Crítica – Atos Íntimos… e Um Ato Loucos – Luna e Polo | As margens e os fluxos que atravessam a cidade

Imagem – Morgana Narjara
Por Liana Gesteira
Artista do Coletivo Lugar Comum e pesquisadora do Acervo RecorDança
Era uma sexta-feira, penúltimo dia do Usina Teatral, e assisti a dois trabalhos artísticos propostos pela programação do evento. O primeiro foi Atos Íntimos contra o Embrutecimento, performance de rua do Coletivo Teatro Dodecafônico (acesse AQUI), de São Paulo. O segundo foi o espetáculo Um Ato Loucos – Luna e Polo, do Grupo de Teatro de Rua Loucos e Oprimidos da Maciel, de Recife.
A experiência de ter presenciado estes dois trabalhos num mesmo dia me fez ficar pensando sobre a relação entre centro e margem. Falar sobre esse tema, atualmente, me traz inquietação. Não quero reforçar discursos colonialistas. Tenho exercitado conversar sobre centros móveis, pois muitos dos centros que elegemos são instaurados a partir de perspectivas hegemônicas de poder e conhecimento. E me pergunto como podemos reinventar a linguagem para mudar nossas práticas colonialistas e nosso entendimento de centro e margem. Me veio então a imagem de um rio, que tem um fluxo de água que acontece interligando suas margens.
Um convite ao fluxo coletivo pela cidade
Atos íntimos contra o Embrutecimento aconteceu num fim de tarde, durante o pôr do sol em Recife, e criou deambulações[1] pelas ruas do centro, atravessando pontes, por cima do Rio Capibaribe. O trabalho traz uma encenação performativa e participativa, propondo uma série de atos a serem realizados no percurso. Convida o espectador a estar junto, de diferentes maneiras. Você pode participar como um voyeur distante; como um participante ativo, fazendo as ações juntamente com os performers; como um espectador passageiro, que presencia apenas um fragmento da performance; ou como um espectador do rastro, ouvindo sobre o que aconteceu – ou se deparando com as frases escritas no chão. A maneira de se relacionar com a performance muda também a experiência.
O primeiro ato proposto foi caminhar lentamente pela Rua da Imperatriz rodeada de comércio. Cerca de vinte pessoas do público[2] aderiram a esta ação. Uma intensa chuva caiu. Todas/os permaneceram na caminhada lenta até o momento em que umas das performers escreveu a seguinte frase no chão da rua: “A força dxs fracxs é o seu tempo”.
E foi nesse jogo de propor ações simples – compor desenhos de corporais com a ponte; dançar juntos ouvindo uma música no celular com fone de ouvido; deitar na faixa de pedestre – que se estabeleceu uma performance coletiva com o público, criando uma experiência de coralidade[3] perambulando pelas ruas do centro. “ERRAR é urbano”, diz mais uma das frases escritas no chão durante a performance.

Performance ‘Atos Íntimos Contra o Embrutecimento’ | Imagem – Liana Gesteira | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida do asfalto de uma rua, em que se pode ler a frase ‘Errar é urbano’, escrita com giz. Alguns passantes atravessam a rua a pé e com bicicleta.
Sempre que presencio uma performance participativa, me interesso em identificar quais estratégias os artistas usam para convidar o espectador a estar junto. E também me interessa ver como se dá a relação com as pessoas que habitam aquele espaço cotidianamente, trabalhadores, moradores de rua, etc. Para mim essa é uma das dimensões éticas dos trabalhos artísticos realizados na rua. Em Atos Íntimos contra o Embrutecimento, houve diferentes maneiras de interação com os habitantes do Centro – às vezes, de adesão; outras, de estranhamento.
Um dos momentos de interação mais direta que testemunhei foi um questionário com temas sobre gênero e suas relações sociais, que denunciavam visões machistas e preconceituosas, realizado com as pessoas que os performers encontravam no caminho. “Na dúvida, pergunte ao corpo”.[4] As perguntas e respostas eram escutadas por quem estava ao redor. Num jogo estabelecido entre responder SIM ou NÃO, que se assemelhava a um programa de auditório, as/os performers do Teatro Dodecafônico conseguiram criar um espaço de conexão com quem respondia.
Uma relação de intimidade foi interessantemente estabelecida nesse jogo, com um engajamento visível dos entrevistados de refletir sobre as questões postas e uma audiência bem curiosa sobre as respostas dadas. Muitas vezes, até aplaudindo ou vaiando. E um dos entrevistados, que tinha sido abordado de maneira espontânea durante o percurso, se envolveu ao ponto de acompanhar a performance até o final.
A experiência com Atos íntimos contra o Embrutecimento foi de fluxos e contrafluxos de caminhos, numa vivência coletiva de ações que iam desabituando o cotidiano do Centro do Recife. Trazendo outros ritmos para o centro da cidade, seja por caminhadas lentas, por danças coletivas (com cerca de trinta pessoas) ao longo de toda Rua Nova, ou por deixar-se cair e ser cuidadosamente aparados pelo chão ao final da performance. Como um rio passando pelas vidas de quem foi atravessado pela performance, em uma multiplicidade de movimentos.
Um lugar de passagem para o que está posto como margem
O Grupo de Teatro de Rua Loucos e Oprimidos da Maciel se apresentou no início da noite, no Pátio de Santa Cruz, em meio a bares instalados numa praça. O trabalho apresentado conta e canta narrativas sobre dois poetas recifenses – Erickson Luna e Maro Polo. Luna é uma das referências do movimento chamado “poesia marginal” em Recife, e também foi morador de rua desde que abandonou a faculdade de Direito até seu falecimento em 2007. Já o jornalista e compositor Marco Polo foi um dos fundadores da banda Ave Sangria, grupo que foi um ícone do movimento udigrudi, em Pernambuco, na década de 1970.
MARIPOSA[5]
Pra eu poder
e só
andar nas ruas
fez-se em volta uma cidade
Para se dar
mais colorido à noite
pôs-se acima um luminoso
E pra que eu
me sinta bem enfim
nesta cidade
há-se em mim um cidadão
Portanto livre
como o que é em noite
e que enche as ruas
perseguindo luzes
acordando
ainda que em sonhos
íntegro
ainda que meio-homem
plenamente meio
mariposa
(Erickson Luna)
A estética da marginalidade é o que interessa o Loucos e Oprimidos da Maciel. Há 12 anos que o grupo cria e ensaia suas peças em praças e ruas do Recife. A paisagem humana que habita o urbano e é ignorada pela sociedade – como moradores de rua, crianças cheirando cola, prostitutas – são a materialidade de suas criações e reflexões. O grupo fala da cidade de Recife a partir de suas margens.
Um Ato Loucos – Luna e Polo começa com um dos atores, Rodrigo Torres, demarcando o espaço de apresentação ao derramar cachaça no chão, delimitando um círculo. O Pátio de Santa Cruz, onde a peça foi apresentada, fica numa encruzilhada. Nos rituais da Umbanda, a cachaça é a bebida dos Exus, e a encruzilhada macho (que tem um formato de cruz, interligando as direções norte, sul, leste e oeste) é um ponto de força. Oferecer a cachaça é pedir licença para as entidades da rua, abrir os caminhos.
O elenco agrega cinco artistas que transitam entre atuação, canto, performance musical e declamação. Existe também uma diversidade nas identidades de gênero, sexualidade e corporalidade nos integrantes do elenco da peça que apresentam perspectivas culturais diferentes do contexto social normativo de uma classe média branca e liberal.

Espetáculo ‘Um Ato Loucos – Luna e Polo’ | Imagem – Morgana Narjara | #4ParedeParaTodos PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um grupo de teatro em uma via pública. Todos vestem roupas distintas e bastante coloridas e estão brindando com canecas de metal. Ao fundo, o público assiste ao espetáculo no meio da rua.
A relação com o público acontece numa proposição de fronteira entre um espaço de arena e uma abertura para interação. Não existe um convite nítido para participação do público, mas as escolhas de trabalhar com os elementos da cachaça, da encruzilhada e da rua traz, implicitamente, um estado de abertura e passagem para as/os que habitam a rua – crianças que cheiram cola, moradores de rua, cachorros – que atravessaram e compuseram a cena por diversos momentos da apresentação, entrando nos momentos musicais para dançar com o elenco.
Me parece que os Loucos e Oprimidos da Maciel tensionam esse co-habitar das vidas que compõem a urbe desde suas margens. Eles visibilizam a lógica de um funcionamento de cidade que privilegia um cotidiano produtivo e eficiente e tende a apagar um certo tipo de paisagem humana que nela existe e pulsa.
Ao final do espetáculo naquela sexta-feira, o microfone ficou aberto para que crianças, homens e mulheres que vivem na rua pudessem falar suas poesias, cantar suas músicas; numa extensão improvisada da apresentação. Permitindo palco para os que estão à margem. Grada Kilomba, autora afro-portuguesa, traz em seu doutorado que fala de racismos cotidianos outras perspectivas de margens para pensarmos:
A margem não deve ser vista apenas como um espaço periférico, um espaço de perda e privação, mas como um espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura como um “espaço de abertura radical” (HOOKS,1989, p. 149) e criatividade, onde novos discursos críticos se dão (KILOMBA, 2019, p.68)
Não se trata aqui de romantizar essa condição dos que habitam as ruas das cidades em condições sociais e econômicas precárias, mas de se propor a olhar para as múltiplas margens que existem, com seus contextos e pessoas. Uma questão de visibilizar algo que cotidianamente é invisibilizada aos olhos dos poderes públicos e de uma sociedade acomodada e anestesiada por um sentido individualista de vida. Uma das perspectivas sobre margens pode ser “um local que nutre nossa capacidade de resistir a opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos” (KILOMBA, 2019, p.68)
Os dois trabalhos artísticos vivenciados nesse dia trazem perspectivas, localidades, discursos, contextos e estéticas diferentes. Propuseram uma experimentação de cidade desde suas margens até seus fluxos. “A cidade me desloca por dentro”[6]. Desabituando nossos olhos e sentidos cotidianos. Encenações na rua que tornam as questões éticas, políticas e estéticas mais visíveis para o espectador, mesmo quando não tratam de temas “aparentemente políticos”.
Atos Íntimos contra o Embrutecimento é um trabalho criado e performado por artistas habitantes de São Paulo, que se propuseram a jogar com os fluxos do Centro do Recife, tocando suas margens de maneira sutil, pontual. A peça Um Atos Loucos – Luna e Polo traz pro centro de seus trabalhos diferentes perspectivas de marginalidade, seja pelas narrativas dos poetas recifenses Erickson Luna e Marco Polo; seja pelos corpos de atriz e atores que atuam; seja pela encruzilhada de sua atuação; e co-habitando com um público que cotidianamente são invisibilizados na paisagem da cidade.
Assim, a ideia de centro e margem pode ser deslocada, reavaliada em nossas práticas artísticas e sociais. Inventar rios com suas múltiplas nascentes, margens e fluxos. É possível deixar cair as estruturas que não sustentam mais nossos cotidianos, nossos sentidos de comunidade, nossas cidades?
“Por que agora estamos preocupados com a queda? Cair, cair, cair…”
“O chão está comigo”[7].
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano; tradução Jess Oliveira. 1 ed, Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
WILKER, Francis. Encenação no Espaço Urbano. Vinhedo: Editora Horizonte, 2018
Notas de Rodapé
[1] Termo usado pela diretora do Coletivo, Verônica Veloso, que, em seus estudos de doutorado, traz reflexões e diferenciações sobre os termos: deriva, errância, deambulação, etc. Acesse a tese de doutorado intitulada Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativas no contexto urbano AQUI
[2] As pessoas que aderiram, em sua maioria, eram espectadores do evento Usina Teatral, ou seja, artistas, estudantes e profissionais de teatro. E posteriormente fiquei sabendo que uma boa parte desse público que aderiu também tinham participado da oficina ministrada pelo grupo durante o evento. Ou seja, esse envolvimento prévio contribuiu para esta adesão, com certeza. Mas também já presenciei outros trabalhos que não conseguiram adesão de 20 pessoas, mesmo num contexto bem parecido de público e envolvimento. Então, fico interessada em observar quais as diferentes estratégias de se relacionar com o público e que respostas elas recebem de seus interlocutores.
[3] Coralidade – “A prática da coralidade se estrutura a partir de uma ação coletiva em determinado espaço que, assim, nos remete ao movimento “do individual ao coletivo” […] A coralidade é um elemento que pode ser notado na busca de alguns artistas e coletivos na criação dessas “faíscas” que procuram revelar sensibilidade e afetar percepções ao se inscreverem na vida pública”(WILKER, p.105, 2018)
[4] Mais uma frase escrita no chão durante a performance.
[5] Acesse essa e outras poesias de Erickson Luna AQUI
[6] Frase escrita no trajeto da performance.
[7] Outras frases escritas no trajeto da performance Atos íntimos contra o Embrutecimento.