Crítica – Pólo Marginal | Uma nau poética de possíveis corpos palavras
Imagem – Miguel Igreja
Por Raquel Franco
Mestra em Artes Cênicas (UFRN), Atriz e Palhaça (Trupe Circuluz)
O trabalho encontrava-se em circulação pela Região Metropolitana do Recife, uma montagem do Grupo de Teatro de Rua Loucos e Oprimidos da Maciel, grupo que surgiu em 2007 como iniciativa de diversos artistas que frequentavam a Pça. Maciel Pinheiro, no centro do Recife e tem na figura do ator e diretor Carlos Salles (já falecido) seu principal líder.
Final de tarde na histórica Olinda – Praça do Carmo. A roda já se encontrava formada e, mesmo que a narrativa do espetáculo ainda não houvesse começado, sua espetacularidade já se iniciava, apresentando-nos de cara uma das singularidades do Teatro de Rua: ele desnuda, dissolvendo coxias, camarim, banheiro, corredores. Enfim, escancara o início da ação cênica para o público.
Com esse cenário me deparei: atores se maquiando, se vestindo, conversando, encontrando-se com o seu momento. O que se seguiu, então, foi o espetáculo acontecendo antes do espetáculo. Esse é um caminho importante para a montagem, pois constrói de antemão uma relação de cumplicidade com a roda. Nesse sentido, é importante apontar que nem todos os atores se entregam da mesma forma a esse momento inicial do espetáculo, que remete à própria estética dos artistas de rua quando vão estabelecer suas rodas. Uma herança trazida de muitos séculos, gestada nos artistas de feira como cita Robson Camargo Correia no artigo A pantomima e o teatro de feira na formação do espetáculo teatral: o texto espetacular e o palimpsesto. “Este tipo de espetáculo originado nas feiras, dentro do espírito comercial do deixa fazer, deixa passar, não buscava uma forma pura, ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana.”
Nessa espécie de preparação da roda, alguns atores falaram sobre política, cultura, cachaça, praça, vendedores, uma variada relação de trocas com o público, ou seja, já era o espetáculo acontecendo, antes de começar. Será isso possível? Antes de iniciar a apresentação, o ator e assistente de direção Rodrigo Torres, mais uma vez, traz uma marca da estética dos artistas de rua: também demarca a roda derramando cachaça. Muitos rueiros de grandes centros urbanos, que, cotidianamente, estão nos espaços públicos para o desempenho de suas praças e rodadas de chapéu, utilizam desse código para definir sua roda, utilizando muitas vezes água, querosene, fogo, corda, etc. No Pólo Marginal, a cachaça é bem representativa da história de vida do poeta que inspira o espetáculo. Vida boêmia pelas ruas do Recife.
Pólo Marginal apresenta duas contextualizações, antes e depois do quadro “Mete Bronca”. Cena no meio do espetáculo e onde o público é convidado a participar, falando, discursando, recitando, cantando. Momento do público falar o que pensa e sente.
Pois bem, o espetáculo antes desse quadro metamorfoseia a imagem de uma nau de piratas em viagem, se materializam na cena, com as músicas e poesias, a areia, o vento, o mar, a viagem, o caminho e a liberdade. O que estariam esses piratas a procurar? O que querem conquistar? Em um dos momentos eles entoam – “era o barba negra com a sua turma e suas canções”, letra da banda pernambucana Ave Sangria, que inspira a dramaturgia. Ou seja, uma turma de seres marítimos em um barco poético, caminhando, viajando, cantando, dançando, fugindo quem sabe? O coro que os atores formam, com corpos e vozes tenta trazer essa atmosfera para a narrativa, misturando um pouco do universo da oralidade dos contadores de histórias, pois são os piratas assim como os pescadores, exímios contadores de histórias?
O cenário do espetáculo compõe-se de banquinhos em madeira que ajudam a circunscrever a roda, ao fundo os dois músicos Celso José e Walgrene Agra e os figurinos que serão trocados no decorrer da cena. O que chama a atenção é ao centro o uso de um pequeno praticável meio arredondado em forma de escada, esse é um dos elementos no cenário mais representativo desta nau de piratas, pois os atores se revezam na utilização deste, onde o ator em destaque costuma subir para o plano mais alto, e aí reside essa conexão com uma nau, aos meus sentidos esse material de cena seria a popa, local onde se guia o leme da embarcação, lugar de vislumbrar o mar mais do alto.
Na dramaturgia, o poeta é um pirata: ele busca, cria, rouba, descobre, enterra para depois descobrir de novo. A opereta de rua compõe a imagem desse poeta pirata, marginal e solitário em sua paradoxal viagem em bando. Nesse sentido, se instaura para o grupo um desafio, como experimentar a poesia de Marco Polo no corpo dos atores, já que a montagem exige que eles ultrapassem a palavra dita e escrita para criar outras palavras, criar talvez um corpo-palavra, alguns atores conseguem ancorar nesse porto de descobertas. Contudo, percebe-se que, quando essa viagem a outras corporeidades não acontece, se estabelece uma linearidade na atuação, que pode gerar certo cansaço ao vermos algumas poesias sendo vividas corporalmente e poeticamente sempre com a mesma forma. Mesmo que exista uma tentativa de desorganizar isso com as marcações e coreografias, todavia essa estratégia ainda parece insuficiente.
Um dos exemplos mais importantes na encenação que trazem esse corpo-palavra em ação é a cena entre os três piratas, que em luta, talvez mais que luta, são corpos em jogo; onde a métrica, os versos, as palavras, não adormecem somente no dito, mas acordam e gritam no corpo dos três piratas. E isso coincide inclusive com o fragmento final desta mesma cena: “- O corpo é a caligrafia da morte”. É na morte que esse corpo se inscreve, é na morte que o corpo se rebusca, é na morte que o pirata poeta surge, mais vivo que nunca.
No decorrer dessa morte, algumas maquiagens vão derretendo nos rostos dos atores, gerando outras máscaras, diferentes imagens imperfeitas da imagem inicial; Começam a aparecer sujeitos marcados, fantasmas de si mesmos. É importante esse deixar desmanchar, manchar, a viagem de um pirata é uma trajetória de descoberta.
Contudo, toda viagem um dia chega, talvez não a um destino final, mas em algum lugar. A segunda parte do espetáculo é a chegada desse poeta pirata, o barco ancora, encontrando rastros; esses sujeitos desterrados descobrem um mundo de mendigos, rios de merda, procissões de igreja, crucificados, julgados e julgadores, luxo, riqueza, pobreza, sexo e expansão. Então, é melhor não acordar Lazáro! Essa mudança é marcada além da dramaturgia, pela mudança de figurinos, os piratas agora sem camisas, com longos saiões, colares e lenços na cabeça. Nas cenas anteriores usavam sobretudos, casacos e bermudões.
Marco Polo adentra nas vísceras da cidade, olha poeticamente todas suas sutilezas, mais ainda é o mar, areia e a praia seu último refúgio. É assim que o poeta percebe ser um marginal, pois nem é mais nau que o leva indefinidamente a lugares, dentro dele mesmo, nem é cidade que lhe habita como fantasmas, atração, sentidos e cheiros. Talvez ele seja os dois…
A opereta se traduz nas músicas, sons, dança, é uma opereta construída em um universo estético próprio do grupo, uma opereta dos marginais, poetas, bêbados, cantadores, mulheres e homens em viagem, como não ser diferente sendo está uma opereta de rua, preenchendo-se de alguns sentidos da rua. Os músicos, magistralmente auxiliam os atores na tarefa de fazer ecoar essa nau e esse bando, nessa busca de chegar e sair de diferentes portos, de diferentes rodas.