Um caos simples | Entrevista – Coletivo Binário
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Imagem – Dennys Flores
Nesse mês de maio, o espetáculo 180 Dias de Inverno, do Coletivo Binário, realizou apresentações no Teatro Vasques – R. Dr. Corrêa, 515 – Centro – Mogi das Cruzes/SP. Além das apresentações, o coletivo também realizou de forma gratuita debates após as apresentações de sexta e sábado e oferece a Oficina Cena Digital.
Inspirada no texto Minha Fantasma, escrito pelo pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor Nuno Ramos, com dramaturgia de Antonio Hildebrando, a peça, com direção de Nando Motta, usa diversas linguagens cênicas, como o teatro, dança-teatro, instalação, vídeo mapping e cinema para contar a trajetória do personagem durante o período em que a esposa esteve doente, com severa depressão.
A peça já foi vista por mais de 120 mil pessoas e passou por diversos festivais e cidades no Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Sorocaba, Piracicaba, Itabira, São José dos Campos entre tantas outras. Para saber mais sobre o processo de criação do espetáculo, o editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com o diretor Nando Motta.
Nando, antes de tudo, gostaria que fizesse uma breve apresentação do Coletivo Binário para quem ainda não o conhece.
Somos um grupo de criação nascido da vontade de buscar um ambiente profícuo para a produção colaborativa e experimental nas artes cênicas. Através de uma ideia comum, o grupo se coloca em diálogo para que artistas de outras linguagens se aproximem e trabalhem com um objetivo único: criar. Um lugar em que “junto e misturado” seja um valor e uma premissa, não uma barreira. Um encontro de vários desejos e vozes criadoras trafegando livremente e passando a ser uma só.
Fruto dessa inquietação desenvolvemos há 13 anos uma pesquisa sobre “linguagens em trânsito no criar e fazer teatral” que resultou nos espetáculos “Rodolfo e a Crise”, “180 Dias de Inverno”, “Do Lado Direito do Hemisfério”, “O que fazer com o resto das árvores?” e “O Clube”. Estes trabalhos já foram agraciados com mais de 10 prêmios e 20 indicações, tendo se apresentado em 18 festivais e 42 cidades do Brasil, para um público de mais de 300.000 pessoas. Se você quiser conhecer um pouco mais da nossa trajetória te convidamos a dar uma passeada pelo nosso site
A trajetória do Coletivo aparece bastante marcada pela conexão entre diversas linguagens voltadas para o fazer teatral. Como foi esse encontro?
Acho que essa mistura de linguagens vem muito de encontro a forma com que encaramos nossa identidade, como pessoas e como artistas. Temos em média entre 30 e 45 anos de idade, e isso faz com que tenhamos crescido com muitas das revoluções estéticas e tecnológicas das últimas décadas. Somos uma junção despreocupada de clássico, pop, experimental e futurista. Gostamos e somos influenciados por Chagall, os Gêmeos do grafite, os pixos nas paredes das capitais do Brasil, as instalações Olafur, o cinema da Filme de Plástico. Criamos ouvindo Bach, Barulhista, Caetano, Zeca Pagodinho, Yan Tiersen, Gorgorote, etc.
Somos frutos da chegada da internet e seus bate papos do UOL, como as grandes mudanças estéticas e de linguagem do Youtube, WhastApp, Instagram e Tik Tok. Nossas referências visuais são Feline, Lars Von Trier, Win Wenders, Vingadores, Pica pau, Tom e Jerry, Cavaleiro do Zodiaco e Padrinhos Mágicos. Escrevemos inspirados por Borges, Artaud, Nuno Ramos, Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus, Virgínia Wolf, autores de novelas da Globo (são muitos, rs), autores de séries dos streamings (não sabemos os nomes deles, mas as obras a gente sempre lembra e usa muito como referência, rs). Comemos pão de queijo com coca cola lembrando de nossas infâncias e fazendo planos para o futuro.
Somos esta mistureba, que se choca e se organiza, de alguma forma, dentro de nossos corpos. E cada novo companheiro(a) de criação que chega para um novo trabalho, traz consigo suas referências e desejos. Então, novos choques acontecem e novas resultantes surgem. Somos o que resulta dessa união. Ou o que nasce desse caos. Sem se preocupar se vai dar certo, sem buscar coerência ou aonde vamos nos enquadrar. E somos pessoas apaixonadas por teatro. É o lugar onde melhor nos expressamos e somos felizes. Então, nada mais natural que esta mistura também vá para a cena. Somos esse caos organizado de referências, desejos e sonhos.
Para criação do espetáculo 180 dias de inverno, vocês lançam mão de uma diversidade de linguagens (teatro, dança-teatro, instalação, cinema, video mapping etc.) para contar uma história muito íntima e afetiva. Como foi o processo para encontrar o equilíbrio entre as técnicas e tecnologias e as temáticas que queriam abordar?
Quando conheci o texto “Minha Fantasma” do Nuno Ramos, que é a origem do espetáculo, eu fiquei muito mexido. A sensação era que de alguma forma este texto contava um pouco do que eu estava sentido na minha vida naquele momento. E como me expresso melhor no teatro, eu sabia que precisa montá-lo. Fiquei um ano, lendo e anotando todas a ideias e desejos que o texto me suciava, e quando consegui um aporte financeiro para montá-la, eu estava fervilhando de criatividade e tinha a peça bem desenhada na minha cabeça.
Aí, convidei todos os profissionais que poderiam tornar minhas ideias realidade e fui para sala de ensaio. CAOS. Sim, um verdadeiro caos se instaurou. 180 Dias de Inverno, era minha primeira direção fora da academia (eu me formei em atuação na UFMG, mas tive algumas oportunidades de dirigir experimentos). Eu não sabia muito bem como gerir uma equipe, nem uma sala de ensaio, nem os desejos e dúvidas que a equipe tinha, mas sabia o que eu queria. E como ninguém nunca me disse que não era assim era feito, e nem que não poderia misturar tudo que gostava num único espetáculo, eu fiz isso.
E desse caos criativos, emergiu uma ordem criativa. Um trânsito de linguagens, que se tornou a base de toda minha pesquisa nestes últimos 15 anos. O segredo está em saber como chocar as linguagens, saber por que as combinar, mas não saber o como. Deixar bem claro o que você quer como resultado e dar espaço para que os outros artistas venham com todas as influências deles. É respeitar a autoria de cada um, seguindo um objetivo claro para todos. E experimentar, experimentar, experimentar. Depois jogar fora, desapegar, limpar, deixar o simples, o extremamente necessário, sem nunca perder a beleza e sempre buscando o impacto da primeira vez. E nunca subjugar a inteligência do expectador, porque ele precisa estar conosco, trabalhar conosco a cada noite para formatar o espetáculo.
É preciso deixar o espetáculo poroso, com espaço para a individualidade e interpretações de cada um, de cada artistas, de cada pessoa no público. E não dar mais importância, do que cada elemento merecer: nem texto, nem som, nem cenário, nem luz, nem ator, nem direção, etc. Fazer tudo em função da cena, do que queremos dizer, e de como podemos isso de forma mais simples, direto e bonita. Ou seja, deixar o caos emergir sem controle, para depois enxergar a ordem que surge dele e potencializar os detalhes. Porque pra mim, o teatro é feito de detalhes e encontros. E foi nisso que baseei para montar 180 Dias de Inverno, um caos simples, recheado de detalhes, intimidade, violência e encontros.
O espetáculo estreou em 2010 e, desde então, vem circulando em diversos espaços, recebendo prêmios etc.. Nesses 14 anos, vários campos da nossa sociedade avançaram nos aspectos políticos, sociais, tecnológicos, culturais etc.. Desde essa estreia, como o seu olhar sobre as temáticas e como as tecnologias de que se utiliza vêm transformando o espetáculo?
Envelhecer com uma peça é um privilégio e uma dádiva. Você, a peça e todas as pessoas que fazem parte do trabalgo amadurecem com o tempo. O texto fica, mas as intenções, a encenação e os significados mudam. Não tem como ficar igual vendo o país sair da esperança que nos invadiu quando o Lula foi eleito, ao caos/ódio da polarização e do Bolsonarismo. Não tem como não mudar seu olhar para o mundo depois de uma pandemia que nos fez ter medo da morte e um desejo imenso de estar vivo. Não tem como ficar igual quando passamos a discutir e conquistar direitos sobre nossa identidade de gênero, sexualidade, novas formas de se relacionar, e possiblidade de não se classificar.
E agora com as inteligências artificiais, que nos fazem conviver com medo de um futuro fora do nosso controle, junto com uma curiosidade imensa de saber como ele será. Que aliás, foi a mesma coisa quando surgiu a internet, as redes sociais, etc. Ver o mundo se repetir de forma diferente (sei que esta frase é contraditória, mas na minha cabeça faz muito sentido, rs). Da peça que estreou 2010, que já foi realizada mais de 300 vezes, sobrou apenas o mesmo texto, a estrutura e o desejo imenso de apresentá-la, o resto todo mudou e vendo mudando a cada nova cidade, a cada nova apresentação a cada nova plateia. E isso que nos motiva, saber que ainda temos o que dizer com esta peça e que ela ainda está se transformando, junto com o mundo.
Além do espetáculo, vocês vêm realizando a oficina Cena Digital que aborda a relação do teatro com recursos digitais. Como esses processos formativos vêm colaborando com os próprios fazeres e poéticas de vocês?
Nossas oficinas são na verdade é uma microrreprodução de nossa sala de ensaio. É a centelha do caos/trânsito de linguagens que instauramos quando estarmos criando nossas peças, e que convidados que faz nossa oficina a viver conosco. É sempre uma oportunidade de troca, de ouvir e de falar. Nunca é igual. Sempre trazemos os elementos que estamos trabalhando para experimentar com outras pessoas e ouvir o que elas têm a dizer.
A oportunidade de ver outros corpos trafegando em nossas ideias e desejos. É uma oficina/laboratório, e isso ajuda muito quando vamos para um novo trabalho, porque já testamos algumas propostas e podemos ver como outros artistas as recebem. E para quem participa, parece que é muito bom também, rs. Porque vários deles nos mandam mensagens de como a oficina os ajudou a iniciar projetos, mudar trabalhos, etc..