Crítica – A Festa do Maior Brilho | Quadrilha junina em diálogo com a força de Dionísio

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Imagem – Marcos Pastich
Por Domingos Jr
Ator, diretor e artista-educador, Graduado em Licenciatura em Teatro (UFPE)
Iniciei meu fazer artístico em quadrilha junina. Na quadrilha junina Rosa Linda, Linda Rosa intitulada a mais antiga do estado de Pernambuco. A Rosa Linda é da cidade de Paudalho, zona da mata norte do estado. A princípio esse texto poderia continuar na perspectiva descritiva e centrada na minha construção como artista, mas não é sobre isso e está tudo bem.
Na noite do dia 06/11/2022 experenciei algo que, para mim, conterrâneo do interior desse estado e brincador da cultura popular dos dez aos quinze anos de idade, sempre foi algo muito distante de minha realidade. Fui espectador de um espetáculo de quadrilha junina em cima do palco do teatro jardim mais antigo do Brasil, o Teatro do Parque (Recife-PE). A quadrilha junina Dona Matuta, do bairro de San Martin (Recife-PE) bateu os pés firmes, as palmas firmes e fez o público cantar e dançar com o espetáculo A Festa do Maior Brilho. Transportou o espetáculo do palhoção para o palco. Para muitas pessoas, esse evento pode ser algo banal ou até corriqueiro, mas se engana quem pensa por um desses caminhos.
A realidade das quadrilhas juninas não é fácil para se manter viva. Em muitos dos casos, os grupos se dissolvem por falta de condições financeiras ou até mesmo pela ausência de integrantes para compor o espetáculo. Este, muitas vezes, apresentado poucas vezes durante o período junino que acontece entre os meses de maio a julho de todos os anos. Os grupos começam os preparativos para entrar no arraial cerca de um ano antes para desenvolver dramaturgia, figurino, efeitos, coreografia e tantas outras linguagens que compõe o espetáculo brincado pelos quadrilheiros e quadrilheiras. É sobre a importância de ter uma quadrilha junina na programação do 25º Festival de Dança do Recife que se trata esse texto.

Apresentação da quadrilha junina Dona Matuta no 25º FDR | Imagem – Marcos Pastich | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Para quem já viveu algum dia o festival de quadrilha junina no Sítio Trindade e o festival da Rede Globo Nordeste, sabe que as torcidas de cada grupo que entoam seus gritos a favor de suas preferências se espremem em arquibancadas que margeiam o espaço cênico dos espetáculos. Até isso foi transposto do arraial para o teatro: “Vamos, Dona Matuta”; “Arrasa!”; “Bora minha travesti!” foram gritos lançados em direção ao palco pela plateia. Ora para o grande grupo no palco, ora direcionados para integrantes específicos na encenação.
O marcador, elemento primordial para o desenvolvimento do espetáculo, ecoou sua voz em off. Não se sabia onde ele estava, mas os estímulos como “Junina Dona Matuta!”; “O milho vai nascer, minha quadrilha!” continuavam a compor cena apresentada.
Sim, de fato é um espetáculo adaptado. A quantidade de pares ficou reduzida. Em cena, nove pares mais um integrante que interpretava o padre no momento do casamento foram os artistas em cima daquele palco. A redução é significante, os concursos exigem um número grande de participantes para a disputa dos prêmios. Mas nem essa redução de integrantes fez o espetáculo menor. A festividade, o melodrama, a exuberância dos figurinos e a interpretação própria das quadrilhas juninas estavam presentes nessa adaptação. Há de convir que algumas soluções cênicas para o palco necessitam de um aprimoramento, visto que são duas linguagens e espaços cênicos distintos: o arraial e o palco frontal. O arraial é um espaço cênico temporário montado pelas produções dos concursos.
Nos concursos a plateia prestigia de maneira lateral. Diante da quadrilha, só os jurados que, normalmente, ficam numa estrutura acima do espetáculo. Dessa vez foi diferente. Quem se deleitava com os desenhos das danças do grupo, a dança dos figurinos e as relações estabelecidas dentro da encenação estava sentado de maneira frontal. As interpretações dos integrantes se dirigiam ao público. Não havia uma avaliação de critérios necessários para levar o troféu de vencedor de nenhum concurso. Havia a generosidade, o prazer e a relação público-plateia sem julgamento, mas com muito brilho nos olhos e disponibilidade para o novo.
Os gritos cheios de intimidade entre quem assistia e quem dançava tomaram as estruturas do teatro. A relação com as periferias, de onde vem a maioria das quadrilhas juninas, estava presente e derrubando de vez a quarta parede definida pelo teatro realista. A cultura popular fincou os pés no palco reverberando o grave daquele chão. Em sua fala de agradecimento Sérgio Trindade, marcador da Dona Matuta, destacou “A quadrilha junina está presente nesse palco. Está dentro do teatro”. Sérgio Trindade demarca de maneira histórica a versatilidade e a possibilidade do alcance das quadrilhas juninas, do arraial até os palcos tradicionalmente ocupados por produções teatrais construídas em salas de ensaios e que já se utilizam dos aparatos desse tipo de palco.
Dionísio deve estar em festa, pois a festa se fez presente em seu reduto. A cultura popular é festa e sempre será festa em qualquer espaço cênico proposta a ela. O sincretismo religioso se fez presente, público se fez presente, os santos juninos se fizeram presentes no mês de novembro. Às produções de festivais e mostras de dança do Recife e das demais cidades desse país peço que continuem colocando quadrilha junina nos palcos, também, porque lugar de quadrilha junina ultrapassa os limites do arraial. Dessa maneira há possibilidades de que grupos da cultura popular se mantenham vivos financeiramente durante os demais períodos do ano, não só no período junino como previsto no calendário. Artistas da cultura popular são a base de identidade, educação e cultura em nossa sociedade. Como um apaixonado e egresso dos arrais eu grito em bom e alto tom: “Brilha, minha quadrilha!”