“… a vida real está saturada de teatralidade…” – Entrevista | Teatro de Fronteira
O Teatro de Fronteira (acessa fanpage AQUI) vem se tornando um dos grupos pernambucanos com trabalhos cada vez mais frequentes e apoiados em pesquisas contínuas relacionadas justamente à fronteiras entre as artes da cena e outras formas de representação. Atualmente, o diretor Rodrigo Dourado continua em temporada com o autobiográfico e divertidissímo Na Beira (leia mais AQUI) e abriu uma fresta na agenda para conversar um pouco conosco sobre os temas que motivam o grupo e seus processos criativos.
Entrevista – Márcio Andrade
Interessante como “Na Beira” mescla dois movimentos que vem se tornando cada vez mais comuns no teatro que vemos atualmente: a questão da autobiografia e do espaço domiciliar como palco. Como surgiu o interesse em realizar um espetáculo com esta miscelânea?
Rodrigo Dourado: A pesquisa do Teatro de Fronteira com o teatro documentário começou em 2006, com uma cena curta, que teve uma única apresentação, chamada “Pizza Coca e Crime: o dia em que Pai Ubu Marcola cagou no Brasil”, construída a partir de uma entrevista de Marcola, líder do PCC Paulista, uma facção criminosa. Na verdade, tratava-se de um depoimento dele a uma CPI que investigava o crime organizado, transcrito e publicado pela Revista Caros Amigos. Aquele depoimento me causou tamanha impressão, pelo flagrante disparate que era a lucidez do criminoso sobre a realidade brasileira em contraponto à ignorância dos políticos que o inquiriam, de maneira que imediatamente decidi levar o material para a cena. Recriado de forma satírica e paródica junto aos atores Greyce Braga e Marconi Bispo.
Somente em 2012, começamos a mexer com a memória e a autobiografia no espetáculo “Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases”, em que se mesclavam as narrativas da dramaturgia original (“Les Drôles”, de Elizabeth Mazev) com as histórias de vida dos atores (Fátima Pontes e Leidson Ferraz). Esse último trabalho era uma coisa muito viva, as pessoas saíam muito mexidas, nos cumprimentavam e agradeciam por compartilhar aquelas memórias e permitir que elas também as revivessem. Eram narrativas da intimidade, que, no entanto, tinham um apelo muito coletivo.
Plínio Maciel, amigo-ator de longa data, foi ver a peça e nos convidou para um jantar (que nunca aconteceu! – risos), mas sempre que me encontrava, recuperava a memória da peça. Eu já vinha observando Plínio nos encontros de amigos, nas mesas de bar, a capacidade de ele mobilizar a atenção com suas histórias. No entanto, Plínio era um ator que estava totalmente afastado dos palcos, porque não havia uma proposta que abarcasse essa capacidade natural de ser um contador de histórias que ele tem. Tudo era muito formal, engessado, muita dramaturgia, muita composição de personagem, muito método. E isso não tem nada a ver com Plínio e tem cada vez menos a ver comigo. Então, quando ele me disse que gostaria muito de voltar à cena fazendo algo parecido com “Olivier e Lili…”, eu respondi: só se for contando suas histórias.
Coincidentemente, Plínio e eu estávamos envolvidos de cabeça no movimento de Teatro em Casa. Ele como diretor-assistente do projeto Teatro de Quinta e eu com outros solos em minha casa. Então, imediatamente, surgiu a idéia de fazermos algo sobre ele e na casa dele, que é um verdadeiro museu, tamanho é o apreço e o carinho que Plínio tem com sua memória. Assim, nasceu “Na Beira”.
Como funcionou a escolha das histórias e anedotas que se tornariam o espetáculo? E como foi o processo de transformar uma memória bruta em uma representação narrativa/dramática?
RD: No começo, não sabíamos para onde caminhar e eu adoro processos sem metodologia prévia, em que a metodologia vai sendo descoberta no fazer. Então, nos encontrávamos e ele ia contando algumas histórias, mostrando coisas. Eu pedi que selecionasse as melhores histórias para ir me contando e nossos encontros eram isso, eu a ouvir as histórias de Plínio. Sempre pensando em como teatralizá-las, torná-las ação. Mas havia um jeito de contar, com sutis esboços de personagem e ação, que já era muito interessante e espontâneo. Nisso, não mexi muito, apenas provoquei-o a achar cada vez mais essa teatralidade instintiva.
Algumas histórias eram muito longas, outras não tão interessantes, outras rápidas demais e fomos, juntos, fazendo a seleção dos melhores “causos”. Com alguma dificuldade, porque eu era a única platéia que ele tinha e um “causo” contado uma vez, não tem o mesmo efeito quando contado pela décima. Uma única história, a que encerra o trabalho, sabíamos que teria de entrar porque era o carro-chefe dele. À medida que ele abria o baú de histórias, os objetos que o ajudavam a recuperar esta memória foram saindo dos baús também: fotografias, roupas da infância, souvenirs. Era tudo tão bem cuidado e tão imantado de memória e afeto, que imediatamente os transformamos em objetos de cena. Por fim, meu grande desafio era encontrar uma forma performática para justificar aquele derramamento de memória. Como chamar a platéia, como agregá-la, como torná-la elemento do jogo? Porque, do contrário, fica uma coisa confessional apenas. E a chave era muito simples, embora tenha sido difícil achá-la: Plínio costuma contar essas histórias nos encontros de amigos e é uma espécie de elemento de socialização dele para fazer novos amigos, abrir-se logo, ganhar as pessoas pelo riso.
De forma que reproduzimos este ambiente, de uma recepção em casa, com boa comida, bebida gelada e um ambiente sem grandes formalizações teatrais, sem divisões rígidas de espaço, de tempo, sem pirofagias. E o jogo começa sem que a platéia sequer perceba e, aos poucos, a performatividade está instalada, mas de maneira improvisada, casual, aberta ao incerto. Enfim, tem-se um jogo, com algumas regras, mas sem grandes amarrações e ao sabor da incerteza.
A dramaturgia do espetáculo brinca com o acaso e o improviso quando propõe um jogo com os monóculos e as cartas, em que o público termina escolhendo a ordem em que as histórias são contadas. Como funciona este exercício para o a(u)tor? Existem elementos de memória que ficam de fora ou que surgem repentinamente a cada apresentação?
RD: Sim, existem. Não há um texto, mas somente um roteiro, que foi sendo construído aos poucos a cada apresentação. Plínio lembrava de um detalhe, queria acrescentar uma coisa, trazia mais um objeto, abria outras janelas nas histórias. Agora, estamos numa etapa em que as histórias estão mais fechadas, ele sabe melhor como abri-las e como fechá-las, sem se perder. De toda forma, são tantas camadas de memória, que é preciso considerar a memória da própria cena: “agora tenho de fazer isso, agora aquilo, agora ponho o disco, agora pego o objeto, agora coloco um elemento de figurino”. E para ele é uma maratona, lidar com a memória das histórias, com a memória da cena, receber as pessoas na própria casa, preocupar-se em recebê-las bem.
Você imagine: houve um espetáculo em que uma senhora passou mal e tivemos de parar a cena para levá-la até o quarto e colocá-la na cama e, mais à frente, Plínio perguntava: “como é que ela está? Dá uma olhada lá no quarto, Rodrigo”. Às vezes, alguém pergunta: “onde está o abridor de cerveja?” Ele responde: “ali na gaveta tal”. Então, é uma memória prodigiosa e um desafio grande. A maneira como o jogo é construído também faz a dramaturgia se moldar a cada grupo, afinal, as mãos que escolhem as histórias são nossos guias. Imagine que já fizemos a peça para duas famílias que haviam perdido, pouco tempo antes, entes queridos e convocaram o “Na Beira” como momento de divertimento e encontro. Nesses dias, uma das histórias – que remete a uma passagem num cemitério – foi deixada por nós – inadvertidamente – entre as possíveis histórias, mas por força de Dionísio nenhuma mão a escolheu, porque teria sido um desastre. Agora, estamos mais atentos!
O Teatro de Fronteira, de Olivier e Lili e passando pelos solos SoloDiva e Complexo de Cumbuca, vem investindo cada vez mais no desvelamento do espaço de intimidade das pessoas que criam o espetáculo. Como este tema vem parecendo se tornar um tema de pesquisa para o grupo e que outras reverberações vocês pretendem desenvolver?
RD: Talvez porque eu seja jornalista e tenha esse interesse pelas histórias de vida mais comuns… E também porque está dando certo (risos). Sim, trabalhamos nestas frentes: do biodrama, do documental, do autobiográfico, do teatro contaminado pela performance, do interesse pelos estratos subalternos, pelas histórias de vida invisíveis, pelas memórias silenciadas, pela dramaturgia contemporânea. Há quem diga que eu adoro um “esquisito” e eu adoro mesmo! (risos) Agora, caminhamos para a manutenção dos três solos: “SoloDiva”, “Complexo de Cumbuca” e “Na Beira”. Estão disponíveis para rodar, é o nosso projeto “Roda Teatro na Minha Casa”. Quem tiver interesse em receber um dos solos em seu espaço domiciliar, pode nos contactar que negociamos. Haverá ainda uma colaboração com a Trupe Circus, da Escola PE de Circo, numa pesquisa envolvendo circo / teatro / biodrama e que resultará num espetáculo. Realizaremos, junto com os grupos que integram o Movimento de Teatro Domiciliar na cidade, a I Mostra de Teatro em Casa, no mês de agosto.
Montaremos em 2015 / 2016, o espetáculo “O Caso Laramie”, que recebeu uma leitura dramática ano passado. É uma tradução nossa para um texto documental americano sobre um crime de ódio contra um jovem homossexual. Ainda este ano, realizaremos um Curso de Iniciação à Performance, com apoio de Funcultura. E realizaremos o projeto “Roda Teatro: Experimentos Ocultos”, que levará um grupos de espectadores para a casa de um artista da cidade (sem quem a platéia saiba de quem se trata) e esta pessoa oferecerá uma performance envolvendo sua vida/casa e sua arte. Temos grandes nomes escalados para esse último projeto, vai ser uma lindeza. Enfim, coisa para caramba!
O que vocês acham sobre este nosso interesse contemporâneo por narrativas que revelem mais estes “efeitos de real” do que as tradicionais narrativas ficcionais? Vocês acham que vivemos uma saturação das imagens artificiais?
RD: Vivemos. Há uma grande discussão sobre o conceito de teatralidade, mas basta dizer que, desde Platão, a teatralidade é vista com desconfiança, porque é sinônimo de “inverdade”, “falsidade”. Então, no contemporâneo, confirmamos a hipótese de que a vida real já é um grande teatro, está saturada de teatralidade. E parece que o teatro, então, está tentando se aproximar da vida, trazê-la em estado quase bruto para a cena, como se o teatro buscasse a realidade e a realidade se assumisse cada vez mais teatralizada. Grande paradoxo. Mas não se trata de um novo realismo, porque aqui o objetivo não é imitar o real. Trata-se de enquadrar o real artisticamente, achar a poesia nele, a metáfora nele, a dramaturgia nele, a personagem nele. Isso passa também pela relação do teatro com o cinema e a televisão, pois esses últimos produzem efeitos de realidade muito potentes, então se tornou até algo patético o teatro realista, ilusionista. Então, o que restou ao teatro: afirmar seu caráter diferenciado de encontro entre seres humanos, caráter próprio das artes da cena, também chamadas – não por acaso – de artes da presença.
Valorizar o encontro é valorizar o ser humano e, então, essa camada ficcional, da personagem de papel, distante, enquadrada no palco italiano, ela foi sendo abolida. Isso é um débito grande do teatro com a performance: se estamos aqui no mesmo espaço/tempo, eu e você, o que podemos fazer desse encontro? Vamos contar uma história ficcional sobre alguém distante de nós ou vamos nos conhecer melhor? Claro que a resposta é: vamos nos conhecer melhor! Além disso, há um interesse crescente pelas micro-histórias, pelas narrativas da intimidade, estimulado certamente pelas novas tecnologias, que permitem o acesso fácil ao ambiente íntimo, mas também por um cansaço e uma desilusão grandes diante das macro-histórias, das histórias oficiais. O Richard Schechner, pai dos estudos da Performance, fala isso: nossos dramaturgos não são mais Shakespeare ou Molière, mas a CNN e os telejornais. Eles nos contam as grandes histórias do mundo e o elemento humano, íntimo, micro, aparece para construir identificação e afetividade. Então, o teatro sofreu todos esses impactos e agora caminha por essa estrada incerta do documental.