Crítica – Negra Palavra – Solano Trindade & Luiz Gama – Uma voz pela liberdade | Caminhos diferentes, encontros parecidos

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Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Apagamento, invisibilização, silenciamento: esses são os substantivos que conectam, em primeiro plano, os espetáculos Negra Palavra – Solano Trindade e Luiz Gama – Uma voz pela liberdade, os quais foram apresentados durante o Festival Luz Negra deste ano. As aproximações entre essas duas obras também se dá pela poesia, gênero literário comum a Solano e Gama, assim como pela biografia desses personagens históricos, ainda que tenham habitado temporalidades distintas em vida. Ambas as peças se movem pelo desejo de rememoração dos dois intelectuais, dando destaque a suas lutas contra a opressão e subjugação das populações afro-brasileiras. Ao assistí-las no contexto do festival, no entanto, o que parece emergir é justamente o contraste entre os espetáculos.
Usos biográficos e jogos temporais
O gesto de reinscrição da história oficial e negras brasileiras se manifestam nas duas peças. Tendo em vista o projeto canônico, eurocêntrico e embranquecedor que edifica o mundo como conhecemos, levar aos palcos a memória e vida de Solano Trindade e Luiz Gama revela o movimento de tornar visível tais trajetórias históricas, além de investir nas reformulações das representações dos corpos negros em cena, atreladas às antigas estratégias de valoração/positivação/valorização das culturas negras, dentro de uma gramática de contraposição ao mundo anti-negro fácil de identificar, como os substantivos que mencionei anteriormente.
Negra Palavra e Luiz Gama trilham e reescrevem as memórias e datas relevantes da biografia de Solano Trindade e Luiz Gama, dando destaque aos fragmentos de histórias que ainda não são comumente conhecidas, se comparadas a outras trajetórias, sobretudo de líderes e intelectuais brancos. Os espetáculos aproximam o público das lutas coletivas empunhadas pelos dois personagens, mas também conectam às dimensões mais particulares, como a relação com a cidade em que viviam ou suas questões interpessoais com a família.
O espetáculo da Companhia de Teatro Íntimo e do Coletivo Preto traz um grupo de homens negros, onde todos eles são Solano Trindade. A ideia de multiplicação e amplificação de vozes, além de unir em cada um dos performers um pouco da energia de Solano, cria uma amplitude para a dramaturgia e para a biografia do intelectual. Eles cantam, dançam e recitam as poesias de Trindade. Cada verso torna-se um som ou um movimento, o qual se manifesta nos corpos e cria espaço para que os jovens negros performem suas próprias existências, ao contarem um pouco de si mesmos em meio as histórias de Solano Trindade.
Já em Luiz Gama, a escolha pelo gênero dramático e por uma encenação nos moldes tradicionais faz com que essa relação com a biografia se torne mais convencional, prezando pela estrutura em que se deixa explícita a vontade de contar algo sobre o passado. No entanto, um outro jogo em relação à temporalidade é ativado: apesar de não colocar a subjetividade dos atores para dentro do espetáculo, o fato de Luiz Gama (Deo Garcez) contar sua história após o seu enterro, em um gesto de fabulação, como uma obra póstuma, fissura a estrutura temporal dramática, abrindo espaço para que as questões do presente também se manifestem no palco. Outro tom fabulatório do espetáculo é a criação de diálogos entre Gama e sua mãe, Luiza Mahin, acerca da infância e da relação familiar do biografado.
A narradora (Soraia Arnoni) em cena, que por vezes é sua mãe e outras personagens que eventualmente cruzam o caminho de Gama, também funciona como condutora do jogo temporal, uma vez que ela ativa vozes que se encontram no presente (aquela que conta uma história ao público) e no passado (a que representa personagens do tempo histórico de Luiz Gama). Frases ou eventos recentes do país, como a morte de Marielle Franco ou algum episódio de racismo veiculado na mídia, perfuram o tempo da dramaturgia, rearticulando um outro movimento: a tentativa de deixar explícita a contribuição da obra e vida de Luiz Gama para o nosso hoje.
Caminhos diferentes, encontros parecidos
Enquanto o espetáculo Luiz Gama – A voz da liberdade investe nas camadas discursivas e na elaboração de estruturas do gênero dramático de maneira mais restrita, Negra Palavra aposta no som e nos desenhos que os corpos negros em cena podem compor juntos. Assim como em sua dramaturgia bricolada, composta por diversos poemas e poesias de Solano Trindade, a escolha pelo teatro performativo faz de cada cena um evento diferente dentro da continuidade do espetáculo, criando um mapa não tão bem delineado em torno do personagem que o grupo leva ao palco.
A simetria dos desenhos cênicos, a composição de elementos através da união dos corpos e a sincronia das falas e dos sons que tiram do próprio corpo, por meio de palmas, assobios e estralar de dedos, dão amplitude para a arte de Solano Trindade, que não se encontra apenas no discurso dos performers, mas atravessa a corporeidade deles. No trecho, por exemplo, que reencenam o corpo do Maracatu Leão Coroado, eles dançam com gestos da manifestação cultural negra, ao mesmo tempo que fazem dos seus corpos instrumentos percussivos para levar o ritmo para o palco, recitando um poema e incorporando a gestualidade de outros ritmos musicais como o hip hop e o funk.
Negra Palavra dá destaque, através da obra de Trindade, à questão do genocídio da juventude negra. Todos os dias na minha rua passa um menino no céu…, diz um dos performers. Levantando episódios do racismo através do discurso que confere certo tom de ludicidade, o trecho da dramaturgia pode nos conectar rapidamente ao texto de Jhonny Salaberg, Buraquinhos, que também cria um universo poético para fazer uma crítica à violência de estado e à perda cotidiana das vidas pretas.
Se Negra Palavra tem contornos um pouco mais autorreferenciais dos universos afro-diaspóricos, em Luiz Gama o desejo de responder incansavelmente ao mundo anti-negro fica mais explícito. A reencenação de cenas da escravização, o desejo pela introdução do personagem na história oficial brasileira e a crítica a episódios de racismo cotidiano na mídia formam uma plêiade de coreografias anti-racistas comumente utilizadas dentro das cenas negras.
A função, a séria função do racismo é a distração. Isso o impede de fazer seu trabalho. Isso o mantém explicando, indefinidamente, sua razão de ser, nos disse Toni Morrison. Ainda que as questões levantadas anteriormente estejam diretamente relacionadas à luta anti-escravigista protagonizada por Luiz Gama, a biografia do intelectual é traduzida para o palco de maneira paradoxalmente cativa, reiterando os vazios e as impossibilidades produzidos por um sistema que nos aprisiona até hoje, mas que tem contornos muito mais complexos do que uma palavra de ordem enunciada de maneira esvaziada, como o “Marielle, presente!” ao fim do espetáculo, pode dar conta.
Sobre arquivos, ideologias e poéticas
Há frieza no arquivo? Essa foi uma pergunta que me fiz, após assistir os dois espetáculos. Essa pergunta pode parecer um tanto óbvia, quando falamos da distância física e social imposta pela conjuntura pandêmica, da falta que estamos de ir aos teatros. Mas essa sensação de frieza parecia manifestar as próprias poéticas dos espetáculos ou como elas chegavam (ou não) até mim. Tentarei desenvolver aqui.
Em Negra Palavra, há muito contato com o público. Os performers cantam, conversam com a plateia, chegam junto, recitam poesias. Até a metade do espetáculo, houve uma resistência da câmera (ou de quem a empunhava) em acompanhar essas trocas entre palco e plateia. Eu sou molengo / Molengo / Cheio de dengo / Amor de negro é bom / É produto nacional / É gostoso / É bom… O calor das palavras parecem deslocar o plano e produz um movimento de fluidez, de uma câmera que arrisca ir até os encontros e as trocas, ainda que não aposte em mudar o foco ou criar outras formas de registro do evento teatral. A frieza que sentia, pela resistência do deslocamento, parecia se diluir aos poucos a partir desse momento do espetáculo.
Mas a película da frieza ainda se encontrava, sobretudo no final da peça, que age como uma evocação, ao usar o tom revolucionário que Solano Trindade imprimia em seus escritos, influenciado pelo pensamento marxista. Um chamamento ao público de mover-se, entregar-se à luta. Nada necesssariamente novo, porém, é curioso como o arquivo criou quase um abafamento da efervescência desenhada pelos jovens performers, que pareciam preparar-se para o combate, a partir dos desenhos de formação quase militar de suas simetrias em cena. Os aplausos calorosos ao final, no entanto, recuperam um pouco da energia que parecia vibrar no acontecimento teatral da gravação. Já as aclamações, ao fim do espetáculo Luiz Gama, formaram uma ruptura no arquivo.
Por toda a apresentação, parecia que a dupla estava encenando em um espaço vazio. O investimento numa encenação com o mesmo tônus, sem grandes modulações, a câmera friamente parada e o apego discursivo à oficialidade, ao desejo de tornar Luiz Gama, publicamente, um herói nacional e ao gosto pela justiça enquanto mecanismo de reparação social, demarcam mais algumas diferenças entre os espetáculos, não apenas nas dimensões técnicas, mas também ideológicas, que também são dessemelhanças que envolvem as trajetórias e visões de mundos dos dois personagens históricos representados.
Apesar da evidente heterogeneidade entre os espetáculos, as premissas que estruturam as elaborações poéticas passam pelos mesmos lugares: o da representatividade, do direito à fala e da autonomeação. No entanto, como comumente se tem visto nas produções negras, parece existir coreografias muito bem desenhadas (e facilmente capturadas pela performance do capitalismo neoliberal e seu culto ao indivíduo) para tratar das questões que atravessam nossa existência no mundo como conhecemos. Como elaborar nossas poéticas sem essa distração (como nos disse Toni Morrison), que é responder ao racismo o tempo inteiro, de maneira transparente e explícita? Quais são os projetos políticos, estéticos e ideológicos que estão se estruturando nas cenas negras? O que esse desejo de reinscrição do presente e de reparação do passado tem nos produzido, de fato? Se, então, nós o defendermos, como materializá-lo de maneira diferente, esquivando-se dessas coreografias marcadas?
Esse texto foi produzido durante a cobertura crítica do Festival Luz Negra 2021 (Grupo O Poste), realizado na modalidade on-line com incentivo da Lei Aldir Blanc – Pernambuco.