#05 Arte e Mercado | A mercantilização da produção artística e a liberdade de expressão
Imagem – ‘Take Shape’ – Ballet Memphis e Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Vinicius Mizumoto Mega
Mestre em Ciências da Comunicação (ECA/ USP)
O fechamento da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no dia 10 de setembro de 2017, pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, causou indignação no meio artístico que defendeu que o banco censurou a mostra de arte. A exposição foi acusada de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia por integrantes do MBL (Movimento Brasil Livre). O MBL defende a moral e a defesa da família tradicional.
Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, possui 270 trabalhos de 85 artistas que tratavam da temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual. As obras são assinadas por grandes nomes como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson e Yuri Firmesa.
Não resta dúvida de que a proibição ao Queermuseu tenha sido um ato de censura de mercado e foi realizada com apoio de setores conservadores da sociedade brasileira de forma violenta e autoritária, pois não existiu nenhuma forma de diálogo do banco com a sociedade e, muito menos, com os artistas envolvidos. Além disso, o fechamento da exposição antes da data prevista interferiu na comunicação e partilha do simbólico e do sensível, pois parte da população brasileira não teve contato com as obras de arte da exposição Queermuseu.
A certeza da prática da censura à liberdade de expressão e criação artística pelo Santander pode ser encontrada, inclusive, na decisão do Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF/RS) que recomendou ao banco a reabertura da exposição Queermuseu – Cartografias da diferença da arte brasileira e comparou o ato autoritário da instituição privada à destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista.[1]
No entanto, cabem algumas considerações a respeito da posição política-ideológica do Santander em relação à mostra de arte aqui em discussão. A exposição contou com apoio da Lei Rouanet no valor de 800 mil reais e, portanto, recursos públicos foram selecionados pelo Santander para a exposição Queermuseu com o objetivo de contemplar uma arte que busque respeitar a diversidade sexual da sociedade brasileira e seu investimento financeiro foi cancelado depois que acionistas conservadores do banco ameaçaram cancelar suas contas e assim diminuir o lucro do banco.
O patrocínio à produção artística por meio de recursos públicos de isenção fiscal da Lei Rouanet é utilizado pelas empresas públicas ou privadas como uma forma de marketing institucional com o objetivo de aumentar sua viabilidade midiática, agregar valor positivo à marca e aumentar suas vendas por meio de relações promocionais de fidelidade com seus clientes. Produções simbólicas com temas polêmicos e tabus como o uso de drogas, armamento e pornografia agregam valor negativo à imagem da empresa e provocam a fuga de acionistas e, portanto, nesse contexto de mercado dos bens simbólicos, essa forma de arte não é viável economicamente.
A Lei Rouanet não foi a primeira lei de incentivo à cultura no Brasil. Olivieri (2002) explica que Lei n.º 7.505, de 02 de julho de 1986, popularmente conhecida como Lei Sarney, tinha como objetivo disponibilizar mais recursos para custeio das produções culturais, permitindo que a própria iniciativa privada realizasse a escolha da atividade cultural que seria patrocinada. Ela proporcionava a concessão de benefícios fiscais federais para as empresas que investissem em cultura, em uma modalidade que foi denominada mecenato.
Fernando Collor de Melo e seu secretário de cultura, Ipojuca Pontes, extinguiram a Lei Sarney de maneira autoritária e sem planejamento. Em dezembro de 1990 foi aprovada a Lei Mendonça, em São Paulo, possibilitando dedução parcial do Imposto Sobre Serviços (ISS) e no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) às pessoas físicas ou jurídicas que patrocinassem projetos culturais:
A partir daí, outros municípios brasileiros replicaram o instrumento. Posteriormente, Acre, Mato Grosso, Paraíba e Rio de Janeiro criaram leis com dedução no ICMS, estabelecendo um modelo adotado depois por outros Estados (SARKOVAS, 2011, p.50)
Nesse contexto neoliberal, o Estado transfere à iniciativa privada a viabilização da produção artística que passa a ser avaliada segundo a sua potencialidade de se transformar em mercadoria e conquistar novos consumidores com o objetivo de gerar lucro para as empresas. No entanto, a lógica do capital repele produções experimentais e comunitárias que não possuem a capacidade de seduzir grandes públicos e, muito menos, de proporcionar visibilidade midiática às marcas patrocinadoras.
Na minha dissertação Lei Rouanet: a visibilidade do produto cultural como critério de patrocínio à produção artística, demonstro que não foi a primeira vez que uma empresa agiu de forma autoritária por meio do cancelamento de exposições de arte e que, no contexto neoliberal da mercantilização da arte e das leis de incentivos à cultura, a arte experimental, comunitária, crítica, reflexiva e as produções simbólicas vinculadas ao uso de drogas, armamento e pornografia são marginalizadas, menosprezadas e silenciadas pelo mercado.
Heloisa Buarque de Holanda explica que teve um projeto, do fotógrafo brasileiro Alair Gomes, que já tinha exposto seu trabalho na França e que ao ir à busca de patrocínio, “disseram-me que ele não era bom para a imagem da empresa porque gostava muito de fotografar rapazes na praia” (HOLANDA, 2011, p.36). Holanda também organizou um guia gay chamado Rio Diferente, pois o Rio de Janeiro foi eleito a cidade do “paraíso gay”. O projeto foi apresentado a Johnson & Johnson, mas não conseguiu patrocínio porque o guia mencionava até mesmo camisinha e AIDS: “Não consegui patrocínio, pois a temática era homossexual” (HOLANDA, 2011, p.36).
Outro caso de restrição à livre expressão da atividade artística aconteceu com a proibição à obra de arte e à exposição da artista brasileira Márcia X (1959-2005). O episódio ocorreu em 19 de abril de 2006, quando o trabalho Desenhando em Terços (o qual mostra dois pênis cruzados feitos com rosários religiosos) foi retirado da exposição Erótica – Os sentidos na arte pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro. Além disso, a mostra, que passou por São Paulo e pelo Rio de Janeiro, foi cancelada em Brasília pela diretoria do CCBB (CARVALHO, 2006).
A exposição teve curadoria do professor livre-docente do Departamento de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo, Tadeu Chiarelli. Erótica foi patrocinada pela Aliança do Brasil, uma empresa coligada do Banco do Brasil na área de seguridade. Teve co-patrocínio do Centro Cultural Banco do Brasil. A decisão do Centro Cultural Banco do Brasil de proibir a exposição da obra de Márcia X ocorreu depois de várias reclamações por e-mail e telefonemas, além da apresentação em juízo de uma notícia-crime contra a organização da mostra. O autor da denúncia, Carlos Dias, ex-deputado, empresário e membro atuante da Renovação Carismática Católica, alegou que a obra constituía uma agressão à religião católica por misturar erotismo e símbolos cristãos (OLIVEIRA, 2011).
O repúdio a “Desenhando em Terços” recebeu adesão do movimento católico conservador Opus Christi que moveu ação no Ministério Público Federal. No entanto, a instituição declarou não ter havido delito. O Prior do Apostolado Opus Cristi, João Carlos Rocha, incentivou boicote ao Banco do Brasil e orientou seus seguidores a cancelarem suas contas na instituição. Também solicitou que fosse retirada da mostra a obra de Alfredo Nicolaiewski, na qual uma figura de São Jorge está ao lado de um homem seminu (FRAGOAZ, 2013).
A dominação simbólica pela elite política, social e cultural brasileira é realizada através da imposição de uma visão de mundo mais alinhada aos seus interesses. Deste modo, os critérios de apreciação artística como belo, feio, requintado, grosseiro, leve ou pesado e vulgar e pornográfico estão relacionados à posição social do indivíduo, ao público-alvo almejado pelas marcas patrocinadoras, ao desejo, aos interesses e às críticas dos clientes. Isso conduz ao custo-benefício que envolve aspectos como riscos de processos jurídicos contra as empresas, cancelamento de contas e perda da fidelidade dos consumidores se produções artísticas polêmicas criticarem, ofenderem ou questionarem seus valores e suas crenças. Sendo assim, a busca pelo lucro repele a diversidade das produções artísticas divergentes às estratégias empresariais.
Rodolfo García Vázquez, diretor da companhia de teatro os Satyros, explica que as proibições instituídas pelas empresas em relação a projetos atrelados a drogas e pornografia são prescrições de valores éticos e morais que definem aquilo pode ser discutido e encenado em uma peça de teatro:
Uma vez, nós conseguimos um patrocínio por uma empresa, o nosso espetáculo tinha cinco transexuais, quatro masculinos para femininos e um feminino para masculino e tratava de temas aqui do centro de São Paulo: prostituição e tráfico de drogas. O patrocinador falou: eu apoio vocês, acho importante esse trabalho, mas eu não quero meu nome vinculado. A gente conseguiu isso, mas é óbvio que, para esse patrocinador, vai chegar um momento que esse modelo não vai interessar à empresa porque ela vai querer publicizar a sua marca e daí, para ele fazer isso, ele tem que associar a imagem da marca a algo que não irá ferir padrões morais e éticos [2]
“A ‘normalidade social` estabelece o que deve ser dito e o que deve ser calado. Para se criticar o que é Censura deve-se entender antes como uma sociedade produz sua normalidade, isto é, suas normas” (KATZ, 2011, p. 164). Sendo assim, os parâmetros de seleção de projetos culturais via isenção fiscal por instituições públicas, privadas ou semiprivadas não aceitam viabilizar produções artísticas atreladas a drogas, uso de armas e pornografia, visto que um filme, peça de teatro ou estilo musical que contenham conteúdos desviantes da “normalidade social”, associa à imagem da empresa temas polêmicos e tabus e limita o número de espectadores em contato com a marca patrocinadora.
Grandes produções norte-americanas patrocinadas por meio da Lei Rouanet, para citar algumas, são: Chicago – O musical, com R$ 3.952.000,0 (três milhões e novecentos e cinquenta e dois mil reais), O fantasma da ópera (2006), R$ 10.176.710,50 (mais que dez milhões e cento e setenta e mil reais), My Fair lady (2007), R$ 5.389.000,00 (superior a cinco milhões de reais). Cabe citar também a trupe canadense Cirque du Soleil que utilizou R$ 9.351.971,46 (nove milhões e trezentos e cinquenta e um mil reais), em 2011. Como confirmou Arlete de Lourdes Alonso, em sua pesquisa:
Ao lado da preferência por áreas tradicionais da cultura, há também e como consequência desse fato, a presença de atores, autores e produtores reconhecidos, uma vez que os patrocinadores querem ter seus nomes vinculados a artistas consagrados, em espetáculos de qualidade, em produções grandiosas. Há pouco espaço para o novo ou para projetos experimentais de orçamentos menores (ALONSO, 2002, p.85)
A preferência das empresas em patrocinar projetos culturais com atores e autores famosos em produções grandiosas provoca a concentração de recursos da lei Rouanet em expressões artísticas que promovem a imagem da marca patrocinadora na imprensa, deixando pouco espaço para os projetos experimentais e comunitários. Tânia Farias, integrante da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, critica a desigualdade na distribuição de recursos públicos da Lei Rouanet:
Ainda me impressiona saber o montante de verbas destinado a essas produções da Broadway. Quando eu fico sabendo, por exemplo, do caso do Cirque Du Soleil, essa coisa que virou escândalo, ou mesmo de outras megaproduções que, no meu entendimento, não tem relevância, fico revoltada. Para produções com cunho explicitamente comercial, deveriam ser direcionados apenas recursos privados. Se alguma empresa se interessa em patrocinar essas produções, deve fazê-lo com verba própria, e não com dinheiro de isenção fiscal. Como é que o seu fulano de tal, da empresa tal, pega recursos públicos, com o nosso consentimento, e vai colocar num trabalho desse tipo? Está difícil a nossa situação (AVELAR, 2008, p.106).
Piatã Stoklos Kignel, responsável pela área de iniciativas culturais do Santander, afirma que a escolha do patrocínio à produção artística via isenção fiscal da Lei Rouanet está relacionada aos objetivos das empresas em oferecer algo atrativo e sedutor aos clientes de acordo com aquilo que os concorrentes oferecem aos seus consumidores. Aimar Labaki, no documentário Ensaio aberto: fomento ao teatro, dirigido por Luiz Gustavo Cruz, explica que “privatizar o dinheiro público da cultura significa inviabilizar qualquer arte que não seja passível de se transformar em mercadoria” (CRUZ, 2012).
As escolhas de projetos culturais estão relacionadas aos seus objetivos. O patrocínio é uma ferramenta de marketing e de negócios. O banco precisa ter mais atrativos para os clientes, o Itaú está dando 50% em todo o cinema que você vai. Que atrativos que a gente pode dar para os nossos clientes? Vamos buscar coisas que a gente possa dar 50% também. A gente está precisando se fortalecer no meio do varejo, se a gente perder cliente no varejo, os outros bancos vão passar a gente, a gente vai se quebrar aqui no Brasil e vai ter que abandonar o Brasil. Então, vamos fortalecer o varejo e vamos patrocinar uma peça de teatro popular que todo mundo vai, todo mundo vai ver a nossa marca lá, vai saber que a gente existe e vai dar 50% para esses caras. O cara vai se divertir, vai lá e ver que a gente está apoiando aquilo.[3]
Em 2013, o musical Rei Leão utilizou R$ 11 milhões de recursos via isenção fiscal da Lei Rouanet, em um projeto com orçamento estimado em R$ 50 milhões. O uso de verba pública para a produção de um musical da Broadway não impediu que os custos do ingresso variassem entre R$ 50 e R$ 280. Percebemos que dos R$ 159.565.036,54 destinados aos projetos de artes cênicas em 2011, os valores das produções da Broadway (R$ 45.418.763,5) somados com o montante dos autores, atores e diretores brasileiros consagrados pela mídia (R$43.395.256,21) chegamos ao total de R$ 88.814.019,71 – ou seja, 55.66% da verba desse período. Lembramos que 5.66% dos recursos a mais da metade do valor total correspondem ao montante de R$ 9.031.381,06 e estão concentrados em produções com visibilidade midiática.
No caso das produções da Broadway, o valor de R$ 45.418.763,5 corresponde a 28.46% do total dos recursos destinados à isenção fiscal em 2011 e foi utilizado para patrocinar somente oito espetáculos (A Family Addams – O Musical, As Bruxas de Eastwick – Musical, Mamma Mia, Shrek – O Musical, New York, New York – O Musical, Disney On Ice – Disneyland Adventures, A Cor Purpura, Meu Amigo Charlie). Se dividirmos os R$ 45.418.763,5 pelas oito peças americanas, temos uma média de R$ 5.677.345 (cinco milhões seiscentos e setenta sete mil por espetáculo).
Se compararmos o valor de R$ 45.418.763,5 utilizados em oito produções da Broadway com o montante de R$43.395.256,21 investidos em 71 espetáculos de diretores e atores brasileiros consagrados pela imprensa e pelo grande público, percebemos que existe uma concentração de 45 milhões de reais em um número reduzido de peças que poderiam ter sido aplicadas em, no mínimo, 71 espetáculos diferentes. Desta forma, as empresas desvalorizam a produção artística nacional e impedem que os recursos sejam direcionados para atender a diversidade de expressões artísticas.
Percebe-se como a comédia diverte e agrada ao grande público e às empresas, visto que 16 peças desse gênero foram patrocinadas em 2011. Os espetáculos cômicos foram: Como se tornar uma super mãe judia em dez lições, Chá com limão, Adorei o que você fez, Toc Toc, Os 39 passos, Sem Pensar, Mais respeito que sou tua mãe, atreva-se, Não existe mulher difícil, Turnê Improvável, Uma assim outra assando, Como Ter Sexo A Vida Toda Com A Mesma Pessoa, Sem medida, Grávido, Eri Pinta Johnson Borda, Atrás do Pano – A comédia, AS BOTOCUDAS – Uma Tragicomédia Cirúrgica. Marcela Guttman, da empresa Fixação Marketing Cultural, explica que “tirando os musicais da Broadway, a comédia é um dos gêneros muito mais fáceis de vender e de você ter um resultado de bilheteria também”[4]
A preferência das empresas em patrocinar comédias de riso fácil deve-se ao fato de que os espetáculos cômicos criam um ambiente agradável entre os clientes, fornecedores, investidores e funcionários por meio da gargalhada e da aparência de felicidade provocadas pelas celebridades, do show business, da despolitização dos conteúdos e da ausência de crítica social, de pensamento, de fantasia e da atividade intelectual do espectador: “Fun é um banho medicinal, que a indústria do prazer prescreve incessantemente. O riso torna-se nela o meio fraudulento de lubridiar a felicidade” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p.116).
Sendo assim, a censura de mercado está relacionada aos interesses econômicos das empresas que utilizam o patrocínio a produção artística como uma ferramenta de comunicação e marketing que avalia e seleciona o projeto cultural de acordo com o custo-benefício, público- alvo da instituição, seu potencial de visibilidade midiática e de sucesso de bilheteria. Produções artísticas, inviáveis financeiramente, possuem mais dificuldade de acesso aos recursos públicos pela hegemonia de uma ideologia neoliberal, em que o lucro é o imperativo maior: “Quando falamos em hierarquia automaticamente falamos em censura. Desde o momento em que se escolhe alguma coisa, concomitantemente se excluem outras coisas” (KATZ, 2011, p.156).
O conceito censura de mercado aponta para mecanismos sistemáticos de cerceamento da liberdade de expressão que estão imersos no contexto de controle privado da produção cultural, principalmente quando o comando está concentrado nas mãos de um número reduzido de grandes corporações. Sob essas condições, algumas ideias recebem atenção e cobertura de diversos meios de comunicação enquanto que outras visões de mundo são marginalizadas e ignoradas por serem controversas e apresentarem riscos de viabilidade econômica. Em suma, a censura de mercado se relaciona a condições de produção e consumo inseridos no âmbito de uma hegemonia cultural (JANSEN, 2010, p.14)
Rodolfo García Vázquez lembra que uma vez conseguiu um patrocínio por uma empresa que se ofendeu com a cena do estupro abordada pela peça de teatro, pois o assunto polêmico poderia constranger seus clientes e funcionários:
Uma vez nós montamos um espetáculo baseado em Vale-Inclán e que tinha uma cena de estupro e nós conseguimos um apoio muito pequeno de uma empresa pela Lei Rouanet e o espetáculo foi bem sucedido, teve uma boa carreira, as pessoas gostaram e tudo e a gerente de marketing foi assistir à peça e ela falou uma coisa interessante: vocês me deixaram em uma situação altamente constrangedora porque eu não posso dar ingressos para os meus funcionários assistirem a esse espetáculo, porque alguém pode se sentir muito ofendido com a cena de estupro e eu disse para ela: mas isso faz parte da vida, existem milhares de obras teatrais e literárias que trabalham com a questão do estupro. E ela disse: mas para nós a questão não é qualidade artística do que vocês fizeram, mas como os nossos funcionários e os nossos clientes vão receber isso. Ou seja, a crítica não é explicita, mas é velada. É como se, dentro daquela empresa, existissem milhares de censores do regime militar vivendo ali e, a partir do momento que um deles protestar contra alguma coisa, isso vai incomodar a imagem da empresa, aquilo que ela quer [5]
Percebe-se que tanto a censura de mercado realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil à exposição da artista brasileira Márcia X (1959-2005) quanto o fechamento da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foram realizadas com o apoio de grupos conservadores da sociedade brasileira que defendem valores vinculados à família tradicional e à moral católica. No entanto, o critério norteador das empresas para proibir qualquer forma de produção artística desviante da normalidade social não está somente relacionado aos valores políticos-ideológicos das empresas, mas ao risco de viabilidade econômica de investimento financeiro em produções simbólicas que possam trazer risco de diminuição do lucro das empresas por meio de processos jurídicos contra as instituições públicas ou privadas, cancelamento de contas e perda da fidelidade dos consumidores se produções artísticas polêmicas criticarem, ofenderem ou questionarem seus valores e suas crenças.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor W, HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ALONSO, Arlete de Lourdes. Marketing Cultural: um estudo sobre a produção cultural a partir das leis de incentivo em uma sociedade de mercado. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
AVELAR, Romulo. O Avesso da cena: notas sobre produção e gestão cultural. Belo Horizonte: Duo Editorial, 2008.
CARVALHO, Mario Cesar. “BB Cancela a exposição ‘Erótica’ em Brasília”. Folha de São Paulo. São Paulo, 3 maio. 2006. Cotidiano. Acesso em 29 set. 2013.
CRUZ, Luiz Gustavo. Ensaio aberto: fomento ao teatro. Acesso em: 05 mai. 2015
FRAGOAZ, Eduardo. A moeda da arte: a dinâmica dos campos artísticos e econômicos no patrocínio. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.
HOLANDA, Heloisa Buarque. Entrevistas. In: Lei Rouanet: Percursos e Relatos, São Paulo, p. 36-39, 2011. Acesso em 20 out. 2014.
JANSEN, Sue Curry. Ambiguities and imperatives of market censorship: a brief history of a concept. Westminster Publications in Culture and Communication. N. 7, v. 2. 2010, p. 12-30.
KATZ, Chaim Samuel. Entender a censura é compreender como a sociedade produz sua normalidade. In: Pensamento comunicacional uspiano: ideias que abalaram os alicerces da ECA-USP. São Paulo: ECA-USP, SOCICOM, 2011.
OLIVEIRA, Paola Lins. “‘Desenhando com terços’ no espaço público: relações entre religião e arte a partir de uma controvérsia”. Ciências sociales y religión (Ciências sociais e religião). v.14, 2011, pp. 145-175.
SARKOVAS, Yacoff. O incentivo fiscal à cultura no Brasil. In: Lei Rouanet: Percursos e Relatos. São Paulo: Atitude Brasil, 2011.
Notas de Rodapé
[1] Disponível em:< http://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/mpf-rs-recomenda-imediata-reabertura-da-exposicao-201cqueermuseu201d-em-porto-alegre/>. Acesso em: 27 março. 2017.
[2] Entrevista concedida por VÁSQUEZ, Rodolfo García [fev.2015]. Entrevistador: Vinícius Mizumoto Mega. São Paulo, 21 fev. 2015.
[3] Entrevista concedida por KIGNEL, Piatã Stoklos. [out.2014]. Entrevistador: Vinícius Mizumoto Mega. São Paulo, 31.out. 2014.
[4] Entrevista concedida por GUTTMANN, Marcela. [fev.2015]. Entrevistador: Vinícius Mizumoto Mega. São Paulo, 09 mai. 2015.
[5] Entrevista concedida por VÁSQUEZ, Rodolfo García [fev.2015]. Entrevistador: Vinícius Mizumoto Mega. São Paulo, 21 fev. 2015.