Editorial | Don’t Touch! It’s Art! – Sobre estética, política e a transexual crucificada (ou a arte de habitar conflitos)
Por Márcio Andrade
Editor-Chefe
The smut we must cut,
The trash we must bash,
The laughter and fun must all be undone!
We must blame them and cause a fuss before somebody thinks of blaming uuuuuuuuuuus!
Como um site que defende, antes de mais nada, a liberdade de expressão e o poder da arte de provocar conflitos, o Quarta Parede inaugura seu editorial com um caso que vem causando uma diversidade de polêmicas nas redes sociais e fora delas: a transexual crucificada da Parada Gay. Acredito que este acontecimento, cada vez mais comum em uma sociedade que mistura cada vez mais os espaços da religião, da arte, da política etc. e investe, apesar do politicamente correto estar sempre puxando algumas rédeas, na criação de tensões e conflitos que, nem de longe, se encerrarão com a exposição de opiniões diversas na timeline – e nem devem.
Uma obra de arte, em uma de suas variadas definições, pode vir, justamente, para promover debates e questionamentos, desestabelecer as bases de crenças solidificadas e nos fazer, justamente, nos perguntar sobre seus limites. Quando assume um caráter transgressor, uma obra artística, muitas vezes, nos permite ultrapassar, de algum modo, uma construção ideológica e vislumbrar um modo de ver distinto daquele já estruturado – o que pode ser compreendido também como utopia. Ao problematizar o mundo de hoje – como se colocasse um espelho diante de nós e nos forçasse a olhar -, a arte não faz uma leitura “limpa, imparcial e verdadeira”, mas, em sua intensa subjetividade, propõe-se a tremer as bases do conhecido, do respondido, do já dado.
Confesso que, ao ver a imagem, fiquei curioso pela dupla dimensão que Viviany Bebeloni explora com sua performance: a apropriação e uma (aparente) distorção. Na primeira dimensão, percebo como ela se apropria de um símbolo religioso universal (e que não pertence exclusivamente a quem pratica a fé cristã, diga-se de passagem) que possui um discurso previamente concebido e reproduzido para, através de sua ressignificação, torná-lo “irreconhecível” para seus próprios fieis. Contudo, esta aparente transformação do símbolo máximo do cristianismo, na realidade, reforça, à sua maneira, os próprios princípios cristãos. Para aqueles que acreditam no cristianismo, o potencial expressivo da performance, certamente, poderia fechar seu ciclo quando, pelo choque, lembramo-nos que, na própria bíblia, cita-se que Jesus morre pelos “pecados” de todos – não só aqueles cometidos por brancos, heterossexuais e de classe média que formaram uma família tradicional. Contudo, quem lê os textos bíblicos hoje parece esquecer as pessoas com que o próprio Jesus andava – prostitutas, cobradores de impostos, ladrões etc. – e trata como heresia uma performance que problematiza justamente essas leituras preguiçosas e tendenciosas das escrituras.
Para quem não acredita nas narrativas bíblicas, o simbolismo de uma transexual crucificada, acompanhada de uma placa com os dizeres “Basta de Homofobia GLBT”, faz-nos ver como os discursos de ódio e a violência contra os homossexuais reproduzem, de algum modo, a injusta perseguição e condenação sofrida por Jesus Cristo, em uma clara identificação com o personagem (e não deboche). Entretanto, como toda obra artística que se propõe a questionar crenças e formas de ver tão entranhadas, cria-se um conflito – e não se deve fugir dele, mas investir no amadurecimento que ele favorece. Mas a pressa em ter uma opinião e torná-la pública influencia no exagero de críticas e represálias que o ato da jovem vem recebendo, pois o que menos se vê nos breves e superficiais textos que aparecem na minha timeline são perguntas, mas respostas. Será que esta performance e o que ela provoca não desarmoniza nosso olhar sobre um símbolo cristão tão rebatido (e gasto até) para colocá-lo em outro lugar – quem sabe até mais solidário e harmonioso com o mundo à nossa volta? Será que nossas opiniões tão duras e herméticas não revelam uma forma de ver o mundo baseada em certa “preguiça” de questionar? Por que é preferível ofender, criticar e exigir “mais respeito” do que procurar investigar o que motiva estas indignações? Será que a religião precisa rever seus limites? Será que a arte pode tudo? Será que, em 2015, ainda não cansamos das estereotipias?
Porque responder mais do que perguntar?