#04 Bits e Palcos | O Ator Imaginário [e os Imaginários do Ator]

Imagens – Tookapic/Andora Abuhab| Arte – Rodrigo Sarmento
Nosso dossiê Bits & Palcos ganha a experiência e generosidade de Christian Duurvoort, preparador de elenco que traz a oficina O Ator Imaginário para Recife em novembro, baseada num método resultante de sua trajetória de 35 anos em teatro e cinema.
Preparador de elenco, ator e diretor autodidata, Duurvoort fez teatro experimental, estudou circo e mímica, com passagem pela École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, em Paris, e por projetos em cinema e televisão, como 3%, Ensaio sobre a Cegueira, Cidade de Deus, Xingu, Entre nós, entre outros.
A partir do nosso interesse, nesse dossiê, em tratar das relações entre cena e tecnologia, nosso editor-chefe, Márcio Andrade, bateu um papo com Duurvoort sobre seus métodos para expansão da percepção e fortalecimento da presença em cena tanto no teatro como no cinema e a criação de estímulos para uma atuação rica em imagens.
Você passou pela École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, que nos remete a conceitos como teatro físico, mimo e máscara neutra. Como você aplica essas metodologias de preparação do trabalho do ator no cinema?
No meu método, eu trabalho tudo o que precede a fala. Isso foi basicamente o que aprendi na escola do Lecoq e que continua sendo uma fonte de inspiração. O seu método me tornou mais consciente do poder das imagens que crio com meu corpo e como eu os crio. Na prática, eu uso a técnica que criei para desenvolver no ator a consciência das imagens que produz, da força da sua presença, da sua relação com os espaços internos e externos.
Como você percebe essa construção da atuação voltada para a linguagem cinematográfica ‘precisar’ ser considerada mais ‘realista’ ou ‘naturalista’ do que a teatral, por exemplo?
No cinema, o corpo do ator é um elemento de uma linguagem que se sustenta na fotografia, enquanto o teatro é uma linguagem que se sustenta no corpo do ator. O que mudou foi a técnica de captação de imagens, que permitiu uma maior resolução das imagens que pode revelar movimentos sutis. A linguagem visual evoluiu e a técnica do ator teve que se adaptar a isso. O ator teve que aprender a lidar com a proximidade de um olhar cada vez mais intimista e exigente. No cinema, o ator não precisa impostar sua voz ou projetar suas ações para serem percebidas na última fileira do teatro. Ele precisa ter habilidade para interagir com o espaço ao redor, técnica suficiente para saber dosar a sua força e conseguir trabalhar com tempos mais curtos construindo paisagens humanas mais complexas. O cinema é arte da psicologia, da sugestão, da síntese pela imagem. O cinema lembra um sonho, desperta no espectador imagens. Já o teatro é a poesia do espaço, a transgressão da construção física do espaço onde o espetáculo acontece. Eu não uso os termos realista ou naturalista, pode ser que se deseje que as imagens causem essa impressão, que alguém que assista a obra se sinta como estando lá e que não existam câmeras ou atores, que aquilo tenha a mesma textura da natureza, da realidade ou do sonho.
Você fala sobre pensar o ator como alguém que cria imagens a partir das ações. Em um contexto em que se vê certo excesso das (e nas) imagens, como você estimula os atores a criarem imagens que os (e nos) afetam?
Basicamente apontando para estas propostas mais ousadas, fazendo-o acreditar no seu potencial criador, sair das soluções prontas e, sobretudo, desenvolvendo uma técnica que facilite o fluxo de movimentos pelo seu corpo, permitindo mais domínio sobre seus recursos expressivos. Para mim, é conseguir alinhar o pensamento, a ação e a emoção, permitindo que o ator tenha mais confiança no material visual que produz. O excesso de imagens nos tornaram mais exigentes com relação às imagens e mais resilientes a aquilo que foge do conhecido. Acredito que a busca de novidade não satisfaz. Existem câmeras que conseguem fazer milhares de frames por segundo. Mas será que a nossa capacidade de observar, absorver e processar essas imagens evoluíram tanto quanto a tecnologia? São tantos pontos de vista sobre o mesmo assunto e me pergunto se elas ainda conseguem nos sensibilizar e nos mobilizar. A questão central é conseguir produzir imagens que possam acessar o meu imaginário pessoal. Esse lugar onde uma mistura de formas, cores, sensações, odores e sons são armazenados de maneira bem caótica.
Como você acredita que a presença de dispositivos na cena (projeções, streaming, realidade aumentada etc.) podem convocar outros modos de preparação do ator que ainda não conhecemos (ou não sabemos como nomear ainda)?
A tecnologia pode ser uma opção criativa para a construção de imagens, trazendo mais possibilidades de interação, de percepção e de poética. A questão que me chama a atenção é o conteúdo que ali está sendo apresentado. A meu ver, o trabalho técnico do ator não deveria se limitar a uma linguagem ou plataforma de difusão. O trabalho técnico deve dar ao ator a possibilidade de saber compreender as limitações e as necessidades de cada plataforma, linguagem ou gênero. Acredito que a formação atual do ator, digo nas escolas e academias, ainda não se atualizaram. Elas continuam se apoiando em pesquisas e em métodos de um século atrás. O meu método de preparação está constantemente em diálogo com a obra que se quer produzir, seja cinema, televisão, teatro, performance… Para mim, o corpo do ator é uma Paisagem e suas ações, o Tempo. O seu corpo é o veículo de uma experiência sensorial que potencializa a imagem.