“Todo dia de ensaio é uma guerrilha” | Entrevista – Giordano Castro
Imagens – Divulgação
Nesse mês de maio, o ator e dramaturgo do grupo Magiluth, Giordano Castro, tem uma diversidade de razões para celebrar, já que, recentemente, aconteceu tanto o lançamento do livro contendo a dramaturgia do espetáculo Aquilo que meu olhar guardou pra você (que você pode adquirir AQUI), editado pela Fontanella Casa Editrice, e a estreia de Vento Forte para Água e Sabão (saiba mais AQUI), realizado pela Companhia Fiandeiros.
Enquanto que o primeiro é um espetáculo adulto que lida com temáticas humanas e sociais de forma muito particular, o segundo é um infanto juvenil que narra as desventuras de uma bolha de sabão e uma rajada de vento repletas de simbolismos relacionadas à questão da morte. Para falar um pouco sobre as diferentes facetas de sua escrita, Giordano conversou um pouco com nosso editor-chefe, Márcio Andrade.
A dramaturgia, diferente de áreas como direção e atuação, recebe menos ênfase tanto de formação e do próprio público. Ser dramaturgo, para você, foi uma escolha consciente ou surgiu a partir do Magiluth?
A minha história com a dramaturgia começou um pouco antes do Magiluth, inclusive, um pouco antes da minha entrada na universidade. Eu já gostava de ler algumas coisas de dramaturgia desde a época do colégio e quando eu cheguei na UFPE, comecei a ter as primeiras disciplinas que tratavam de dramaturgia – com Marcondes Lima, Marco Camarotti, Paulo Michelotto, Ricardo Bigi. Foi através deles que eu fui me interessando mais por essa linha. Eu sempre escrevia de forma tímida, algo mais pra mim mesmo, e nunca pensando enquanto dramaturgia.
A minha escrita acontece no Magiluth de forma bem tardia, na verdade, porque quando o grupo surgiu, nós tínhamos essa ideia de jogo. Quando estávamos com o Ato, por exemplo, não tínhamos uma dramaturgia escrita, mas somente roteirizada, digamos assim. E a primeira peça escrita dentro do grupo foi Corra, com texto de Marcelo Oliveira. Então, ele terminou ficando muito marcado nesse lugar de dramaturgo dentro do grupo, já que a gente e as pessoas ao redor também o legitimavam nesse papel – e ele também tinha o interesse em se exercitar nessa área. Com a saída dele, eu acabei, de certa forma, assumindo esse lugar – mesmo que, no Magiluth, nunca tivesse existido essa hierarquia. Todo mundo que quisesse experimentar, poderia, mas eu vim assumindo a partir do meu interesse mesmo.
Mas a minha relação com a dramaturgia dentro do grupo é bastante horizontal: tudo que eu escrevi dentro de Magiluth tem essa relação com o processo, com o outro, com o jogo. Ela acontece muito a partir dos estímulos dentro da sala de ensaio. Então, por exemplo, por mais que no Aquilo… tenham muitas coisas que tenham surgido a partir de proposições minhas, outras partes vinham a partir dos improvisos. Meu lugar de dramaturgo dentro do grupo também é de jogador, sabe? Às vezes, eu sou somente um organizador das propostas que vêm deles e procuro até exercitar esse olhar “de fora”, para que não perca as minhas vontades, mas termina que essa do coletivo termina prevalecendo.
Talvez por isso que, no Magiluth, a figura do dramaturgo apareça de forma tão forte, já que nenhuma função dentro do possui essa posição tão vibrante. Acredito que nós somos muito potentes juntos. Claro que existem assinaturas na direção, na dramaturgia etc., mas a gente sempre entende que elas funcionam como a pessoa que aperta um parafuso para que a engrenagem continue funcionando da forma como ela é. Então, eu sou um dramaturgo coletivo, o diretor organiza as coisas para esse coletivo. A dramaturgia do Aquilo… é criada por esse movimento coletivo.
O quanto que a leitura de textos dramáticos influenciou na formação da sua própria escrita e como você vê esse tipo de publicação hoje, com blogs e e-books?
Eu acredito que o lançamento dessa e de outras dramaturgias vem como forma de perpetuar uma obra. A gente sabe que, por mais que se façam vídeos, essa linguagem do teatro acontece no presente, na relação do público com a obra naquele momento. E existem formas que a gente procura para fazer aquele instante se perpetuar, de alguma forma, como grupos que lançam DVDs, outros, que lançam livros. Quando a gente fala desses dramaturgos como Moliére, Shakespeare, Nelson etc., a publicação dessas dramaturgias acontece porque elas são grandes e, hoje, temos um acesso às mais possibilidades de publicação. E nem só a publicação em si, mas formas de perpetuação mais plurais, como plataformas digitais, por exemplo.
Eu sou uma pessoa que consome bastante dramaturgia. Adoro ler textos dramáticos e acho que temos uma nova leva de dramaturgos muito bons que estão preocupados com esse movimento quase memorialista de fazer com que seus trabalhos perdurem, nem que seja dentro de um livro. Por exemplo, tem uma leva de dramaturgos mineiros, como Grace Passô, Assis Benevito (do Quatroloscinco), assim como no Rio de Janeiro também, como Jô Bilac, Diogo Liberano. E também existem editoras interessadas nesse tipo de publicação, como a Combogó, por exemplo, que publica bastante dramaturgia contemporânea brasileira. O pessoal de Belo Horizonte tem a Javali agora, que é de Assis e Vinícius, que é uma galera interessada em fazer com que as próximas gerações que não possam mais assistir ao espetáculo tenham acesso e compreendam aquelas palavras.
Quanto a esse lance dos blogs e e-books, Márcio, eu sou uma pessoa muito do tato – não tenho muita paciência para ler no computador. A não ser que seja um texto que só tenha essa forma de ser acessado, como blog, site de notícias etc., mas eu sempre dou preferência ao livro. No entanto, a tecnologia (e a internet, principalmente) deu a possibilidade de muita gente nova que não quer alcançar um grande público, mas somente escrever mesmo, possa se expressar. Então, artistas muito potentes e interessantes começaram a surgir daí, como Jô Bilac: ele participava de um grupo de pessoas que escreviam junto com ele num blog e era um exercício de todo mundo escrever um texto por semana. Então, essas plataformas funcionam como um exercício de escrita, seja para dramaturgos, ensaístas etc.. No caso dessa publicação do Magiluth, Sandro Fortunato, editor da Fortunella Casa Editrice, uma editora interessada na publicação teatral sediada no Rio e em Natal, se encontrou com a gente e casou uma ideia antiga nossa de fazer a essa publicação – eles lançaram também Guerra, Formigas e Palhaços, um texto de César Ferrario, do Clowns de Shakespeare.
Como a circulação do Magiluth pelo país e o contato com outras dramaturgias ao longo do caminho influencia no seu processo de criação?
Nessa circulação que tu mencionou, a gente encontra muita gente fazendo um teatro de qualidade e com linguagens e pesquisas que dialogam muito com as nossas. E termina sendo inevitável que a gente se influencie com o que o outro tá lendo, conversando etc.. No ano retrasado, em que a gente fez o Palco Giratório, foi uma circulação que foi pelo Brasil todo e foi inevitável o choque de realidade que terminou provocando muita coisa d’O Ano em que sonhamos perigosamente, por exemplo, que é um espetáculo em que estamos falando de crise – e a única forma que nos colocamos diante dela é fazendo teatro. E a gente fala dessa luta: apesar de tudo, estamos tentando ensaiar, tentando fazer as coisas acontecerem. Todo dia é uma guerrilha diária. Magiluth também se encontra nessa guerrilha, de manter esse núcleo de artistas e isso também vira discurso dentro do nosso trabalho.
O momento em que a gente produziu Aquilo em que meu olhar guardou pra você foi um tempo em que a gente estava trocando bastante com um grupo de Brasília, o Teatro do Concreto. Fazia parte do projeto do Rumos Itaú Cultural o diálogo entre esses dois grupos. Então, prestar atenção em Brasília, em um outro cenário, uma cidade que tem outra proposta de organização enquanto estrutura de cidade – que é bem mais organizada do que a nossa, mas que não deixa de ter o caos. Então, as relações humanas e materiais terminam virando material pra gente. Como nós do Magiluth nos sentimos extremamente abertos e procuramos nos afetar por tudo que tá ao nosso redor, a gente não passa por nenhum lugar de forma passiva, mas com um olhar sempre atento e crítico e nos colocando em xeque dentro dessa realidade. E isso tudo tem sido material nas últimas discussões, dos nossos processos.
Sobre Vento Forte para Água e Sabão, escrever teatro para crianças é considerada uma tarefa mais complexa do que para adultos. Para você, existem receios ou ênfases para cada um dos públicos?
Márcio, eu acredito que o ponto em comum para escrever para crianças e adultos, no meu caso, seja que eu me sinta absolutamente livre nos dois. Eu não fico me podando de tocar em alguns assuntos, mas me sinto livre para falar da forma que eu quiser as coisas que eu estiver pensando, mas claro que a forma como você aborda é diferente. No caso do público infanto-juvenil, eu venho falando bastante disso ultimamente: pode-se falar sobre tudo com crianças. A gente é que tem um preconceito e acredita que esse público seja um pote que vai precisar encher de alguma coisa, como se eles não conseguissem lidar com certas coisas. E eu acredito que eles conseguem lidar com as coisas da vida, com as coisas que acontecem. Eles têm inteligência e sagacidade para lidar com as coisas, muitas vezes até melhor do que os próprios adultos. Mas quando você precisa falar com eles, é preciso falar olho no olho. Camarotti falava muito isso: que é preciso se abaixar para conversar com ela cara e cara.
Eu acho que é isso mesmo. Não é somente porque a gente está fazendo algo para crianças que a gente precisasse ensinar alguma coisa ou falar de algo que ela ainda não sabe. Aí, é onde eu chego no adulto. Existem coisas que eu não vivi na minha vida, sabe? São experiências. Então, têm coisas que consigo falar pela minha vivência e outras que eu posso falar como eu percebo. Então, eu sinto que me dou bem com esses dois público, porque me deixo livre para falar o que sinto. Pelo menos, eu tento.
Como vocês chegaram nas figuras da bolha de sabão e na rajada de vento para tratar da morte?
(risos) Iiiiihhh… Deixa ver se eu consigo me lembrar, visse? Tudo começou com um exercício com Luiz Felipe Botelho, outro mestre para mim em relação à dramaturgia, dentro de uma oficina que ele estava fazendo – Dramaturgia – Na Fronteira das Linguagens (de que você, Márcio, participava também, inclusive). E ele separou a turma por temas e eu acredito que eu e Amanda (Torres, co-autora de Vento Forte…) ficamos com o tema do ‘fantástico’, se eu não me engano. Amanda já tinha um pouco dessa vontade de escrever para crianças e a gente ficou pensando sobre o que falar e eu vim com essa proposta “vamos falar sobre morte”. Aí, eu lembro que Amanda foi um pouco relutante com essa ideia, mas eu achava que a gente poderia criar uma grande metáfora. A gente tinha falado bastante sobre mito durante a oficina e os mitos têm muito de criar metáforas para explicar coisas que são difíceis de entender através da razão.
E a gente foi pensando em coisas que fossem efêmeras, que tivessem um tempo de vida muito curto e chegamos nessa ideia da bolha de sabão. O processo de escrita com Amanda foi muito delicioso. Acho que foi a primeira vez que eu escrevi com alguém. O processo era assim; a gente teve essa ideia, passava um tempo trocando, escrevendo juntos. Tinha momentos em que eu escrevia uma parte, mandava pra ela e ela dava continuidade. Depois, esse texto passou por uma reescrita, eu fui refazendo algumas cenas e Amanda curtia a ideia e ia enxertando outras coisas. Então, era meio que uma colcha de retalhos tentando seguir a mesma linha. Hoje, quando eu vejo o espetáculo, fico meio confuso, nunca sei quem botou cada coisa, porque acho que a gente conseguiu uma química para escrever um texto de forma muito concisa.
Para você, quais as diferenças entre criar um texto para ser realizado pelo próprio grupo e ter uma peça encenada por outro grupo?
Márcio, eu não tenho exatamente uma preferência, mas a recepção da obra é muito diferente. Quando as coisas são escritas para o Magiluth, a gente está tão dentro do jogo, tá tudo tão orgânico e tranquilo que eu nem levo em consideração que aquele texto seja meu, saca? Porque, ali, eu estou dentro do jogo junto com os meus amigos e eu estou me divertindo fazendo meu trabalho – que é diferente de me divertir assistindo, por exemplo. E acaba que está tudo num lugar de conforto. Claro que, quando a gente está no processo de ensaio, quando eu escuto um dos atores falando o texto e acho estranho, isso chama minha atenção e partimos para as correções. Existe algo dentro do Magiluth que é que nem sempre o texto que eu escrevo é o texto que vai para a cena. Acredito que as pessoas vão sentir um pouco isso quando pegarem o texto da dramaturgia do Aquilo…, porque nem sempre o texto que está escrito está na boca do ator. A gente sempre tem uma conversa para tentar fazer com que aquele texto saia da boca daquele ator da forma mais natural e verdadeira possível. Para isso, ele tem de se apropriar daquilo e falar o texto da forma que melhor lhe convir.
No caso do Vento Forte… ou do Alegria de Náufragos, que é um trabalho de eu participei agora em João Pessoa junto com o pessoal do Sertão Teatro, em que eu e Cesar Ferrário se dividiu fazendo direção e dramaturgia, é muito doido assistir. Porque você fica bem emocionado, já que faz parte da história que está ali acontecendo, e, como eu escrevo com total liberdade, eu vejo como diretor tá dando conta daquela questão. Eu escrevo, mas como vai ser encenado, fica com o diretor. Quando você vê as soluções cênicas, ou quando o diretor preferiu falar aquilo, quando um ator resolveu dar uma determinada embocadura, você faz “woooowww, que lindo!”, porque eu amo a dramaturgia, mas ela é uma literatura. Ela tem a potência de ação pulsante dentro dela, mas, enquanto escrita, ela é literatura, e quando você vê que ela aconteceu, é como se fosse uma vida acontecendo ali. E quando você tá de fora e consegue ver isso de fora, é maravilhoso.
Eu tive a oportunidade de ver Pedro Wagner em cena agora em São Paulo e ele é um ator monstruoso, super talentoso, mas que tem uma história dentro do Magiluth muito longa. Então, a gente se entende muito em cena, enquanto fisicalidade, corpo, tudo mais. E vê-lo em cena é também ver um pouco dessa trajetória, dessa pesquisa, dessa linguagem, sabe? Então, são fruições muito diferentes, mas eu gosto muito das duas: eu quero continuar fazendo e assistindo a coisas que escrevi.