Nós estamos vivas | Entrevista – Danielle Anatólio

Ouça essa notícia
|
Imagem – George Maragaia
Entre os dias 10 de maio e 2 de junho (às sextas-feiras, às 21h30, e, aos sábados e domingos, às 18h30), o auditório do Sesc Ipiranga recebe temporada do espetáculo Lótus, criado em 2016 pela atriz e pesquisadora mineira Danielle Anatólio a partir de uma ampla pesquisa sobre a mulher negra como protagonista da cena e o corpo como vetor artístico.
Na trama, a partir da pergunta-chave “O que você vê quando olha para uma mulher negra?”, o público encontra histórias tradicionalmente invisibilizadas pelo patriarcado subjacente, resgatando a beleza da vida em um contexto de solidão e hipersexualização e apontando caminhos de resistência para as mulheres.
Em 2018, a peça ganhou o Prêmio Leda Maria Martins como melhor espetáculo de longa duração e se trata de um convite à reflexão sobre a afetividade nas relações e um chamado para a ressignificação do olhar sobre o sagrado feminino e o masculino. Para saber mais sobre o processo de criação e os pressuspostos que guiaram a pesquisa em torno da estética afrodiaspórica, o editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com a atriz e pesquisadora Danielle Anatólio.
Danielle, para quem ainda não te conhece, você pode falar um pouco da sua trajetória?
Eu comecei a fazer teatro aos 14 anos em Belo Horizonte. Aos 19 anos eu comecei a estudar teatro negro, o teatro experimental do negro proposto por Abdias do Nascimento, pela Ruth de Souza e pela Leia Garcia. Adentrei o grupo Teatro Negro e Gratitude, que é o primeiro grupo de teatro negro da capital de Minas. Depois, fui fazer teatro e fui estudar danças negras em Salvador. Ao longo dessa caminhada passei por vários espetáculos, hora de teatro, hora de dança.
Em Minas, trabalhei com Maurício Tizumba, um pouco de teatro musical também. E em 2016, eu resolvi fazer meu mestrado em artes cênicas. Eu tinha o desejo de levar para a academia um ponto de reflexão no que diz respeito a performatividade do corpo negro feminino. Defendi essa dissertação em 2018 e nessa mesma época do ano que eu entro para fazer o mestrado é o ano que eu pari Lótus. O espetáculo nasce quando eu estava vivendo ainda na cidade mais negra e feminina do Brasil, o que é Salvador, então é um pouco disso da minha trajetória.
Na sua trajetória, você vem aliando produções artísticas e pesquisas acadêmicas em torno das negritudes femininas. Como esses temas foram ganhando presença na sua jornada como artista?
Primeiro, acho importante dizer que eu venho de uma família matriarcal: eu sempre tive ao meu redor muitas mulheres negras e, desde criança, tinha o desejo de fazer arte, cantar, dançar, atuar, fazer TV. Porém, na televisão da minha geração, tínhamos bem menos rostos pretos e mulheres pretas e as mulheres negras que me inspirava eram aquelas que eu via sempre. Venho de uma família também ligada à arte: minha família materna sempre foi muito ligada ao samba, e a minha família paterna, minha avó é paterna, era regente de Coréia. Então, de alguma maneira, a arte sempre esteve presente.
Alinhar e aliar a produção artística com pesquisa acadêmica foi o meu desejo de, para além de me reafirmar enquanto atriz, também me reafirmar enquanto intelectual. Compreendendo que se ver como intelectual, um intelectual negra, sempre foi um desafio para muitas mulheres, principalmente para nós mulheres pretas. A ideia do acadêmico é algo muito grande, às vezes, e a gente tem que furar, romper com essa bolha. Então, eu não me via enquanto uma pessoa que escreve Conceição Evaristo, Leila, e ter tido convivência com ela também, sempre me ajudou a me reafirmar enquanto intelectual negra. Então, eu comecei a cruzar essas duas coisas. Intelectual, a Danielle, a atriz que interpreta e a Danielle que também escreve. E aí em Lotus nasce pela primeira vez a minha primeira dramaturgia.
No espetáculo, existem elementos que remetem a uma estética afrodiaspórica, como na preparação física, na trilha sonora etc.. Como foi o seu encontro com essas linguagens e o processo de incorporá-los ao fazer do espetáculo?
Na verdade, isso sempre foi muito presente na minha vida. Eu nasci numa família muito conectada ao samba, à dança negra, embora naquele momento eu não me desse conta que isso tinha a ver com uma linguagem afro, com uma estética negro-africana. Então, quando eu fui criar lotos, foi muito natural para mim, porque eu já dançava, já tinha caminhado na dança afro. E aí, essa dramaturgia eu procurei trazer de uma maneira menos ocidental e afrodiaspórica também no sentido de que a contação de história é algo muito presente, em África e nas famílias pretas. A nossa relação passa pela oralidade e esse encontro dessas linguagens e o processo de incorporar e fazer o espetáculo foi algo muito genuíno, é o que eu percebo assim, é o que eu já vivia. Eu só sistematizei as ideias no papel.
Você é idealizadora do CORPAS, Encontro de Performances de Mulheres Negras e TACULAS, Fórum de Performances de Mulheres Negras. Como foram acontecendo esses encontro com essas outras mulheres negras e o que vêm te proporcionando nos aspectos individual e coletivo?
Eu vinha pesquisando, desde 2014, os teatros, as performances que mulheres negras faziam, e via coisas incríveis, trabalhos muito potentes, e percebia o quanto, dentro dos espaços culturais, essas mulheres não estão presentes. Por que isso não está na mídia? Por que Priscila Rezende, de Belo Horizonte, ainda não é reconhecida? Jaqueline Elisbão, mulheres que eu pesquisei o trabalho delas. Então, o Corpas e o Taculas foram criados na intenção de criar um espaço para credibilizar essa arte, onde o corpo é vetor artístico, onde essas mulheres estão falando a partir de suas coisas. Condições de vida, de gênero e de raça.
E esses encontros foram se dando tanto nessa pesquisa, quando eu início em 2014, quanto nos encontros genuínos mesmo pela vida, ao acaso, entre aspas. Então, me veio o desejo de poder criar esses espaços, esses encontros, para que essas mulheres se pudessem, inclusive, se fortalecer, porque muitas das vezes a gente se sente muito sozinhas nessas criações também. E quando a gente vai para o coletivo, a gente percebe que nós estamos, embora nós tenhamos nossas especificidades, existe algo em comum em todas nós que é esse lugar de gênero negra, de histórias de abuso, de histórias de extrema solidão, de histórias de assédio, histórias racistas. Então, esses encontros, taculas e corpas, foram encontros onde nós pudemos não só nos fortalecer, mas especialmente visibilizar a arte produzida por essas mulheres.
O espetáculo Lótus estreou em 2016, um dos anos mais marcantes na história recente do Brasil e, desde então, uma ascensão de discussões sobre temáticas políticas e identitárias transformou muito nosso olhar sobre a sociedade. Desde a estreia, como seu olhar sobre o espetáculo vem se transformando enquanto esse cenário ao redor também se movimenta?
No mesmo ano em que estreava o espetáculo, estava entrando na universidade e vivenciei a chegada do Temer após o impeachment. Desde então, muitas coisas mudaram naquele espaço, como, por exemplo, fui uma aluna que até então teria bolsa e aí não consegui bolsa por uma mudança que foi no STF, uma medida muito vertical, retirando o Ampara aos estudantes. Eu fui a primeira cotista negra do programa de pós-graduação das artes cênicas em um ano que deixou muito nítido para mim ainda mais a necessidade de obras artísticas como Lótus, a necessidade de nós mulheres pretas galgarmos por espaço para falar das nossas histórias, né, e aí foi um ano também que na cultura diminui-se os. E as possibilidades, inclusive o corpos, o taculas, veio também nessa perspectiva, né, de poder ter espaço e dentro do cenário cultural.
Desde então, o espetáculo foi amadurecendo, foi se transformando, foram anos difíceis, por exemplo, quando eu estreei Lótus no Rio de Janeiro, eu fiz uma temporada no teatro e a minha estreia foi exatamente na semana do assassinato de Marielle Franco e, ao mesmo tempo, vivendo aquele episódio, né, que todo mundo que estava nessa cidade sentiu ainda mais forte, né, todo mundo conhecia alguém que viveu com a Marielle e eu mesma a conheci, então entrar em cena com um coração muito triste, doído, né, dilacerado, mas com uma energia também, assim, de não podemos parar, precisamos estar aqui.
O espetáculo teve que ir pra cena mesmo na semana desse assassinato, porque é sobre isso, é sobre nós mulheres negras que a gente precisa falar, precisa ter espaço para que a gente não morra, sendo uma forma de dizer nós estamos vivas e a gente vai continuar, não vai parar. Então, esse espetáculo foi amadurecendo também diante a um contexto político nessa época de extrema densidade, de extrema confusão e ao mesmo tempo não deixando de fazer aquilo que nós acreditamos que precisa ser feito, não deixando de colocar o nosso corpo na cena e a luta tanto teve uma continuidade, tanto se fez que a gente percebe hoje. É um momento em que me parece, pelo menos, que as coisas estão caminhando para uma transformação. Estamos em dias melhores do que vivemos nesses últimos quatro anos.