“Eu estou aqui tentando conscertar junto com todo mundo aos poucos o que nos move” | Entrevista – Matheus Nachtergaele
O 22º Janeiro de Grandes Espetáculos traz, na sua abertura o espetáculo Processo de Conscerto do Desejo, criação do ator Matheus Nachtergaele a partir de poemas escritos por sua mãe, Maria Cecília Nachtergaele. O ator Matheus Nachtergaele quer consertar o seu desejo com poesia, num conscerto (daí a mescla vertiginosa das palavras “concerto” e “conserto” no título deste encontro). Acompanhado pelos músicos Luã Belik (violão) e Henrique Rohrmann (violino), Matheus, em cena, diz finalmente os poemas que guardou nos olhos e na alma como única herança de sua mãe. Em entrevista com nosso editor-chefe, Márcio Andrade, Matheus fala com imensa e intensa generosidade um pouco sobre morte, arte e, principalmente, sobre o gesto de estar sempre em processo.
Matheus, você pode começar falando um pouco sobre o que significa essa vivência do Processo de Conscerto do Desejo para você?
É o seguinte: minha mãe, Maria Cecília, era uma poetisa e faleceu muito cedo – eu tinha três meses de idade. Portanto, eu só estive com a minha mãe durante doze meses – nove meses dentro dela e três meses, com ela, sendo ela. Naquele estado em que a mãe e o bebê são um ser só. Logo após esse momento (que se dá, geralmente, após os três meses de idade), minha mãe morreu. Então, as imagens que eu construí da minha mãe vida afora foram imagens montadas a partir de fotografias de diversas fases da vida dela e notícias que os familiares me davam: minha avó, meu avô, meu pai, meus tios, pessoas que amavam minha mãe e contavam como ela era. Então, tudo muito filtrado pelas pessoas. Para o bem e para o mal. Quer dizer, nem tudo me era contado.
Quando eu tinha dezesseis anos, meu pai me deu de presente os poemas que mamãe escrevia. Eu nem sabia que ela escrevia. Estavam todos reunidos, datilografados, muito organizados numa pastinha azul, que eu guardei até hoje. Lendo quase que diariamente no início, aquilo foi para mim como que ouvir, pela primeira vez, poder ouvir a voz da mamãe. Ou, pelo menos, o pensamento racional da mamãe já poetizado. Não é pouco isso: era um presentão que eu estava recebendo ali. Era a fala da mamãe já filtrada pela poesia. E a poesia tem o subjetivo. Então, eu recebia notícia através do subjetivo dela e isso se somou a essa imagem que eu tinha. Eu acho que todo mundo que perdeu um pai ou uma mãe constrói de alguma maneira essa imagem vida afora.
Esses textos eram bons. Eram surpreendentemente bons para uma moça de 22 anos. São textos de uma poetisa madura, surpreendente, irônica, triste, proto-feminista, afetiva, vingativa, inteligente. E durante muito tempo desde que eu comecei a fazer teatro, eu pensava em como utilizar esses poemas de alguma forma. Era como um texto guardado, uma joia que eu tinha. Eu sabia que eles eram bonitos, que eles podiam ser dramáticos, mas não levava a cabo a empreitada. Eu tinha que me formar, tinha que amadurecer. Não só meu instrumento de ator, que sou eu, como também amadurecer psicologicamente o fato de enfrentar o tabu de dizer esses poemas em público, de transformar em voz aquilo que foi calado. E, nesse caso, foi calado por ela mesma. Então, era uma decisão importante. Era como se eu dissesse a ela: “Mamãe, não será segredo. Estou abrindo. Sou teu filho: 50% de você vive em mim e esses 50% são de um ator – e ele vai falar, em algum momento, o teu texto.” Para um ator, isso é um tesouro. A primeira autora importante da minha vida foi a mamãe. Então, nesse momento, eu estou realizando um sonho e, ao mesmo tempo, utilizando, da forma mais simplificada possível, o que eu acredito que o teatro deva ser. Eu estou apostando todas as minhas fichas no poder da presença ao vivo de um ator, da música quando ela acontece, com a menor interferência possível das tecnologias. Quer dizer, eu só uso o que eu preciso mesmo para fazer essa oração profana com os poemas da mamãe.
Eu só gosto de verdade do teatro que é oração, de alguma forma. Eu acho que o teatro talvez tenha sido o primeiro lugar inventado pelo homem e o último que nos restou para que, juntos, façamos uma oração pagã, sem deus, em nome de nenhum deus, em nome de nós, pela nossa dor e alegria. O teatro é um susto. O bom teatro é sempre um susto. Ele não necessariamente precisa te oferecer alguma novidade ou oferecer um novo ponto de vista sobre a vida ou o teatro, mas ele precisa ser um susto. Um encontro assustadoramente bonito com alguma realidade ou verdade humana – independente do gênero. Eu achei que, agora que eu estou me aproximando dos cinquenta anos – digamos que eu esteja no meio da minha vida, vamos ser otimistas (risos) –, estava na hora de marcar um pouco esse meio de caminho fazendo uma peça com a mamãe – que foi a mulher mais importante da minha vida, apesar de não ter estado comigo há muito tempo. Eu estou falando também muito afetivamente porque isso, para mim, também é teatro. O ator, apesar do personagem, está sendo falando muito afetivamente sobre o mundo que ele vê: ele nunca é um cumpridor de tarefas, mas se utiliza de um texto de uma dramaturgia qualquer para falar o que ele pensa do mundo. As memórias do personagem são as suas, por mais que ele tenha um sotaque, uma idade, uma classe social, uma sexualidade diferente das suas. Vai ter que passar pela tua carne para que aquilo aconteça. Sempre é um depoimento pessoal e, aqui, acredito que atinge certo ápice na minha trajetória: o autor é minha mãe, os textos que eu estou falando são da minha origem, foram escritos quase que simultaneamente ao meu nascimento. Vários deles, para quem for ver a peça, vai entender que foram feitos para mim, para que, um dia, eu os lesse. Apesar de não ter coisas muito maternais neles, em alguns momentos é arrepiante, porque você pensa “Nossa, esse aqui ele fez para mim”. Para que eu entendesse quem ela é e o que ela acha da vida.
Eu falo em primeira pessoa, mas sem criar um personagem específico, uma vez que eu não posso copiar a mamãe. Eu estou acreditando também, assim como eu boto as fichas na simplicidade que o teatro permite, que o que acontece ao vivo é o maior valor do teatro e o que lhe resta de superior. Também acredito que esses 50% meu – da minha alma, dos meus cromossomos, de tudo que eu herdo da mamãe –, estão ali também. Isso não é nada espírita ou místico: é um fato genético, biológico. Eu sou a mamãe cromossomicamente, assim como sou cromossomicamente tudo aquilo que veio antes de mim até chegar na Lucy, lá da África – nossa mãe mitocondrial. Como dizem os biólogos, que todos somos irmãos, primos, parentes distantes, unidos por uma fitinha mitocondrial, que era essa da Lucy, que rolou lá na África. Foi ali que, provavelmente, aconteceu um milagre de DNA em que a espécie humana começou. Não sei se isso foi uma lágrima de amor, um luto. Eu sempre relacionei a humanidade a um certo luto. Eu sempre achei que a consciência da morte é o que nos define: os animais também ficam tristes com a morte, mas eles não têm um termo para isso. Isso é instinto, é pulsão. A pulsão de vida é evitar a morte. Então, acredito que, apesar de ser extremamente pessoal, a peça é também sobre algo totalmente universal. Eu estou falando um texto de alguém que morreu, infelizmente, e estou presentificando isso. Faço uma cerimônia onde eu tento jogar luz no que era escuro, dar voz ao que se calou e utilizando meu material íntimo – transformando, obviamente, em algo cênico. Não é psicodrama. Acho que a parte neurótica disso tudo eu deixei no divã do meu psicanalista, que me acompanha há anos. Eu acho que a psicanálise é um dos instrumentos de que a gente se utiliza para tentar ser mais feliz. E eu tento. Já tentei bebendo, fazendo análise, esporte. Já consegui fazendo teatro, algumas vezes. Já consegui amando, algumas vezes. Às vezes, eu não consigo e fico triste. Mas essa peça é para ficar feliz. A gente chora junto, mas, no final, sai aliviado e sabendo que o que sobra em nós da nossa trajetória é bom. É o que temos. Celebrando o que temos.
Como é, para você, trazer esse espetáculo para Recife e para o JGE, já que você possui outras memórias aqui do seu trabalho com cinema? Como essas memórias se mesclam?
Engraçado… Eu tenho uma relação com Pernambuco bem forte e cravada na minha memória e na memória das pessoas, porque isso, provavelmente, começou n’O Auto da Compadecida, pelas mãos do Guel e do Ariano Suassuna, e foi se aprofundando. Quer dizer, O Auto… talvez seja a peça de teatro pernambucana mais importante e acho que é a comédia mais importante e mais encenada do Brasil. E eu tive essa coisa maluca de ter sido o João Grilo da TV Globo. Então, foi forte. E também essa característica de fazer um cinema muito autoral como ator e diretor e ter encontrado com tantos irmãos aqui em Pernambuco. Irmãos de arte como Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Renata Pinheiro, Conceição Camarotti, Marcelo Pinheiro, Jura Capela – com quem eu vou filmar agora -, Thales Junqueira… Enfim, o pessoal do cinema pernambucano é meu amigo. A gente faz junto cinema e eu tenho essa alegria de poder ser um dos participantes desse cinema pernambucano que, na minha opinião, é o melhor cinema que se faz no Brasil hoje. Pernambuco, por vários motivos, faz o melhor cinema autoral (ou interessante, pelo menos) do Brasil. E isso se deve ao fato de todo mundo se conversar e se admirar. Eu acho que o cinema pernambucano tem a ver com Chico Science. Acho que os poetas se conhecem: o próprio Ariano se relacionava com Chico Science, já pensou? Então, você vê que, aqui em Pernambuco, acontece algo das artes se entrelaçarem, conviverem. Todo pernambucano já esteve num maracatu, já tomou um rebite e ficou doido ali no meio do caboclo de lança (risos), entendeu? Então, isso faz desse cinema uma coisa potente. Essas disciplinas interligadas, esse discurso que conversa com o outro. Então, as pessoas se criticam, se amam, brigam… E eu gosto desse ambiente.
Então, fazer a peça aqui tem esse sabor. Agora, eu nunca fiz teatro aqui. Uma vez, eu vim aqui no Teatro Santa Isabel, em 2006, e li uns trechos de um livro muito bonito, da Luce Pereira. Fui convidado para esse lançamento do livro dela, que se deu aqui nesse teatro. Fui aí nesse palco e li. Talvez, coincidentemente, textos muito bonitos e profundamente femininos. E, agora, estou aqui de novo, dez anos depois, falando textos muito bonitos, muito profundos de uma autora, que é Maria Cecília Nachtergaele, que é minha mãe. Então, tá gostoso. Meus amigos vão vir e isso me deixa nervoso. Eu fico muito nervoso quando meus amigos vêm assistir a alguma peça – e ainda mais amigos que eu admiro. Sempre me dá um friozinho a mais na barriga (risos). Eu vou fazer o espetáculo com bastante emoção, eu acho. Emoção poética, no caso. Isso é uma coisa importante, porque se confunde que um ator pode ser bom porque ele se emociona. Não necessariamente. Um ator pode ser bom se ele transforma essa emoção em algo não só particular, mas coletivo, e se ele consegue, de alguma forma, poetizar de alguma forma essa emoção. A emoção pura e simples não é atuação. Não que ela seja simples: ela é complexa, mas a emoção artística é outra. Antunes (Filho) diz isso e eu acho bonito: a emoção do ator é uma lembrança da emoção. Então, quando me perguntam se, após o espetáculo, eu fico muito transtornado, eu respondo “Não, eu fico muito atento. Poeticamente atento. Eu tenho marcas, um ritmo, músicos em cena, marcas de luz, uma partitura a cumprir”. E tenho também, obviamente, uma lembrança muito poderosa do que é saudade, falta, respeito, admiração, terrível, patético, foda, feio e chato na vida. Tem momentos no espetáculo que o que a gente, que a mamãe está falando é “a vida é foda”. E eu vou junto poeticamente com ela nesse discurso. Agora, eu não fico emocionado da maneira neurótica, mas poeticamente. Por isso que é alegre. Então, por isso que eu tive de esperar muito tempo para fazer isso. Para entender essas coisas todas da atuação. Demora para um artista se formar, eu acho.
E eu acho que eu estou no processo mesmo. Por isso que o título do espetáculo inclui a palavra “processo”. “Desejo” porque ele é o que caracteriza a vida: todo ser vivente deseja. Toda vida deseja algo que lhe falta. O desejo é o verbo primeiro do ser vivente: desejar comer, amar, carinho, proteção, seja o que for. E meu desejo sempre foi entender mamãe – ou, pelo menos, um dos meus desejos. E o “conscerto” porque mamãe gostava muito de música, escreveu poemas e a palavra dita, quando é poema, também é música. E tem música em cena, como mamãe gostava – então, é um concerto. E também é um conserto porque é um processo de consertar o que eu desejo na minha vida. Com certeza, o que eu vou desejar depois dessa peça vai ser outra coisa. Eu estou cumprindo uma etapa importante para mim como artista aqui. Então, eu deixo essa palavra “processo” junto do nome para que isso fique claro sempre, nem que seja inconscientemente, para as pessoas: que, quando eu não estou aqui oferecendo um espetáculo pronto. Eu estou aqui tentando conscertar junto com todo mundo aos poucos o que nos move.
E para você, Matheus, se é que é possível responder isso nesse momento, o que fica desse gesto de presença de traduzir um processo tão particular e íntimo coletivamente com essa forma poética?
Em geral, eu não conheço o público, mas nos conhecemos no que nos une. Esse que é o grande problema dos preconceitos, porque, no fundo, todo mundo entende o outro. Todo mundo sabe que somos iguais, que o que machuca em um machuca no outro, que o que um precisa o outro precisa também, independente de credo, raça, sexualidade, nacionalidade, religiosidade. Então, se o dito de Tolstói que se tornou popular estiver certo, quanto mais você retrata o seu jardim, mais universal você está sendo. Então, estou apostando também nisso. Se eu estiver falando muito profundamente da minha tragédia pessoal, eu posso estar falando da de todos. E que cada um possa, de alguma maneira, chorar, rir e fazer uma pequena catarse do seu drama pessoal. É tirar os tabus disso, porque a gente pode falar sobre isso. A gente se torna irmão nas alegrias e nas dores. Todo mundo está espantado diante da vida. Isso é um fato. A vida é espantosa. Ainda mais para a gente, os filhos de Lucy, que somos todos pensantes. Então, é algo que espanta. Uns se apegam com Deus; outros, com a ciência; outros, a nada e se drogam e ficam desesperados; outros, que ter filhos é uma resposta para a continuidade; outros, fazem arte. A gente tenta responder a esse mistério durante a vida e entende-la. Então, eu, como ator, uso esse trabalho para isso. É a minha maneira de ir pensando a vida através dos dramaturgos, dos personagens, da vocação de cada projeto, da visão de cada diretor também.
E, no caso do Processo de Conscerto…, eu vou fazer uma oração profana todos os dias seguindo certa ordem do missal, mas extremamente aberto ao que está acontecendo ao meu redor, enquanto esses versos ecoam e vou aprendendo coisas. É um processo vivo. Eu não tenho como te responder essa pergunta totalmente. O que posso te dizer é que eu estou descobrindo uma via de interpretação que eu ainda não tinha conhecido, que é ser outro personagem sem uma construção concreta dele, como te falei, confiando que ela está em mim e que as palavras são dela. E que isso acontece de certa maneira em cena que esteja sempre na cena eu e ela o tempo todo presentes. Então, as pessoas que viram no Rio de Janeiro sempre dizem que eu não faço uma mulher, mas é ela. Dizem que, em vários momento, viram minha mãe. Imaginaram como ela era, como era a voz dela, o gesto dela. Porque o texto é dela e o filho é dela? Então, eu estou descobrindo um negócio que eu não tenho muito como verbalizar, mas que é bonito. Ele é um pouco balé, um pouco poema, um pouco de atuação, muito de oração… E também de uma condição muito humana, de eu me colocar muito humanamente no palco, muito sem espetáculo, como eu falei. É isso que eu tenho de mais precioso: são os poemas que a minha mãe escreveu. Ela não foi uma poetisa famosa, mas o texto é bom. E isso é a coisa que eu mais gosto na vida e eu vou falar para vocês. Espero que faça sentido.
Todo dia, quando o público entra, e eu me coloco ali, no escuro, para começar a peça, eu faço uma força de pensamento para dizer “Deuses do teatro, me ajudem para que isso faça sentido”. Para todos nós. Por isso que é duro o teatro. Porque, cada vez que o público chega e você vai para a cena, tem que ter sentido. Teatro nunca é burocrático. Pelo menos, o teatro como eu acho bonito. Não tem “Vou ali fazer a peça e volto”. As pessoas estão ali e vai acontecer um lance, se tudo der certo. Eu tenho um amigo que diz “Se tudo der certo, vai dar merda!”. É mais ou menos assim o teatro (risos). Talvez por isso que a gente diga “MERDA!”