#08 Memória, Arquivo e História | Tecendo Corpos Históricos e Dramaturgias da Memória
Foto – Arquivo Festival Marco Zero | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Eu sempre tive essa posição: como a história da dança pode trazer informações ao artista em formação sobre o contexto político, social e artístico que vão ajudar a pensar diferentes formas de criação’. Pensando nos regimes de visibilidade que atravessam a(s) história(s) da(s) dança(s), nosso dossiê Memória, Arquivo e História inicia com a artista e pesquisadora Flávia Meireles (UFRJ), entrevistada por nosso editor-chefe, Márcio Andrade, e pensando o arquivo como gatilho para refletir o presente.
Interessada nas relações entre arte e política, Flávia Meireles é Doutoranda em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ), Mestra em Artes Visuais (EBA/UFRJ) e Licenciada em Dança (Faculdade Angel Vianna). Como pesquisadora, coordena o grupo de pesquisa Temas da Dança, voltado para arquivos e histórias das danças, e, como professora, vem ministrando a oficina Dramaturgia em Dança em diversas cidades. Como artista, participou de residências no Le Vivat: Scène conventionné d’Armentières e no Centre d’exchange des Récollets, ambos na França, recebeu o prêmio ZKB Patronage Prize 2010 do Festival Theatrespektakel Zurich (2010) pela performance Em redor do buraco tudo é beira e trabalhou com os coreógrafos Paulo Caldas, João Saldanha, Gustavo Ciríaco etc..
Flavia, como começou a tua relação com a história e com a dança (e, por consequência, com a história da dança)?
Eu me nomeio como uma artista curiosa – e não como historiadora. Eu falo de fora da história enquanto disciplina acadêmica: eu leio a história, mas me posiciono fora dela. Quando eu dou cursos de história da dança, nas minhas primeiras aulas, falo dessa relação que pode ser esquizofrênica entre história e dança: de como podemos aproximar esses dois campos do saber por muitas vezes contraditórios: a história como modo de fixar e a dança como arte efêmera.
Meu primeiro contato com a história da dança veio quando eu dançava numa companhia do Rio de Janeiro, chamada Staccato Dança Contemporânea, dirigida por Paulo Caldas. A partir de aulas de história da dança com professores que conheci nessa companhia, me interesso em saber mais do contexto histórico, social e político em que as danças são feitas e como suas reverberações hoje nos ajudam a nos situar como artistas.
O interesse com a história da dança sempre foi para a criação: como eu poderia traçar correspondências com as pesquisas de artistas que me precederam (como, por exemplo, Isadora Duncan) nas minhas produções. E as contradições que envolvem esse exercício terminaram emergindo quando precisei ministrar uma disciplina na graduação chamada História da Dança, porque a gente sabe que não existe somente uma história e uma dança, mas que são histórias e danças: não é universo, é multiverso. Então, eu sempre tive essa posição: como a história da dança pode trazer informações ao artista em formação sobre o contexto político, social e artístico que vão ajudar a pensar diferentes formas de criação.
Pensando nisso, em 2011, minha parceira Mariana Patrício e eu criamos o Temas de Dança, um projeto de pesquisa independente que burla essa relação com a academia, funcionando mais como grupo de estudo. Lá, a gente desenvolve diversos projetos como, por exemplo, uma pesquisa em que pensamos conceitos como ‘corpo’ a partir de contextos políticos – no caso de um deles, as manifestações de 2013. Então, a gente desenvolve ‘reflexões-produções’, ações que conectam corpo e pensamento, corpo-político e corpo-cidade.
Então, o Temas de Dança apresenta diferentes formatos: oficinas, seminários, ensaios visuais etc., extravasando os próprios limites do que a gente chama de dança. Em 2015, por exemplo, a gente trabalhou a relação corpo-cidade em dois projetos: um, em Madureira, na casa do Jongo; e o outro, na Aldeia Maracanã, uma aldeia indígena urbana no bairro do Maracanã.
No projeto Ação Vizinhas, você reúne grupos de investigação de história da dança como Acervo Mariposa (SP), Acervo RecorDança (PE), Temas de Dança (RJ) e Cartografia de Ficções (SP). Como vocês procuram articular esses diversos modos de criar as historiografias da dança no Brasil?
O projeto Ação Vizinhas surgiu a partir de um convite do Acervo Recordança para participar de um seminário em Recife no ano de 2014, comemorando 10 anos do Recordança. Ali, a gente começou a perceber que as diferenças dos nossos projetos eram muito interessantes, mais do que as nossas semelhanças.
Temos jeitos bastante específicos de construir história e a gente se interessa em manter essas especificidades ao reunir esses projetos dentro do Ação Vizinhas, que termina se tornando mais uma constelação, uma manada, uma matilha de projetos que se interessam por história, memória, acervo sobre dança. O Temas de Dança, por exemplo, nunca trabalhou com acervo, mas tem uma relação muito próxima com o audiovisual e sempre deixou registros dos nossos trabalhos, diferente do Acervo Recordança, que trabalha mesmo com arquivos; já o Acervo Mariposa, se interessa mais pela curadoria a partir do acervo que a equipe reuniu.
Cada uma dessas especificidades olha de forma peculiar (quase perspectivista mesmo) para algumas questões. Trata-se de pensar como responder às questões em torno de arquivo/acervo/memória a sua própria maneira, na sua cidade, no seu contexto etc. Acho que a potência do Ação Vizinhas, da forma que percebo, está em trabalhar nessa rede: como se fortalecer como rede e como grupos em cada espaço.
A gente está se descobrindo à medida que está realizando o projeto, na verdade. Termina sendo um processo muito próximo dos procedimentos artísticos, em que você vai descobrindo ao longo do tempo. Tem esse interesse de aproximar metodologias e modos de fazer artísticos para uma discussão teórica, uma discussão política, ou para uma discussão histórica. E acho que estará em constante reformulação para a entrada e saída de parceiros, funciona como uma zona autônoma temporária.
Além de pesquisadora, você também é artista. Do ponto de vista das tuas criações, como tu acredita que seja possível pensar as danças como formas de pensar a História?
História não se trata de um bloco fechado, mas sempre narrativas em discussão e disputa, que se potencializam com a cultura digital, de arquivos que crescem e um sem número de novas informações, em que os jogos de interesse parecem se fazer mais claros e ligados à forma como contamos as coisas.
Então, esses modos de contar atravessam as relações entre corpo e escrita: quais inscrições do corpo aparecem na escrita e quais esferas da escrita emergem no próprio corpo? Não se trata de uma relação homogênea, linear, mas se mostra cheia de buracos e intervalos. Por exemplo, como podemos escrever a experiência das manifestações de 2013? Que corpos vivem e escrevem essa experiência? O que eles conseguem falar deles mesmos?
Essas são questões que vão ser endereçadas tanto no trabalho artístico, quanto no trabalho teórico: são matérias para esses dois lugares, só que esses dois lugares vão se condensar de um jeito diferente. A linguagem e o texto vão poder dizer e materializar determinadas conexões e o corpo, a dança, a performance vão nos dar outras dimensões dessa questão, mas tem algo que os conecta.
Em 2017, você esteve em Recife com um curso de Dramaturgia da Dança e isso nos fez pensar em relações possíveis entre esse curso e teus interesses em história da dança. O que você costuma abordar no curso e como tuas relações com as histórias das danças aparecem?
A dramaturgia estava sempre dentro dos meus interesses, mas não era algo que eu pegasse de frente. Então, foi um desafio para mim, eu sempre me vejo assim: ou que eu me coloco ou as pessoas me colocam num lugar que eu não sei como vou fazer aquilo, mas eu vou experimentando.
Para mim, desenvolver esse curso foi partir da noção básica de drama como texto e de como a dramaturgia contemporânea esgarça esse texto e o pensa como textura, tessitura, bordado e, portanto, como ação. Assim, a relação com a História termina não sendo tão direta, mas atravessa esses processos de uma forma invisível, pensando mais a história desse corpo e como a gente o produz. O corpo não tem sentido dado, mas a gente o produz enquanto age.
Pensando no movimento da história desse corpo com tudo aquilo que não está inscrito nessa memória física (o que eu chamo de política), acredito que um dos meus interesses seja descobrir aquilo que emerge desse confronto entre essas dramaturgias que atravessam o corpo. Da relação entre essas materialidades (ideias, pensamentos, corpos ou objetos) podem ir se construindo uma série de dramaturgias possíveis que interpelam o corpo e os textos.
Você também tem relação com projetos de crítica e curadoria em dança. A partir disso, a gente queria saber como você percebe essas duas atividades como gestos de escrita da história da dança, a partir da visibilização de determinados contextos temáticos e estéticos.
Eu penso crítica, talvez, como a matemática pensa o ponto crítico: um ponto de inflexão do pensamento, onde algo vai te roubar, e provocar um problema em você. Acho que a minha maneira de crítica termina caminhando mais nesse sentido: o que é que faz problema? Assim que tem sido minha colaboração no Labcrítica – Laboratório de Crítica da UFRJ, em que Sérgio [Andrade, coordenador do projeto] faz mais por esse trabalho ligado à crítica de espetáculo em si e me interessa mais nas formas de elaborar perguntas às obras.
Na curadoria, fiz algumas mesas de debate e participei do Festival de Dança em Paisagens Urbanas Marco Zero em Brasília no ano passado. Foi um exercício muito interessante, justamente para pensar como se constroem esses regimes de visibilidade: o que seria considerado legível e legitimado, a partir do momento que nos fazemos ‘curandeiros’ de qualquer situação.
Meu olhar tem procurado mais refletir sobre essas relações entre arte e política: ONDE/QUANDO/COMO existem as obras que chamamos arte? Quando me pergunto sobre essas coisas, me faz pensar em modos de mobilizar outros circuitos menos visíveis, pensando bastante sobre as questões esses regimes de visibilidade.
Pensando nisso, uma das coisas com que eu tive mais prazer na minha vida artística foi uma entrevista que fizemos, pelo Temas da Dança, com MC Carol em 2015. A partir dessa entrevista, ela contou que ela era muito boa em História na época do colégio, mas era muito questionadora. Um dia, ela questionou a professora de história, teimando que quem tinha descoberto o Brasil não tinha sido Cabral.
Assim que ouvimos isso, a gente encomendou para ela uma música, Não foi Cabral, que ela gravou em menos de seis horas e entrou na cultura urbana. Eu nunca tinha pensado uma proposta que tivesse tido uma repercussão tão grande! Então, estou sempre refletindo sobre a renovação do regime de visibilidade, para não me sentir refém daquilo que abrange nossa própria visibilidade.
Acredito que esse movimento também nos ajuda a ressignificar também esses modos de circular as obras artísticas: será que essa seria a única forma de fazer? Os movimentos sociais estão jogando na nossa cara dizendo que não, né? É isso que estou interessada, aprender com esses movimentos para, justamente, criar problemas na arte.