Ocupe os espaços | Entrevista – Eron Villar
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Imagem – Ana Yoneda
Dentre os espetáculos que integram a programação pernambucana do Palco Giratório 2024, Se eu fosse Malcolm aborda a figura do ativista norte-americano Malcolm X a partir do olhar dos multiartistas Eron Villar e ViBra. Juntos, ambos constroem uma performance que passeia entre a música contemporânea e o teatro épico-narrativo, numa abordagem crítica decolonial, com enfoque para o recorte de raça e gênero.
O mote criativo surge da indagação que dá título ao trabalho, desdobrando-se no encontro do ativista com várias personalidades negras que também lutaram e deixaram seu nome na história de resistência, desde Martin Luther King até a poeta pernambucana Bell Puã, passando pelas vozes potentes de Nina Simone e Elza Soares.
Para saber mais sobre o processo de criação do espetáculo, o co-editor-chefe do Quarta Parede, João Guilherme de Paula, conversou com Eron Villar sobre as influências que o ativista trouxe para a concepção da obra.
O espetáculo “Se Eu Fosse Malcolm?” une elementos de teatro épico-narrativo e música contemporânea em uma performance híbrida. Como surgiu a ideia de criar essa obra e quais foram as principais influências que moldaram seu desenvolvimento?
O espetáculo surgiu a partir de algumas inquietações. Depois que comecei a estudar os estudos culturais, sobretudo as questões decoloniais, no meu Mestrado em Letras, essa questão de raça ficou muito evidente no meu cotidiano, no meu dia a dia. Quando escrevi num artigo sobre a Pantera Negra, tive que revisitar aquele período ali dos anos 50, 60 até 70, onde estavam se estabelecendo as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e América. Foi quando encontrei Malcolm X.
Depois de uma palestra do Dr. Cornel West aqui no Brasil junto com o ICL, ficou muito forte esse desejo de montar alguma coisa a partir da figura dele. E aí pensei, em vez de viver o Malcolm, se eu me colocar em várias possibilidades desse Malcolm, desde sua época até os dias de hoje. Esse foi o moto inicial. Então, comecei a escrever muito rapidamente um texto inicial, e fui melhorando aos poucos.
Foi quando eu tive a ideia de não fazer um monólogo, mas de compartilhar o palco com alguém. E aí pensei em uma mulher preta, instrumentista, musicista, mas aí o fato de ter uma DJ, que é uma linguagem bem contemporânea, bem presente, e que pesquisa nesse universo da periferia das músicas, sobre várias tendências, etnias.
Então, me lembrei de Vibra, que estava bombando nesse universo e também é uma amiga minha há muitos anos. Eu a convidei e ela aceitou de imediato. O espetáculo traz influência de alguns pensadores e pensadoras negras, Lele Gonzales, Abdias Nascimento, alguns pensadores como o Maldonado Torres, Stuart Hall, enfim…
A colaboração entre Eron Villar e DJ Vibra é fundamental para o espetáculo. Como essa parceria artística contribuiu para a construção da narrativa e para a dinâmica da performance?
Essa parceria contribui muito sob vários aspectos. Primeiro, de gênero, de trazer a questão do gênero para junto. Uma mulher preta, uma mulher militante, artista, feminista, que está atuando por várias áreas do cinema, do teatro, da performance, da música. E um homem preto de periferia que passa também pela literatura, pelos quadrinhos, pelo cinema, pelo teatro. Acho que essa interrelação de linguagem, de signos, tem sido muito forte, muito presente. Ambos se interessavam pela questão do afroturismo e do panafricanismo como estudo, o que contribuiu muito para essa aproximação de conteúdo, de sinergia, enfim. Inicialmente, a proposta era que ela fosse a DJ para compor a trilha sonora.
Mas aí a gente entendeu que era muito mais interessante ela entrar no espetáculo como diretora, como preparadora dessa narrativa sonora e também como atriz e performer. E aí a gente foi construindo esse equilíbrio na cena de um e do outro e de se amparar um no outro. para construir, aí ela virou Beth Chabaz, a esposa do Malcom, que tem uma forte participação no espetáculo.
Enfim, aí ela entra tanto com essa força épica quanto dramática, como atriz, como performer, como narradora, como musicista. E a minha contribuição eu vejo muito mais como MC, como mestre de cerimônia, que inicia conduzindo a trama, apresentando o contexto da história e, aos poucos, vou me transformando num possível Malcom.
Porém, ainda trazendo questões do cotidiano de hoje, da periferia, dos poetas urbanos, das abordagens violentas que a gente vê hoje nas comunidades periféricas, em situações vistas e noticiadas no dia a dia de violência e de agressão racial o tempo todo. Hoje, não só refletindo a época de Malcolm, do que ele sofreu, porque ele lutava, mas também das coisas todas que a gente vê até hoje, em cada esquina do Ibura, do Casa Amarela, do Santo Amaro etc..
Como vocês acham que o espetáculo reflete sobre a mobilidade de linguagens e expressões culturais ao discutir raça e gênero, relacionando essas questões com as particularidades locais da cidade do Recife?
A proposta é trazer uma reflexão, principalmente para a juventude, dessa possibilidade de que a música, o teatro, a poesia e o cinema podem contribuir nessa melhora social. A gente busca mostrar as questões relativas às periferias e às comunidades, mas também de apontar um caminho. Talvez o tópico mais presente que a gente acredita que a arte pode direcionar caminhos, trazer reflexões e, quiçá, mudar esse cotidiano de opressão e violência.
Acho que a gente acredita muito nisso no nosso dia a dia, na nossa prática. E isso é muito fortemente vivenciado no espetáculo, né? A gente traz a periferia, a gente traz o brega funk, a gente traz a capoeira, a gente traz os orixás, que estão muito presentes nesse cotidiano, com reflexão crítica, política, mas estética, sabe? Com alegria, o espetáculo termina… Fala de morte, mas ele traz um clima de alegria, de rave, de tocada de DJ.
No espetáculo, vocês utilizam uma abordagem crítica e decolonial para explorar temas de resistência e justiça, incluindo a projeção de textos durante a performance. De que maneira essa perspectiva decolonial no espetáculo contribui para reconfigurar os espaços cênicos e fomentar novos diálogos e interações?
Essa perspectiva decolonial é o fio de condutor filosófico do espetáculo, não só no sentido da teoria, mas da práxis, por isso que a gente traz o cotidiano das pessoas, por isso que a gente traz essa linguagem que comunica com os vídeos, com a poesia popular. Nas palavras de Miró, de Bell Puã, dessa galera que está aí no convívio, sabe? Boca a boca, na rua, nas redes sociais.
Então, essa perspectiva decolonial é no sentido de, juntos e juntas, construir uma prática que leve para um outro nível de compreensão social e de inserção social. Acho que isso é o que nós defendemos muito. Inclusive, a gente quer agregar oficinas ao espetáculo: chegar nas comunidades com oficina de DJ, oficina de composição musical, oficina de quadrinhos, oficina de teatro. Chegar com uma atitude que confronte esse sistema hegemônico, capitalista, patriarcal, monoculturista, que a gente quer enfrentar e combater com teoria, mas também com muita prática.
Sobre a configuração de espaços cênicos e interativos, acredito muito nessa intersemiose na relação dos signos, por isso que pesquiso várias linguagens, teatro, cinema, literatura, quadrinhos, etc., na minha prática cotidiana, na minha pesquisa acadêmica. A junção desses elementos traz uma compreensão mais acessível para as pessoas: não se trata de defender a pureza de cada arte, mas a junção dos elementos – sobretudo os que estão presentes no nosso dia a dia. Na comunidade, no terreiro, na rua, na escola, no trabalho, na TV, nas redes sociais, essa interrelação sígnica traz uma arte acessível, compreensível e reflexiva, mas também alegre e utópica, enfim.
Se pudessem deixar uma mensagem ou provocar uma reflexão no público após assistirem “Se Eu Fosse Malcolm?”, qual seria?
Não sei se mensagem é uma palavra, mas uma reflexão. Para as pessoas é isso, seja você, se imponha dentro do seu contexto social, mostre suas habilidades, suas qualidades como pessoa preta, como mulher, como pessoa LGBTQIA+, e cada vez mais ocupe os espaços com responsabilidade e crítica, mas também com poesia, paz e tranquilidade. Uma paz, às vezes armada, mas que precisa estar presente.
Eu vi hoje um meme falava um pouco dessa filosofia africana: ‘seja singelo, mas ande com o porrete na mão’. Acho que isso é muito presente. Malcolm começou com uma ideia muito radical sobre o pensamento de separar preto do branco e de ocupar esse espaço de forma violenta e agressiva, por qualquer meio necessário. Mas depois ele relata, às vezes, esse pensamento e vai entendendo que pode ser a união das forças que vai trazer esse lugar, desde que você ocupe o seu lugar.
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Eron Villar é multiartista das áreas de teatro, cinema, literatura e HQs, com 27 anos de profissão. DJ Vibra, também multiartista da música, cinema e teatro, polímata. Ambos se conectaram pela primeira vez para a montagem do espetáculo “Se eu fosse Malcolm?”, em maio de 2023, no intuito de explorar uma linguagem experimental híbrida que unisse os vários elementos estéticos de suas artes numa única obra. “…Malcolm?” estreou no Festival Internacional Cena Cumplicidades e participou do Festival Recife do Teatro Nacional, Semana de Arte do Daruê Malungo e Janeiro de Grandes Espetáculos.