Crítica – A Fuzarca dos pés descalços | E agora?
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Imagens – Divulgação
Por Poliana Pitteri
Atriz, diretora, pós-graduada em Teatro Educação e fundadora da Cia Naturalis de Teatro
“É opcional a retirada dos sapatos, tá?” Eram mais ou menos essas as palavras ditas na entrada do teatro enquanto recebíamos duas toucas descartáveis para colocar no pé. Era a entrada do espetáculo A Fuzarca dos pés descalços, do Coletivo dos Anjos.
Eu tenho pra mim de sempre aderir à experiência proposta pela cena. Ao me sentar nas cadeiras dispostas em semiarena, admirar o cenário bem pensado, coerente e muito bonito, retirei meus sapatos e segui a instrução dada pelos próprios atores, já em cena, de colocá-lo no meio do palco. Logo, um amontoado de calçados finalizava o cenário. Os pisantes participaram da cena como objetos cênicos, ora sendo usados nos próprios pés dos atores, ora consertados e ora reconstruindo cenário. Enquanto isso, nós, público, junto ao elenco, compúnhamos a fuzarca dos pés descalços.
O texto da peça foi inteligentemente inspirado no clássico Esperando Godot, do autor Samuel Beckett. A peça foi escrita em 1949 pelo autor irlandês. E nessa adaptação, premiada pelo Prêmio Festival Cultura Inglesa, o texto trata sobre as revoltas promovidas por pessoas negras na história do Brasil, cita pensadores e pensadoras negras, questiona lugares de existência, resistência e denuncia racismos ainda velados e já tecnológicos. Entre os atos, o muro, que separa o mundo deles, os que usam sapatos, e dos que estavam sem sapatos, era a grande barreira simbólica a ser vencida, quebrada e superada.
Com a atuação viciante dos atores Eder dos Anjos e Saloma Salomão e os músicos Ito Alves e Juh Vieira, com a linguagem do teatro épico, através da narrativa histórica, a nomeação dos atos, os atores sobrepondo-se as personagens e contato direto com o público, a Fuzarca dos Descalços alcança uma excelência em cena, sem cair no comum do que temos visto nos teatro de grupo de São Paulo, onde a forma brechtiniana pouco se renova e pouco tem surpreendido em investigações cênicas. Aqui, forma e conteúdo se combinam ao tratar de um tema já comum em cena, mas através da angústia, da solidão e do questionamento da existência.
Pois é também sobre isso a espera de Godot. E para referenciar o expressionismo de Beckett, há uma cena em que o jogo de luzes e sombra nos remete as formas não naturais e estilizadas, própria desta corrente estilística, relembrando o cinema expressionista dos anos 20, com O Gabinete do Dr. Caligari e Nosferatu. Destaque também para a iluminação, que se fez efetiva sem grandes elaborações, dialogando com atores e público. Foi pontual. E a música que, sempre melhor quando ao vivo, foi executada de forma original, atuando em consonância com as falas e movimentos dos atores.
Ressalto mais uma vez a atuação. Salomão tem um magnetismo, uma sutileza em cena. Minha vontade era apenas olhá-lo e deixar fluir dentro de mim tudo que ele dizia ou fazia em cena. Cada gesto e palavra reverberaram no instante do ato. Em dado momento, ele sentou-se com uma caixinha em mãos, se curvou e lá ficou escutando as falas de seu parceiro de cena. A paz que ele transmitia em meio à confusão, conflitos e necessidade de agir para combater o que o muro separa, não renegando a luta, mas antes, ciente de seus momentos e histórias. Essa paz que o ator transmitiu com corpo, voz e olhar foi um dos diferenciais no trato de um tema que nos acostumamos a ler, ouvir, comentar…. A peça aprofundou o olhar, ampliou a visão sobre o assunto de raça, desigualdade e cor. A diretora Aysha Nascimento desenvolve um trabalho de excelência, que revela muita competência e ansiedade em assistir mais trabalhos do Coletivo dos Anjos.