Entrevista – Jéssica Teixeira | Devolver, não espelhar

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Imagem – Yuri Oliveira
No Festival Acessa BH 2025, a artista cearense Jéssica Teixeira apresenta o espetáculo Monga e lança a publicação da dramaturgia da obra, marcada por deslocamentos radicais de linguagem, autoria e percepção de corpos dissidentes. Com um trabalho que atravessa teatro, cinema, literatura e música, Monga constrói uma experiência cênica e sensorial que coloca o público frente a frente com os bastidores da criação artística, com o erotismo como confrontação e com a história de figuras como Julia Pastrana, artista indígena explorada no século XIX como “monstro” em feiras e circos europeus.
Na entrevista ao Quarta Parede, Jéssica reflete sobre a política da nudez em cena, o uso da técnica como contracena e os desafios de criar uma linguagem autoral no teatro contemporâneo. Ao propor o estúdio de fotografia como espaço dramatúrgico e o palco como máquina de ilusão desmontada, Monga denuncia os dispositivos de controle e afirma o direito de desejar, gozar e criar. Como ela afirma: “Não uso armas, mas meu corpo nu desarma”.
Jéssica Teixeira é artista da cena, cineasta, dramaturga, performer e escritora cearense que pesquisa autobiografia, sexualidade, deficiência e ficção como tecnologias de criação. Realizou os espetáculos E.L.A, Transviada e Monga, e os filmes Curva Sinuosa e Mulher em Obras e também publicou livros de dramaturgia e poemas, criando trânsitos entre o corpo e a palavra.
Monga é descrito como uma obra feita a muitas mãos e fruto de uma vida inteira de estudo. Como se deu esse processo colaborativo de criação e quais foram os principais desafios e aprendizados ao longo desse caminho?
Passei, basicamente, quatro anos escrevendo o roteiro de Monga. Mais de quatro anos, ao mesmo tempo em que tentava aprovar o projeto para conseguir colocá-lo em jogo. E é muito isso: o processo de escrita é muito solitário, mas o teatro jamais. O colaborativo está aí. Eu jamais conseguiria levantar o espetáculo se não tivesse uma equipe que também acreditasse muito nisso.
Poder dirigir a técnica, para mim, é maravilhoso, porque, supostamente, a técnica fica escondida na house. Mas, quando decidi fazer monólogo (independentemente da técnica estar na house ou não), me sinto disponível para dar essas indicações, esses direcionamentos, e, ao mesmo tempo, sei que eles são minha contracena.
No meu primeiro monólogo, quem dirigiu foi o Diego Landin, mas, ainda assim, a técnica (que se localiza na house) estava de olho em mim. Eu estava regendo a técnica de alguma maneira. Porque, por mais que sejam marcações muito precisas, cirúrgicas e repetitivíssimas de uma apresentação para outra, no caso do espetáculo E.L.A., não há margem de improviso: eles são a minha contracena.
Eu sei exatamente o que está acontecendo nos bastidores, ou fora da cena visível, por causa deles. Porque estou contracenando com eles. Minha história se dá nesse lugar da técnica, porque acho os bastidores do teatro lindos. Isso vem do fato de eu já ter trabalhado em várias funções da cadeia produtiva do teatro.
Quando era criança, fazendo dança em festivais, bem pequenininha, depois que já tinha executado minha coreografia e estava livre, só esperando os agradecimentos, eu usava aqueles minutos para ir até a house. Sempre achei que a house era o ponto de vista mais bonito do teatro, um lugar que, enquanto for público, raramente terei acesso, talvez nunca. Então, eu dava essa volta e ia até lá. Gostava de ver o processo de montagem da luz, do som, do vídeo, das cenotécnicas, das contrarregragens. Isso me agrada muito.
Por ter crescido fazendo teatro, por reivindicar esse lugar. Para mim, ser artista é também poder mostrar os bastidores do teatro e fazer da técnica minha contracena desde que decidi trabalhar com monólogos. Acho que quem não é das artes e começa a ver isso nas minhas obras, nos meus filmes (porque faço isso não só no teatro, mas também nos filmes, sejam documentários ou ficções), começa a acessar esses bastidores. E acho isso lindo.
Esse é um lugar estético. É um lugar político. É um espaço que existe e que está sempre muito maquiado. Mas esse maquinário me agrada. Por isso prezo tanto por processos colaborativos. Ou melhor: por colocar os bastidores e a técnica sempre em jogo.
A história de Julia Pastrana é atravessada por violências coloniais, racismo e exploração cultural. Como foi seu encontro com essa história e como você escolheu se aproximar da memória dessa artista para encená-la?
Eu sempre me vi muito à margem nos processos de criação teatral, especialmente quando trabalhava em coletivos. Sentia que aquela suposta “democracia” no fazer artístico estava inflamada (o que eu costumo chamar de “democratite”).
Era um espaço que, na prática, não existia pra mim. Quando comecei a idealizar o espetáculo E.L.A, muitos diziam que eu queria “falar de mim”. Mas o que eu realmente queria era falar sobre algo que considero urgente: que a gente perceba que somos o outro. Essa urgência me move.
No espetáculo Monga, o gesto é outro. Não se trata de espelhamento, como foi em E.L.A, mas de devolução. Em cena, devolvo tudo aquilo que já foi jogado sobre mim. E pra fazer essa devolução, precisei beber da história de Julia Pastrana, uma artista incrível, uma mulher poliglota, intérprete, bailarina, mas que, infelizmente, ainda é lembrada principalmente por sua aparência física. Isso é algo que também evito em relação a mim, porque não quero reforçar essa lógica.
Quando comecei a me dedicar ao teatro solo e a criar uma linguagem própria (que raramente encontro em outros artistas), percebi que precisava dialogar com outras temporalidades. Não tem como projetar futuros possíveis se a gente não estuda o passado. Foi aí que a história de Julia se conectou com a minha: corpos usados como espetáculo, como moeda simbólica, como cota de acessibilidade ou capital político para viabilizar projetos.
Por muitos anos, fui usada como corpo-token em projetos que me incluíam para cumprir um recorte, para conseguir pontos em editais. E comecei a me perguntar: estão me chamando porque gostam do meu trabalho, porque se interessam por Monga, por E.L.A? Ou só porque eu preencho um critério? Essas perguntas seguem em aberto: cada pessoa sente sua própria resposta.
Hoje, com essa trajetória, com todas as vezes que fui impedida de montar o que queria, por preferirem repetir estéticas já legitimadas, entendo que meu risco é minha linguagem. Busco uma outra forma de comunicar, uma forma que une estética e política, como aprendi com Rancière. Uma linguagem que não só diz, mas que amplia, que abre espaço pro público inteiro, sem exceção. Meu encontro com Julia Pastrana foi isso: a decisão de devolver, de criar com leveza e contundência, de inventar outros modos de estar em cena.
Em Monga, você transforma seu corpo nu em uma ferramenta de confronto e espelhamento com a plateia, especialmente ao fazer perguntas incisivas durante a cena. Como surgiu essa escolha de lidar com a exposição como dispositivo dramatúrgico e político?
A nudez é uma ferramenta que utilizo no meu trabalho desde os 19 anos. Ao entrar em cena nua, comecei a perceber de forma ainda mais evidente os tempos e códigos do espetáculo, algo que já intuía quando estava vestida, mas que se intensificou com o corpo exposto. Percebi que precisava de um tempo de silêncio ao entrar em cena para que meu corpo e a plateia pudessem se comunicar. Porque meu corpo grita, ele se impõe, ele fala antes mesmo de qualquer palavra. E quando estou nua, essa comunicação se torna ainda mais estridente.
Existe uma coreografia do olhar sobre o corpo nu: no caso das mulheres, o olhar vai direto aos seios; no caso dos homens, ao pênis; no meu caso, como pessoa com deficiência, ele percorre o sexo, os seios, a deficiência. Esse mapeamento do olhar me serviu como ferramenta estética e técnica. Comecei a estruturar minhas entradas em cena a partir disso: seja em silêncio total ou no escuro, como em Monga, onde o primeiro contato é apenas com a minha voz. Essa escolha cria deslocamentos. No curta Curva Sinuosa, por exemplo, entro com dois metros e meio de altura, dançando, até que o vestido cai. São estratégias para fazer com que o olhar do outro não me devore de imediato.
Em Monga, a nudez se dá com uma máscara sobre o rosto. E.L.A denuncia que o verdadeiro terror não está no meu corpo, mas no brilho dos meus olhos. Esse é o terror psicológico mais sutil e mais potente. A nudez intensifica algo que eu já vinha mapeando há anos, e investiguei também em performances, vídeos, espaços protegidos. Não uso armas, mas meu corpo nu desarma. Ele desmonta violências batidas, já esperadas. Paradoxalmente, sofro mais assédio quando estou muito vestida. Quando estou com as costelas à mostra ou um short curto, muitos agressores se retraem. Meu corpo subverte o esperado: ele deveria estar coberto, segundo a norma, e não está. Isso os desestabiliza.
Quando me perguntam sobre espelhamento ou exposição, preciso dizer: não há espelhamento. As pessoas não se veem em mim. Elas se assustam. Me veem fazendo algo que talvez nunca conseguiriam fazer: estar nua, em cena, tranquila e me divertindo. Isso gera mais terror psicológico do que a nudez em si. E curiosamente, não me sinto exposta ou vulnerável. Com uma equipe que entende os limites, que garante um espaço seguro, entro em cena com mais tranquilidade do que sinto na minha própria casa. A nudez, pra mim, é lugar de prazer e segurança.
A cenografia de Monga evoca um estúdio de fotografia e inclui bastões de LED, ring lights e um chão que simula espelhos quebrados. Como essa estética visual relacionada à ideia de espetáculo dialoga com os temas que você deseja tratar?
A ideia de criar uma cenografia que remete a um estúdio de fotografia em Monga surgiu muito ligada ao desejo de montar e desmontar universos rapidamente em cena, e de fazer esse jogo visual dialogar com os temas que eu queria tratar.
A inspiração inicial vem do número tradicional da Monga nos circos e play centers – aquele em que uma mulher linda se transforma num gorila dentro de uma jaula, com uma película transparente, luzes que apagam e acendem, criando a ilusão da metamorfose. Mas eu não queria reproduzir esse número. Nem fazer uma homenagem direta.
Eu tenho plena consciência de que só estou aqui hoje, fazendo o que faço, porque Júlia Pastrana um dia existiu e foi brutalmente explorada, inclusive pelo próprio marido. Mas minha vontade era outra: era derrubar essa lógica do espetáculo de ilusão e trazer a plateia para dentro desse jogo – não mais escondido, mas visível.
Por isso escolhi o estúdio fotográfico: ele me permite esse trânsito entre camadas, essa montagem e desmontagem constante, e, ao mesmo tempo, convida a plateia a ver tudo (inclusive o que normalmente seria escondido nos bastidores). O chão espelhado, por exemplo, cria uma sensação de que estou andando sobre água. Quando a luz bate nele e reflete no meu corpo, ele parece feito de água também: manchado, fluido, estranho, com uma beleza estética diferente. E essa luz que vem de baixo pra cima evoca um certo terror, mas não um terror de monstros: é um terror mais sutil, mais psicológico, como aquele que se projeta nos olhos. E esse é o terror que me interessa provocar.
No espetáculo, eu falo: “Aqui eu sou Monga de outros tempos. Eu não vou correr atrás do mais fraco, capturar aquele que não conseguiu correr ou que tropeça e cai. Descansem em vida, por ora é a única maneira que vislumbro de descansarmos em paz.” Eu não entro numa jaula, porque essa jaula já está na cabeça de quem acha que corpos como o meu devem estar reclusos, incapazes, destinados à cama de hospital, privados do prazer, da nudez, do sexo, da arte, da bebida, da fé.
Estar em cena nua, bebendo cachaça e conversando com Deus é uma escolha minha, uma autoria que me pertence. Por isso, a direção, a dramaturgia, o texto e a atuação também são minhas. É nesse gesto que afirmo minha autonomia: de mostrar o que eu quiser, como eu quiser, sobre mim e sobre a minha arte.
Além do espetáculo, no Acessa BH, vai acontecer também o lançamento da dramaturgia, que aprofunda os temas e experimentações cênicas da montagem. Como foi o processo de compor mais este material em torno de Monga?
Desde o primeiro livro, E.L.A., eu já pensava em publicar a dramaturgia. Eu me sentia dramaturga na escritora, mas, de todas as funções que exerço hoje, essa foi a última que consegui assinar com segurança. O processo de escrita, pra mim, é muito destrutivo, pois parece que fico seca depois de algumas horas escrevendo.
Mas, ao mesmo tempo, quando escrevo e levo o texto pra sala de ensaio, muita coisa cai por terra. É só quando meu corpo começa a operar dentro da sala que o texto, de fato, se escreve. Eu gravo e anoto exatamente o que faço em cena, e isso vira o texto final. Ou seja, ele nasce do corpo em ação, ainda que tenha um pré-texto como ponto de partida.
Quando publico E.L.A. e agora Monga, faço questão de incluir todas as rubricas possíveis: as descrições do espaço cênico, das movimentações, das operações técnicas de luz e som, da qualidade sonora.
Faço isso porque, no fundo, eu aviso o tempo: adoraria que um dia esse espetáculo pudesse ser montado por outros corpos, por outras pessoas. As rubricas servem como sugestões, porque são linguagens diferentes (teatro e literatura), mas o livro é uma ferramenta para a continuidade dessas experiências.
Desde o lançamento de E.L.A., há quatro ou cinco anos, já vejo estudantes e professoras em universidades montando trechos, encenando com seis atrizes, transformando o monólogo em coro, em outros formatos. Isso me dá um prazer imenso. Recebo fotos, vídeos, pequenas cenas sendo criadas a partir daquele texto. Então, meu maior objetivo ao lançar esses materiais é esse: que outras pessoas falem esse texto, dancem esse texto, existam a partir dele.
Monga também está expandindo para outras linguagens. As músicas autorais vão ser lançadas no Spotify no próximo ano. E isso me move demais, porque o alcance da música e do cinema é outro. Você pode ouvir lavando louça, tomando banho, até dormindo.
São artes que entram no corpo mesmo quando a gente está em repouso. Então, lançar essas faixas (esses punk rocks e maracatus loucos) é uma forma de provocar pensamentos sobre vida e morte, sobre o tempo delas no mundo, sobre futuros possíveis. E tudo isso acessado de casa, por outros caminhos e algoritmos que o teatro presencial e a literatura impressa ainda não alcançam.











