Crítica – Tropeço enquanto falo | Inventário de Gestos
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Imagem – Erique Nascimento
Por Anderson Feliciano
Mestrando em Dramaturgia (UNA – Buenos Aires), curador e performer
I Gesto: aproximar
Suspeito que em Tropeço enquanto falo, Lucas Bebiano, assim como Rubens Barbot, está em busca de um “gesto honesto”. Em seu manifesto: por um gesto honesto[1], o bailarino gaúcho argumenta que não podemos ignorar o meio onde criamos os movimentos dos homens de hoje, o caos que nos rodeia e no amor escasso. Ele aponta que é no meio desta encruzilhada que busca pelo elo capaz de conectá-lo com a vida que pulsa no agora. Ao relacionar a poética de Barbot e de Bebiano, interessa-me estabelecer uma aproximação e ainda compor alguma paisagem que seja capaz de abarcar poeticamente as complexidades de existências de corpos negros.
Para dialogar com o gesto honesto de Barbot e pensar sobre Tropeço enquanto falo, articulo com o que venho chamando de maceração do imaginário. Compreendo esse gesto como “tecnologia ancestral de produção de infinitos[2]”. Numa bacia grande cheia de água de rio, esfrego com as mãos as imagens desses corpos em movimento e componho uma escrita que aponta caminhos para compreender um pouco sobre a poética de Bebiano.
Parece-me haver nessa tentativa de aproximá-los um movimento que desarticula certas armadilhas que rondam essas produções que algumas vezes, no desejo de desconstrução de imaginários cristalizados, como aponta Baldwin, “rejeitam a vida, o ser humano, negam sua beleza, seu pavor, seu poder, ao insistir que apenas sua categorização é real e não pode ser transcendida”[3].
II Gesto: Grafar
Lucas,
Acabo de assistir, pela terceira vez, Tropeço enquanto falo. De início me interessou as possibilidades de leitura do título da obra. Seu corpo, quase desnudo e de máscara, naquele espaço com poucas pessoas e alguma luz, me fez lembrar da primeira vez que vi o Barbot em cena. No campo vasto da memória, as imagens de vocês dançando grafam “uma experiência corporificada, de um saber encorpado[4]”, que anuncia novos tempos e permite vislumbrar paisagens cheias de água. Como disse Aline Motta[5], a água é uma máquina do tempo.
Gesto III: Vincular
“Dança-se a palavra, canta-se o gesto. ” Leda Martins
“Radicalismo preto como performance experimental preta. Aonde o berro vira fala que vira canção, aí reside o traço da nossa descendência”. Fred Moten
p.s: Lucas, li nas redes sociais de Abigail Campos Leal e lembrei-me de ti, de sua obra.
Gesto IV: Ouvir
O que podemos ouvir ao pararmos para escutar Bebiano dançando?
Gesto V: Desarticular
Falo: Conjugação do verbo falar na primeira pessoa do indicativo.
Falo: (do grego phallós, através do latim phallus), usualmente, remete às representações de um pênis ereto. O falo era adorado pelos povos antigos, como um símbolo da fecundidade da natureza. É, ainda, um tema recorrente na psicanálise, como signo do poder.
Gesto VI: Escapar
Gesto VII: Tropeçar
O tropeço ainda não é a queda[6]. É um deslocamento. Entre o que era e o que será, muita coisa pode acontecer. E, nesse hiato, o corpo de Bebiano fala, inventa uma narrativa na primeira pessoa do plural e estabelece um jogo onde a escuta é fundamental. É preciso estar atento para ouvir o que ele dança e ver o que fala.
Gesto VII: Desequilibrar
Ao tropeçar, Bebiano inventa uma coreografia que desorganiza o sentido da palavra falo, tanto o substantivo quanto o verbo. Desarticula o imaginário projetado a corpos racializados como o dele, sem abrir mão do desejo. O erotismo surge como potência de vida e inventa linhas de fuga que também nos convidam a dançar.
Gesto VIII: Delirar
O abismo.
Notas de Rodapé
[1] Imagens para alguma paisagem. Organização: Claudia R. G. Ramalho / Companhia de Rubens Barbot – teatro de dança. Belo Horizonte: Nandyala, 2013.
[2] Ideia proposta por Cidinha da Silva
[3] Notas de um filho nativo / James Baldwin: tradução Paulo Henrique Britto. – 2° edição – São Paulo: Companhia das Letras.
[4] Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela / Leda Maria Martins – 1° edição – Rio de Janeiro: Cobogó. 2021.
[5] A água é uma máquina do tempo / Aline Motta. – São Paulo, SP: Círculo de poemas, 2022.
[6] Tropeço / Anderson Feliciano – Belo Horizonte: Javali, 2020.