Crítica – Donos | O corpo se alia à natureza na luta por direitos
Imagem – Divulgação
Por Marcos Filho
Graduando em Letras (UFPE)
Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.
Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza…
Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.
Dorival Caymmi – Versos Escritos N’água
No instante em que entrei pelo portão do Centro de Artes e Comunicação (CAC) senti um clima diferente e agradável, especialmente por causa da alegria e vontade contagiante de alguns alunos. Percebi o que era: se tratava da preparação para a abertura da XII Semana de Cênicas da UFPE. Após uma voz ecoar pelo hall do centro, a plateia foi convidada para assistir à primeira performance do festival: Donos, do Coletivo Cantantes da Resistência (UFPE).
Após uma breve espera, o ato se inicia em frente a um banco que está localizado entre a plateia, que formou um círculo para acolhê-los. O círculo é um grande representante aqui, pois ora está como o acaso, ora como potência. São oito performers, quatro deles são negros que seguram juntos um balde aparentemente com algo dentro. E quatro brancos que estão atrás, como domadores, aparentemente mandando nos outros, que cantam e se dirigem ao banco que estava no centro do jardim.
A performance caracteriza um embate atual: a tentativa de enquadrar os negros em “categorias” (como: inferiores, descapacitados, um lugar de simples servidão trabalhadora) excluindo eles de lugares em que os brancos sempre estiveram com naturalidade. Nesse caso, a narrativa se constrói, justamente, com as pessoas negras em um cenário de relações abusivas e criminosas de trabalho, no qual todas as performers negras são humilhadas, apanham e são violadas moralmente.
Apesar de toda a situação revoltante e absurda – a plateia visivelmente se sente abalada, com reações de surpresa e certa repulsa à situação – ainda há uma congregação que os une em resistência. As quatro performers negras, agora no chão, e em círculo, ancestralizam dores e lutas. Os movimentos que eles fazem são como um espírito que carrega essas dores, mas que, na primeira oportunidade, irá realizar uma reviravolta (assemelha-se ao conceito nietzschiano de metamorfose: onde há o camelo, o leão, e a criança, os três simbolizam fases de amadurecimento de persistência e criação).
Nisso, ao entrar em contato com o líquido que estava no balde, há um contato também com a natureza. A água, que é vida, mas também pode matar – aparentemente as pessoas brancas tinham envenenado a água – é um símbolo de comunhão. Eles se misturam com a água, que parece suja, mas na verdade, está carregada com toda a força e potência que a natureza tem. Agora, eles se transformam em um só com, corpos e água, e passam a se reerguer e revidar. Quando as outras performers voltam, não há mais aquela hierarquia, pois todos encontram de pé, um em frente ao outro. Essa posição é crucial para elucidar a proposta da performance, que é uma luta incessante pela igualdade de direitos. Assim como na citação do início do texto, os negros ainda sofrem discriminação e, muitas vezes, são subjugados e não são levados a sério nas universidades e em outras instituições. O racismo velado ainda faz parte da sociedade, mas Donos se posiciona firmemente contra essa estrutura.