Crítica – Circuito 1×1: lutas e desejos | Egoísmos Líquidos
Imagem – Divulgação
Por Matheus Campos
Graduando em Letras, ator e dramaturgo
“Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê?
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho
Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?”
Neguinho – Gal Costa
“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”
Zygmunt Bauman
Numa música repleta de críticas e provocações sobre o modo de vida que tantos e tantas neguinhos/branquinhos/amarelinhos/laranjinhas vivem, Gal Costa espeta os valores-chagas enraizados no hodierno e problematiza o quão natural esses valores-chagas são para a sociedade. Consoante a essa visão, nos deparamos com as observações do sociólogo Zygmunt Bauman em suas teses sobre os tempos líquidos, as quais ele afirma que o comportamento humano está extremamente ligado às novas práticas capitalistas de consumo.
O tempo não para e nós também não: queremos nos satisfazer agora, queremos nos satisfazer cada vez mais e mais, simplesmente queremos. E, não importa, fazemos tudo para nos satisfazer. A vida passa a ser uma obsolescência programada dos prazeres, das vontades, o hiperativo e imperativo desejo do EU subjugando as oposições e as diferenças.
Partindo dessa ideia, encontro com a performance Micro-circuito 1×1: lutas e desejos, de Matheus Machado, no dia 08 de novembro de 2019, na XII Semana de Cênicas (UFPE). Uma atividade performativa que se apresenta como o nome indica; um circuito, dividido em três salas; em cada sala, um performer e apenas uma pessoa por vez poderia participar da ação performativa. Ao invés de lançar narrativas sobre a performance, prioritariamente me debruço no turbilhão de sensações e pensamentos provocados durante e depois do processo. Ele perpassa e atravessa o âmago de quem participa, provocando a não-existência de um espectador estátil, mas um espectador-performer.
Ao se despertar diferentes habilidades sensoriais com sons, gostos, texturas, cores e cheiros, surgem provocações em todos os “eus” existentes no espaço. Desconfortos e conflitos são gerados. Memórias transcorrem e transbordam pelos corpos; vontades e desejos se confrontavam. O processo se apresenta literal e simbolicamente individualista. Mas, até onde (e quando) os desejos do meu eu interferem no outro? E quando (e até onde), conscientemente, permito essa interferência?
Por ser individual, o “eu” inicialmente era o centro de tudo: egoísmo, egocentrismo e subjugação eram as palavras imperiosas no início da participação. Entretanto, com o tempo, tudo se transforma em uma relação de troca entre os presentes na sala: olhares se trocavam, vontades se impunham e se desfaziam; era um ciclo inicialmente interesseiro, dependente. Com o tempo, os corpos na sala estavam afetados, cansados e doentes por tantas brigas de interesse. O cansaço e as dores nos olhares descortinam o desconhecido no outro; máscaras literais e não literais se desfizeram; por trás de cada ânsia e loucura desenfreada havia medo, dor, vazios inexplicáveis. Mas, todos os desejos se tornaram um só: empatia.
Havia reflexos de nossas ações no outro, haviam indícios de medo, havia algo em comum que nos motivava e nos fazia sentir que, no fundo, apesar de tudo, apesar de todas as mazelas do mundo, somos um só. Havia ali um latente pulsar de corações e gritos de socorro exprimidos pelo olhar, por pessoas aprisionadas em gaiolas sociais. Ao final da performance tudo era trêmulo, líquido e a velocidade das coisas ao redor me assustavam. Mas, eu ainda estava sensível ao mundo, sensível às lutas de interesse/desejo, ainda estava sensível a mim e uma pergunta reverberava por minhas estruturas: O que eu quero de verdade?