Crítica – Dinamarca | A Dinamarca (não) é aqui!
Imagem – Bruna Valença
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Muitos estudos, hoje, vêm refletindo sobre a relação entre os textos clássicos gregos e o teatro contemporâneo. Por que muitos dos artistas teatrais pós-modernos têm se voltado às tragédias gregas como fonte para seus trabalhos, sobretudo dos anos de 1970 em diante? Em seu livro Dioniso desde 1969: Tragédia Grega na Alvorada do Terceiro Milênio, Edith Hall reúne alguns estudiosos da antiguidade clássica para compreender o discurso da recuperação das tragédias gregas na pós-modernidade, a partir de quatro categorias centrais: a social, a política, a estética e a intelectual/filosófica. Ou seja, conforme esses estudiosos, os artistas teatrais contemporâneos procuram compreender, à luz do que oferecem as tragédias gregas, a sociedade atual, nas suas dimensões sociais, políticas, estéticas ou intelectuais/filosóficas. O resultado de muitos desses trabalhos costuma ser bastante revelador.
Os rapazes do grupo Magiluth, em vez de recorrerem às tragédias gregas para seu novo trabalho, partiram de outro texto clássico, dessa vez Hamlet, uma das peças mais lidas e encenadas do dramaturgo William Shakespeare. Dinamarca é o nome do espetáculo, com texto de Giordano Castro e direção de Pedro Wagner. Em vez de aportarem na antiguidade clássica, foram ancorar no Renascimento europeu. Na Modernidade. Essa questão histórica é deveras significativa. De antemão, vale ressaltar que só podemos pensar na Modernidade considerando sua íntima relação com o capitalismo, com o colonialismo e com o patriarcalismo…
Bem, como povos colonizados, recebemos da Europa uma herança maciça das Belas Letras e das Belas Artes, e Shakespeare entrou nesse pacote. Fomos “educados” a apreciar a obra monumental do bardo inglês. Na colonização de nossos saberes, os colonizadores alçaram o teatro de Shakespeare à categoria de cânone universal. Harold Bloom, no livro Shakespeare: a invenção do humano, um dos estudiosos mais autorizados da obra shakespeariana, chegou a defender a tese de que Shakespeare inventou o conceito de humanidade.
Ora, se o Magiluth não fosse um grupo dotado de uma percepção crítica das dimensões estéticas e políticas do mundo, poderíamos testemunhar, muito possivelmente, um mero trabalho de tradução cênica do clássico shakespeariano, com direito a rufos no figurino e a um macaqueamento dos modos ingleses de atuação. Nada disso ocorre. O que vemos em cena são vestígios da obra original. Hamlet é uma peça que trata do poder, da legitimidade/ilegitimidade política e de vingança. Um rei é morto, numa trama em que estão envolvidos seu irmão (o assassino) e sua esposa. Houve um golpe e o fantasma do rei apela ao filho, Hamlet, por vingança. Qualquer semelhança com o golpe parlamentar e midiático que o Brasil sofreu há um ano não é mera coincidência. Os meninos do Magiluth perceberam, acertadamente, equivalências entre a Dinamarca hamletiana e o Brasil atual: o golpe, a ganância, as disputas pelo poder, a traição, as hipocrisias.
O espetáculo acontece ao longo de uma festa. O público torna-se os convidados. Foi inevitável lembrar, em nosso contexto político, dos escandalosos banquetes que o atual presidente tem oferecido aos parlamentares, a fim de comprar, com dinheiro público, os votos favoráveis à aprovação dos projetos de lei que fazem concessão ao mercado global, em detrimento dos direitos trabalhistas e sociais conquistados a muito custo nesses últimos anos de nossa história. Em cena, personagens que gozam do privilégio de serem dinamarquesas, brancas, masculinas e poderosas. Sim, o masculino é dominante, até porque a única mulher que avulta em cena, a rainha, é assim interpretada pelo próprio filho: “Fragilidade, o teu nome é mulher”. Mais outra equivalência com nosso congresso machista e misógino.
Ao mesmo tempo em que os Magiluth, em Dinamarca, se posicionam criticamente frente ao atual (des)governo brasileiro, eles também assumem, a meu ver, uma postura anticolonialista diante dessa herança cultural a que me referia. Os artistas, subalternos e periféricos, receberam o texto canônico e o dessacralizaram, desmembraram-no, retiraram-lhe sua hybris fundamental, fragmentaram-no, deglutiram-no. Em sua dramaturgia, Giordano Castro performatizou em cima do texto clássico. Implodiu a tragédia, mas manteve o sentimento trágico do mundo, ressignificando-o.
A crise dos valores éticos nas sociedades ocidentais contemporâneas encontra na tragédia shakespeariana um lugar para a autorreflexão. As personas que os atores do Magiluth performatizam, apesar de todos os privilégios que possuem, não são felizes e procuram artificialmente viver a felicidade. Seus prazeres são fugazes. Sua alegria, falsa. Seu companheirismo é frágil. No mundo dominado pelas leis do mercado e da livre concorrência, a amizade é enganosa. Ninguém é amigo de ninguém. Vivemos num sistema político e econômico de exploração predatória da natureza e da força de trabalho. Neste mundo mercantilizado, o sujeito está cada vez mais só e se depara constantemente com suas angústias íntimas, com seus medos, com sua vulnerabilidade. O monólogo final de Giordano é apocalíptico e aponta para um fim trágico da humanidade.
O trágico está presente em toda apresentação, mas Dinamarca não é um espetáculo pesado, carregado. A direção precisa de Pedro Wagner consegue trazer leveza ao seu trabalho. O grupo Magiluth mantém aqui suas opções estéticas e estilísticas, centrando seu trabalho no que podemos chamar de teatro performativo. Nesse teatro, há uma recusa da dimensão dramática, representacional (os atores não interpretam personagens: performatizam suas ações); um apelo à receptividade do espectador de natureza essencialmente especular; um investimento contra a separação radical entre cultura de elite e cultura popular, entre “alta” cultura e cultura de massa. Só para se ter uma ideia, colocar num mesmo cadinho Shakespeare e Leonardo Sullivan deixaria os canônicos de orelha em pé. Contudo, a cena rende, flui, é saborosa, apesar da presença sempre indigesta do sentimento trágico.
O Magiluth parece estar confirmando as ideias de Robert Lepage, como nos faz ver Josette Féral (Por uma poética da performatividade: o teatro performativo): “com intuito de estar de acordo com sua época, o teatro deve dar conta da evolução dos modos de narração, dos modos de percepção e compreensão do mundo. Não se pode mais fazer o mesmo teatro senão pelo passado, mesmo se no fundo são sempre as mesmas histórias que nele são contadas”. Com Dinamarca, o grupo alcança um dos grandes momentos de sua trajetória, registrando sua arte e sua voz num tempo extremamente delicado de nossa história.