#09 Queer | Corpo (hetero)(u)tópico do Jesus, Rainha do Céu

Imagem – Lígia Jardim
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Foi no TREMA! Festival 18 que pude conferir o tão polêmico espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, texto de Jo Clifford, direção de Natalia Mallo, com Renata Carvalho, uma atriz trans, fazendo o papel solo de um Jesus trans. A peça já tinha sido proibida, por ordem judicial, de se apresentar no SESC Jundiaí em setembro do ano passado; e em Salvador, também por ordem judicial, em outubro do mesmo ano. Um dia após eu ter apreciado o espetáculo, ele foi censurado não por ordem judicial, mas por aquele que advoga em nome da soberania carioca, o atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.
A gritaria faz eco à que sucedeu à performance da modelo e atriz transexual, Viviany Beleboni, que, na 19ª Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, em 2015, surgiu pregada numa cruz, qual a imagem que os cristãos construíram de Jesus Cristo crucificado. Mas a performance de 2015 constrói um discurso diferente do que é construído no espetáculo teatral, ainda que ambos se valham do mesmo motivo bíblico: Jesus de Nazaré. Na performance, a transexual crucificada nos remete ao grande símbolo da crucificação: por transgredir e desafiar a lei que oprimia seu povo, Cristo foi condenado e crucificado. A/o transexual, por transgredir a cisnormatividade, é diariamente crucificada/o: sofre violências de toda ordem e costuma ser assassinada/o, a ponto de o Brasil ser considerado o país que mais mata travestis e transexuais, segundo a ONG Transgender Europe (TGEu).
Se, por um obstáculo epistemológico, os fundamentalistas cristãos não conseguiram fazer uma leitura estética e política da performance de Viviany Beleboni, imaginemos o furor que está sendo para eles saber que, num espetáculo de teatro, Jesus Cristo é uma mulher trans, reportando-se a várias passagens dos evangelhos. O fundamentalismo religioso oblitera a capacidade do sujeito de ler uma metáfora de forma criativa. A metáfora bíblica só pode ser lida da forma como impõe a hermenêutica cristã ou das mais variadas formas, muitas delas estapafúrdias, que pastores despreparados pregam a cada esquina das cidades do Brasil. Para os fundamentalistas, Jesus Cristo sendo representado por uma mulher transexual ou por uma mulher cis é uma afronta desrespeitosa aos princípios cristãos, mesmo que nos evangelhos Cristo tenha pregado o amor incondicional a qualquer pessoa. Trata-se de uma aberração. Na cultura patriarcal dos fundamentalistas cristãos, a/o transexual e a mulher cis não podem ser Jesus Cristo, porque eles não as consideram pessoas.
Lançando um olhar além do obstáculo epistemológico, constatamos em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu a presença de uma mitologia transfeminista contemporânea. Quando digo mitologia, refiro-me ao conceito que Roland Barthes atribui ao mito: sistemas de símbolos que nos são transmitidos pela sociedade onde nos inserimos e que são fundadores – ou, ao menos, mantenedores – de tradições e comportamentos. São sistemas que distorcem a percepção da realidade para justificar certos comportamentos. Explico-me. Da mesma forma que na mitologia mesopotâmica Lilith teria sido a primeira mulher criada por Deus, antes mesmo de Eva – um mito que assume novos matizes políticos com as feministas na contemporaneidade –, no texto de Jo Clifford, Deus é mãe e Cristo é trans, o que aponta para novos significados da narrativa bíblica. Somente um Deus que não é fruto de uma cultura patriarcal, mas de origem matriarcal, pode compreender que, se todas e todos são seus filhos, uma transexual também o é. Tal como Jesus Cristo, as filhas e os filhos de Deus são capazes de amar e sofrem seu calvário por ousar transgredir as normas estabelecidas pelo poder soberano. Sobre esse ponto que eu gostaria de me ater um pouco mais.
A partir de Foucault, Agamben e Peter Pál Pelbart, compreendo por poder soberano as ciências, o capital, o Estado, a mídia etc. Esses poderes investem sobre nossos corpos, penetram em nossas articulações, em nossos órgãos, em nossas células, em nossas moléculas, determinando formas de pensar, de sentir, de desejar, de criar que permitam manter e multiplicar a ordem desses mesmos poderes. Esse poder sobre a vida é o que Foucault chama de biopoder. Nunca houve um investimento tão grande sobre a subjetividade e sobre a própria vida como essa modalidade de poder contemporâneo (Peter Pál Pelbart). Se, em outras épocas, o poder decidia sobre a vida e a morte dos sujeitos, no momento histórico em que estamos vivendo, ele opta pela vida – daí nossa dificuldade de compreendê-lo e de confrontá-lo. Nos pegamos numa encruzilhada: onde está o poder e onde nos encontramos? O que ele nos dita e o que queremos dele? O que identificamos como desejo não terá já sido capturado pelo poder?
Tendo em vista esse impasse, Agamben, ancorado em Walter Benjamin, aponta para a indiscernibilidade entre a democracia e o totalitarismo no mundo moderno e contemporâneo. Nascemos zoé, ou seja, vida nua, mera existência biológica e, quando inseridos na cultura pela via da linguagem, passamos a assumir uma existência política: nos tornamos politikòn zôon (animal político). No entanto, a partir do momento em que esse poder soberano invade nossa subjetividade e passa a controlá-la, destitui-nos de nosso caráter de sujeitos políticos, tornando-nos apenas seres viventes. Na sociedade de consumo, as mais das vezes acreditamos dominar nossos desejos e nossa subjetividade, mas estamos nos tornando meros seres viventes, inebriados pelo fetichismo da mercadoria e destituídos de caráter político de decisão. Inclusive, de decisão sobre nossos próprios corpos.
A situação é ainda mais grave quando esse poder controla aquilo que Agamben chama de homo sacer. O termo latino reporta à antiga civilização romana e define o sujeito que, por ter praticado um delito, é condenado a não poder morrer em sacrifício aos deuses, porém, se alguém o matasse, o assassino não seria julgado por homicídio. O homo sacer é uma vida não sacrificável, porém matável. Nos tempos modernos e contemporâneos, o homo sacer pode ser identificado nas mais diferentes esferas: os presos dos campos de concentração nazistas, os condenados à pena de morte, os doentes terminais, os “detentos” de Guantánamo, os refugiados nos campos “humanitários” na África ou os refugiados sírios na Europa etc.
E vou além. No contexto sociocultural brasileiro, o homo sacer é também a travesti, a/o transexual. Para o poder das ciências (em sua maioria), do capital, do Estado, da mídia, a/o transexual é o interdito, é tabu; cometeu um delito contra a cisnormatividade. No espaço tênue em que nos encontramos, entre democracia e totalitarismo, a/o transexual é uma vida não sacrificial, mas matável. A biopolítica investe no silenciamento da existência trans, no apagamento desses corpos, na demonização de suas identidades; e costuma fazer vista grossa para os casos alarmantes de homicídio de travestis e transexuais. A maioria desses casos não é levada à justiça; os processos costumam ser deliberadamente arquivados.
Mas em que a existência trans desestabiliza tanto os poderes hegemônicos? O caminho para a resposta é sinuoso, repleto de múltiplas determinações, o que nos faz correr o risco de simplificar a questão. Todavia, assumindo esse risco, aponto para algumas diretrizes. Na esteira argumentativa de Foucault, podemos dizer que o corpo, alvo da biopolítica, não se deixa reduzir tão facilmente ao poder, como podemos ser levados a crer. “Ele tem suas fontes próprias de fantástico; possui, também ele, lugares sem lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que o túmulo, que o encantamento dos mágicos”. Esses espaços podem ser investidos pelas utopias.
Foucault usa uma metáfora riquíssima: “O corpo é o ator principal de todas as utopias”. A meu ver, a/o transexual cria no seu próprio corpo um outro lugar. Não um lugar da utopia, uma vez que o corpo que se performatiza é materialidade, é um lugar real. Pelo contrário, é a utopia que se materializa no corpo como uma heterotopia. Uma outra vida, no sentido deleuziano: puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular. Uma vida para além do bem e do mal.
Mas essa liberdade de criar um lugar diferente do horizonte de expectativa da cisnormatividade, ao mesmo tempo que atende a um imperativo existencial, está sujeita a uma ofensiva cruel e violenta por parte dessa mesma cisnormatividade. É um corpo que não se conforma com a simples condição de ser vivente, biológico; ao reivindicar viver sua utopia, torna-se um corpo político, erigido da massa de corpos dóceis e anestesiados pelo hedonismo contemporâneo. É um corpo que assume a utopia e se torna heterotopia. Por fugir ao controle dos grandes poderes, transforma-se num corpo estigmatizado, num corpo abominado, num corpo apócrifo, num corpo assassinado.
Corpo censurado.
A censura judicializada e/ou política que vem sofrendo o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu é uma expressão disso que venho falando. Não é só um texto de teatro que provoca uma tal reação, ainda que se trate de uma criação bastante apócrifa aos olhos dos fundamentalistas. É sobretudo porque esse texto no espetáculo se torna performance no corpo material de Renata Carvalho. A heresia não provém apenas das letras. A heresia, com toda sua potência, está na presença viva do corpo de uma atriz trans, que desestabiliza a ordem patriarcal do poder soberano.
O espetáculo é muito simples, e sua riqueza está nessa simplicidade. Não há nele uma narrativa extraordinária, de estrutura complexa. É uma compilação de parábolas bíblicas e passagens dos evangelhos, adaptados ao universo LGBT+. A encenação carece de conceito. O cenário é simples, com apenas dois móveis. A luz é primária e inconstante. O que torna, porém, a narrativa um acontecimento é a performance de Renata Carvalho. Em princípio titubeante, ao menos no dia em que assisti, mas ganhando potência com o tempo, pelo carisma da atriz. A interação com o público é constante. A transposição das parábolas e da vida de Cristo para o universo LGBT+ passa a ter uma coerência impressionante. A peça nos mostra um Cristo que deixa de ser uma abstração para se tornar um avatar.
O diferencial desse espetáculo é que ele não investe no trágico destino do Cristo que é trans; não traz um ethos de denúncia nem de lamento. É um espetáculo alegre, que celebra o amor e a vida, não obstante os percalços pelos quais passou o filho de Deus e pelos quais passam as/os transexuais. O momento final da peça é muito emocionante, na medida em que Renata Carvalho distribui pão com a plateia, afirmando ser seu próprio corpo: um corpo que comemos e nos saciamos. Pedindo para que todos se dessem as mãos em oração, Renata Carvalho faz uma paródia do sermão da montanha e reza o “Mãe Nossa que estás no céu…”. E assim saímos do espetáculo: em comunhão e repletos de amor.
Afinal, repito, não era o amor o tema mais falado nos evangelhos?
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2009
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1, 2013.
PELBART, Peter Pál. Sala Preta, São Paulo, n. 7. p. 57-65, 2007.