Somos todos Sísifos | Entrevista – Leo Horta
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Imagem – Camila Campos
Para celebrar os 20 anos da mineira Cia Lúdica dos Atores, o premiado solo O Sonho de um Homem Ridículo estreia na capital paulista, no Espaço Parlapatões. A temporada vai de 4 a 21 de julho, com sessões de quinta a sábado, às 20h, e, aos domingos, às 19h.
Dirigido por Alexandre Kavanji, o espetáculo adapta para o teatro o clássico conto homônimo do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). O grupo teve a preocupação de manter o texto o mais fiel possível à obra original, transportando o público para um mundo de reflexões profundas sobre vida, morte e redenção.
Na trama, o ator Leo Horta, formado pela academia russa de teatro (The International Seminar “The Stanislavsky System Today”/Moscou, 2011 e Konstantin Stanislavsky and Mikhail Chekhov Today – practical training for actors and directors/Letônia, 2013), interpreta um personagem decidido a acabar com a própria vida, pois está mergulhado em reflexões sobre suas contínuas frustrações e a falta de significado e propósito no mundo que o rodeia.
Para saber mais sobre o processo de criação, o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com o ator Leo Horta.
A Cia Lúdica dos Atores está celebrando 20 anos de história. O que levou o grupo ao texto “O Sonho de um Homem Ridículo” de Fiódor Dostoiévski, e como esse espetáculo se relaciona com a trajetória da companhia?
O início da trajetória da Companhia Lúdica dos Atores de BH foi marcado pela pesquisa e montagem das peças de William Shakespeare, com a intenção de reforçar e divulgar o caráter universal da obra do dramaturgo inglês, através da montagem de seus espetáculos de forma aberta e construída a partir da pesquisa em torno da cultura popular.
Com o tempo, sentimos a necessidade de ampliar a proposta de pesquisa para outros autores; assim, chegamos a Dostoiévski com o conto “O Sonho de um Homem Ridículo”. A peça foi montada tendo como base a mesma estrutura de pesquisa. Levamos 18 meses para deixar o espetáculo pronto, cumprindo todas as etapas de pesquisa e experimentação que a obra nos proporcionou.
O grupo se esforçou para manter o texto o mais fiel possível à obra original de Dostoiévski. Quais foram os principais desafios e recompensas desse processo de adaptação?
A peça foi construída utilizando a obra na íntegra. Usamos uma tradução feita pelo professor Vadim Nikitin e distribuída pela Editora 34. No geral, fizemos apenas alguns ajustes para orientar a dramaturgia; foi um desafio, sem dúvida. Para isso, contamos com a competência e a sensibilidade de nossa orientadora dramatúrgica, Solange Dias, que é paulista e aceitou o convite feito por Alexandre Kavanji, diretor da peça. Ao final, conseguimos chegar a um resultado que, ao nosso ver, foi muito positivo. O texto, ora narrado pelo narrador e ora narrado pela própria personagem, proporciona um diálogo interessante entre o ator e o público, permitindo uma viagem fluida durante todo o espetáculo.
A peça possui uma narrativa introspectiva e busca explorar similaridades entre São Petersburgo e Minas Gerais. Como foi essa escolha no contexto da direção e na sua conexão com os outros elementos do espetáculo?
Nosso processo de pesquisa é extenso; geralmente, levamos entre 18 e 24 meses para cada montagem da companhia. Com “O Sonho” não foi diferente. Isso se dá muito pela necessidade de buscar informações na pesquisa que possam aproximar o contexto histórico e social da obra para o nosso tempo. Para isso, buscamos similaridades entre a Rússia de 1877 e Minas Gerais no mesmo período. Já nessa primeira fase, identificamos elementos estéticos e objetos que tinham similaridade.
Assim, chegamos ao primeiro esboço visual, onde o “Samovar”, um utensílio culinário russo utilizado para aquecer água e servir chá, se transformou em nossa moringa de barro, elemento tradicional da cultura mineira que serve para guardar e servir água. Isso se repete para todos os objetos utilizados como cenário e adereços de cena. Nosso figurino e até a iluminação da peça seguem esse caminho.
A produção apresenta o cenário, figurino e iluminação como elementos importantes para acompanhar a solidão do ator Leo Horta no palco. Como essas dramaturgias foram se combinando para complementar a narrativa da peça?
Através de poucos objetos, o cenário é construído à medida que a peça se desenvolve, chegando ao seu ápice no momento mais lúdico da narrativa, no sonho. O cenário é composto por elementos típicos da cultura mineira interiorana. A simplicidade dos elementos, que ganham uma luz individual e são suspensos por cordas, em certo ponto, torna tudo “espetacular”, compondo um quadro diante dos olhos de quem assiste, para depois esta mesma imagem ir se desconstruindo, como o próprio personagem o faz.
A equipe utilizou referências de Nietzsche e Camus para a criação do espetáculo. Como esses filósofos influenciaram a montagem e a interpretação da obra?
Tanto Friedrich Nietzsche quanto Albert Camus foram profundamente influenciados pela obra de Fiódor Dostoiévski. Isso era muito latente em nossa pesquisa; assim, encontramos nos dois autores características que aproximam este personagem, o “homem ridículo”, do ser humano contemporâneo. Nos apropriamos e colocamos em cena duas influências dos respectivos autores.
No prólogo da peça, temos a cena “O Louco”, descrita no livro “A Gaia Ciência” de Nietzsche; esse texto dialoga com o “Mito de Sísifo” de Albert Camus, dando a ambientação do espetáculo que vem a seguir. “Somos todos Sísifos, erguendo nossas rochas repetidas vezes; essa é a tragédia da nossa condição.” Esse trecho, por exemplo, representa muito o “homem comum” de hoje, que todos os dias acorda às 5 da manhã, pega sua rocha, coloca na bolsa e encara 2 horas de ônibus até o trabalho.
Ao fim do dia, ele coloca a pedra novamente na bolsa e retorna para casa, em um ciclo constante e, às vezes, eterno, como é o caso de Sísifo, condenado pelos deuses a rolar uma pedra morro acima pela eternidade. Não poderia haver trabalho mais inútil. Mesmo assim, Sísifo encara sua sina com dignidade e vence! “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição e pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo; é necessário imaginar Sísifo feliz.”