir e sentir. Todas as escolhas presentes na peça tentam isso. É uma homenagem também. É um resgate também dessa MiXturação. Descobrir formas de entreter e se entreter. São tantas particularidades em Torquato, JMB, Túlio, Marcelino e o próprio Wellington, que se completam.
Essa pluralidade traz camadas densas para o trabalho de atuação. Aí fica mais instigante e prazeroso para mim. Há coisas que preciso abandonar, outras insistir e outras que ainda não descobri. Ainda bem. Muitas certezas, iriam atrapalhar nossa proposta. Quantas memórias eles carregavam? O que pretendiam? Quantas conexões podemos fazer com esse momento de tanta desconexão que vivemos. É atual. É humano e necessário. São fragmentos, sobreposição de significados, cortes e rupturas que dão sentido ou não.
Como falei antes, a gente desliza o feed num ritmo alucinado para distrair. Estamos intoxicados com tanta informação/desinformação/fake news tão aí para provar. Não se questiona. Se compartilha. Alguns esquecem o poder de se perguntar ao menos: Será mesmo? Outros pela má-fé, aí é outro papo. Em cena, a gente provoca um pouco, desliza esses sentidos, descobre a força dos sentidos, na intimidade da ação, no imediato e o risco ali envolvido.
Na apresentação, vocês citam que, em “Cine Coração”, também existe um desejo de brincar com a mistura entre teatro, antiteatralidade e cinema. Como esses elementos transparecem no espetáculo?
Klever: A atmosfera que queríamos era adequar um personagem que conta uma história de amor. São lembranças e desejos. Um cinema tem suas memórias, um caráter afetivo. Como não lembrar das grandes divas que sofreram por amor? Encontramos um local ótimo no Rio de Janeiro que tinha essa característica. O Cine Joia, em Copacabana. Com sua magia e suas histórias, o lugar reúne tantas alegrias, tristezas, um inverso de vivências intensas. Um local que reúne pessoas de todos os tipos. É uma mistura de Brasis.
Quando transpomos da literatura para teatro, algo novo se cria. Tentamos ao mesmo tempo uma ruptura com essa automatização de nossas vidas. Isso gera um impulso da presença. É a força da palavra e o que ela provoca. Tentamos fugir do risco quando tiramos a ilusão da 4ª parede. Vocês estão comigo nessa? Como diria o personagem Célio: “Na minha solidão cabe uma multidão.!” Cinema e teatro gozam juntos. É um Ensaio sobre um outro. Esse outro pode ser qualquer um ali presente! É uma interrupção direta para que haja uma reativação de quem está ali assistindo o espetáculo. Há sempre uma vulnerabilidade presente. É brutal também. Mas isso é humano.
Buscamos também utilizar referências do local que interferem de alguma maneira na cena. Não escondemos que é um cinema. Os quadros, a tela, as poltronas estão conosco. Não fingimos. É um relacionar-se no momento presente de cada encontro. Vejo, hoje, diante de tantos estímulos lá fora, a dificuldade em ouvirmos o outro. O olho no olho. Reagir com o que ocorre ali. É uma relação próxima. Educar os ouvidos, sentir juntos e buscar formas de contar o que desejamos. Desacelerar sem ficar passivos diante dessa relação.
Aprofundamos nossa pesquisa Josette Feral e o teatro performativo, Teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehmann, entre outros, e a partir disso, num processo de mais de 7 meses, brincar com essa ideia de Teatro num Cinema que também é teatro. Será um jogo interessante. É um processo que não acaba na estreia. Se eu pudesse resumir seria algo como: Que você sinta-se tocado e leve algo desse momento. Alguma coisa sempre fica!
O espetáculo integra as ações do Coletivo in.comum, formado por estudantes nordestinos na Unirio, e se interessa pela pesquisa e desenvolvimento da dramaturgia contemporânea do Nordeste e dos temas do universo gay. Como foi o encontro de vocês e como essas temáticas vêm se desdobrando nos seus trabalhos atuais e futuros?
Wellington: Fazer teatro no Brasil, no Rio de Janeiro com artista em processo migratório é o retrato de nossa precarização. Surgimos em 2016 com um coletivo de quase 10 artistas (todos alunos e alunas da Unirio dos mais diversos cursos.). Hoje, praticamente, restou em ação apenas eu. Muitos desses artistas talentosíssimos tiveram que voltar para suas regiões por causa das descontinuidades das políticas públicas na área da cultura e da educação no país. Não quero pensar que a pesquisa do Coletivo In.comum é a minha pesquisa, pois estudo o Teatro do Nordeste (com os problemas que essa expressão tem).
Temos muitos projetos futuros que saem desse campo. Queremos montar a peça Kitnet 81 de Eraldo Maia, dramaturgo nordestino residente em São Paulo. Além de fazermos uma pesquisa sobre a obra de Orris Soares com seu texto Rogério. Desdobrar estudos sobre o pensamento encenado do Nordeste com obras sociológicas e filosóficas que tem uma certa ideia de teatralidade. Então temos de parar e pensar que vamos fazer 10 anos de grupo logo logo. E o que fazer diante da pulverização e rarefação de recursos. Como não viver de um Teatro de projeto e talvez pensar um certo projeto de Teatro. Hoje o agrupamento vem se transformando com a chegada de novos integrantes. É seguir de alguma forma.
Klever: Passei a integrar o coletivo com o convite do Wellington para essa Mixturação de teXtículos. E a ideia é aprofundar com outras pesquisas, imersões, realizar oficinas e amadurecer essa ideia de grupo. Outro fator que me atrai, é a pesquisa, o aprofundamento e as experimentações. Se jogar em algo desafiador. Algo que o Coletivo tem em sua alma. Sozinhos não conseguimos. Juntos podemos ser uma potência neste fazer teatral mesmo com todas as dificuldades conhecidas.
Precisamos criar caminhos também para que a viabilidade desse nosso desejo seja possível. Amamos a arte, esse caos e essa transformação, mas é importante que o aspecto financeiro seja levado em conta. Todo profissional precisa ser reconhecido, seja aplausos ou não, mas financeiramente. Eu passei a entender mais isso nessa minha retomada. A valorização é importante. É necessário encontrar caminhos para isso. Acredito que com o Coletivo (In) Comum isso seja um ponto de partida.
SERVIÇO
Onde – Cine Joia (Av. Nossa Senhora de Copacabana,680, subsolo- Rio de Janeiro)
Quando – Sábados de Junho-Dias 8,15,22 e 29 ⏰ 21 h
Quanto – Sympla R$ 40 (inteira) | R$ 20 (meia-entrada lista amiga e antecipado)