“Mourir pour de vrai”: nota sobre Cinderela, de Joël Pommerat
Por Igor de Almeida Silva
Professor da Licenciatura em teatro (UFPE) e doutor em Artes Cênicas (USP)
Originalmente criada em 2011, com a equipe do Teatro Nacional de Bruxelas, Cinderela (Cendrillon) é a terceira criação de Joël Pommerat inspirada em contos populares e que faz parte da programação da III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. A primeira foi Chapeuzinho vermelho (Le Petit chaperon rouge), em 2004; a segunda foi Pinóquio (Pinocchio), em 2008. As duas pela Companhia Louis Brouillard, que Pommerat fundou em 1990. Embora a motivação para trabalhar com os contos populares tenha partido de uma tentativa de despertar o interesse de suas filhas pelo seu teatro, os três espetáculos de Pommerat não se restringem ao universo infantil. Muito pelo contrário, sua versão de Cinderela oferece vários níveis de leitura e fruição. Aqui, pretende-se uma primeira abordagem, a partir do embate entre luto e esquecimento.
Na versão de Pommerat, Cinderela chama-se Sandra. Logo no início do espetáculo, o público é levado ao leito de morte de sua mãe. É por meio da morte, e mais especificamente, a partir do trabalho de luto, que o espetáculo toma sua direção. Sandra foi uma criança de imaginação fértil. Não mais conseguindo compreender o que sua mãe lhe dizia, passa a fingir que a entende e, portanto, a recriar completamente tudo que lhe era dito pela mãe. Em sua última frase, derradeiro pedido materno, Sandra “decide” entender que sua mãe lhe pede para que ela nunca a esqueça, sob o risco de que, caso seja esquecida, mesmo que por um curto lapso de tempo, sua mãe cairia na “verdadeira morte” e não poderia nunca mais voltar, como se mergulhasse no Lete, o rio mitológico do esquecimento e da morte. Pois no mundo antigo, eis justamente o que é a morte, ou a verdadeira morte (como fala Sandra: “mourir pour de vrai”): o esquecimento. A partir de então, a personagem passa a pensar obsessivamente em sua mãe.
Sua luta contra o esquecimento e, por extensão, contra a “verdadeira morte” transforma-se em um ato contínuo de autopunição a cada momento de distração. Nesse sentido, o antagonismo da madrasta e da jovem não se origina ao acaso, ou exclusivamente de uma perversidade natural, mas do embate entre ambas a cada lembrança materna que é evocada por Sandra. Um exemplo que beira ao cômico na peça: quando Sandra e seu pai chegam à casa da madrasta e suas duas filhas, no momento de apresentação das duas famílias, a jovem fala insistentemente na mãe, mostra fotos antigas da família, o alarme de seu relógio toca uma “música irritante” a cada cinco minutos (controle para que Sandra na esqueça de pensar na mãe) e, deliberadamente, ela se opõe à madrasta ao se recusar em guardar sua mochila. Sandra desenvolve uma relação masoquista com a madrasta como forma de autopunição a cada momento de esquecimento da mãe. Na divisão das tarefas domésticas, por exemplo, ela instiga a madrasta a lhe confiar todas as obrigações da casa, sobretudo as mais pesadas e desagradáveis.
Paradoxalmente, o encontro com o príncipe não significa de maneira direta o resgate da jovem de uma realidade opressora. Em verdade, esse encontro proporciona a Sandra olhar para si mesma, enxergar o próprio reflexo projetado no príncipe. Pois também este perde a mãe bastante jovem, mas, por excesso de proteção paterna, não lhe é revelada sua morte. Segundo o pai, a mãe partiu em viagem há mais de dez anos, sem jamais conseguir voltar ao reino, devido a uma greve infinita de transporte que impede seu retorno. Praticamente todos os dias o príncipe aguarda um telefonema da mãe que, naturalmente, nunca ocorre. Assim como Sandra, o jovem príncipe recusa-se a esquecer. Nem do luto que vivencia há mais de dez anos ele tem consciência. É Sandra quem lhe revela a verdade que, inclusive, ele se nega a crer a princípio. No entanto, as palavras de Sandra, chamando-o à realidade, têm um duplo destinatário: o príncipe e, sobretudo, ela mesma.
Sandra não compreendia o que sua mãe dizia no leito de morte, fingia compreender e recriava suas palavras. No fundo, protegia-se da verdade, ou da “verdadeira morte”, por meio de uma fantasia compensatória que apenas prolongava o estado de luto. Segundo Freud, o luto origina-se da ausência do ente a quem dedicávamos nossa energia, nossa afeição. Sem o destinatário, há o dispêndio desse afeto que deve ser reinvestido para outro destino, a fim de restabelecer o equilíbrio interno. De maneira geral, trata-se de uma questão “econômica” da nossa psique. O luto é justamente essa passagem, em que uma nova “economia” dos afetos é implantada. E Sandra prolonga seu luto, pois se recusa de modo radical a esquecer.
Pala além do antagonismo entre luto e esquecimento, outro tema emerge na peça: a comunicação ou os equívocos que a tornam ineficaz. Sobre os poderes da palavra que podem torná-la, por vezes, perigosa. Todo o sofrimento da protagonista deve-se a um mal entendido. Em verdade, o que a mãe lhe diz antes de morrer é para que a filha pense nela nos momentos de dificuldade para lhe dar coragem e, principalmente, pensar nela sempre com um sorriso. Estas últimas palavras da mãe são trazidas à cena novamente, ao final da peça, por efeito de magia da fada madrinha, como última etapa de seu trabalho de luto. No entanto, essa questão da escuta e da interpretação que a peça evoca é tratada formalmente pela encenação por meio de uma dissociação entre ver e escutar. Como prólogo e epílogo da peça, a narradora em off conta a narrativa falando em francês com um sotaque estrangeiro, enquanto que, em cena, um homem faz uma séries de gestos que evocam a linguagem dos sinais de modo estilizado. Em torno do homem, projeção de um céu azul. E, ao fundo, algumas palavras também são projetadas: história, dizer, imaginação. Há uma diferença clara entre ver e compreender, escutar e entender. Isso não apenas ao nível pessoal, como se vê na trajetória de Sandra, mas também na esfera coletiva, entre os laços que conectam as pessoas, que permitem o entendimento.
Tal como nas fábulas populares, há uma moral na história. Porém, longe das lições maniqueístas e edificantes dos contos, o final feliz não está na superação do bem contra o mal, no enlace entre o jovem príncipe e Sandra, mas no encontro consigo mesmo, na própria superação do luto e no autoconhecimento que essa aventura proporciona.