#09 Queer | Entre rainhas, Dandaras e Genis – Notas sobre transgeneridades nas quadrilhas juninas
Imagem – Paulo Mafe
Por Hugo Menezes Neto
Doutor em Antropologia (UFRJ) e Professor do Departamento de Antropologia e Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFPE)
Os festejos juninos – complexo festivo-ritualístico que se remete aos rituais pagãos do solstício de verão, apropriados pela igreja católica – celebram a culminância do ciclo de plantio e colheita, a fertilidade da terra e da humanidade; é o ritual do triunfo da vida sobre a morte. A quadrilha junina, sua manifestação cultural mais emblemática, dramatiza tais elementos simbólicos encenando anualmente um casamento entre um noivo e uma noiva, comemorando a família, a procriação, a continuidade da vida e a abundância. Os casais formados por damas e cavalheiros festejam o enlace, e os noivos representam todos os outros casais cujos destinos, com vistas à manutenção da ordem social, convergem para o matrimônio. As quadrilhas juninas apresentam, portanto, como indica Rafael Noleto (2016), performances dançadas que giram em torno de noções corporificadas de ruralidade, conjugalidade, religiosidade e sexualidade, uma sexualidade heterossexual.
A quadrilha junina está presente em praticamente todo o Brasil com consideráveis diferenças regionais. Podemos dizer, no entanto, que a estrutura em dança de pares – distinguindo os(as) participantes entre damas e cavalheiros – é a característica comum aos diversos grupos existentes. Não obstante, de damas e cavalheiros são esperadas atitudes diferenciadas e estereotipadas. Os espectadores e os jurados dos grandes concursos querem ver a beleza e a graciosidade das damas, bem como o garbor e a força dos cavalheiros. Todavia, no Nordeste, e também no Norte, as quadrilhas juninas envolvidas nos circuitos competitivos, aquelas de estética não-matuta, chamadas popularmente de estilizadas, cada vez mais intensamente agenciam essa lógica sexista, permitindo que sujeitos de diferentes identidades de gênero e de sexualidade, não apenas mulheres cis, dancem como damas e representem a corporalidade ligada a um tipo específico de feminino.
É conhecida a participação de homens cis representando personagens femininos em diversas brincadeiras populares. Nas quadrilhas de estética matuta, as tidas como tradicionais, quando necessário os brincantes do sexo masculino se vestiam de mulher, ativando um sentido paródico da inversão de papéis, ratificando a ordem existente menos do que contestando-a. Encenavam, tais brincantes, uma performance que se pretendia jocosa e engraçada. Em Pernambuco, desde o final dos anos de 1990, paulatinamente, quadrilheiros(as) passam a mexer nessa estrutura. A experiência mais contundente ocorreu no começo dosanos 2000 quando a Quadrilha Junina Lumiar, campeã de concursos estaduais e regionais, trouxe homens cis e mulheres trans interpretando personagens femininos compondo o elenco da dramaturgia da encenação do casamento. Eram chamadas de “caricatas”, ainda não funcionavam cenicamente, nem se comportavam, a rigor, como damas, pois possuíam uma linguagem corporal propositalmente exagerada, mais próxima das drag queens. As caricatas foram copiadas por muitos grupos, participavam de momentos específicos, especialmente com a função de provocar a comédia. Elas não necessariamente dançavam com um cavalheiro por isso não precisavam performar o modelo ideal de feminilidade, não tinham o compromisso de se parecer com as demais damas.
No esteio do pioneirismo da Quadrilha Junina Lumiar, aos poucos, e não sem polêmicas, ao longo dos anos 2000, os grupos pernambucanos começaram a incorporar gays e mulheres trans dançando como damas. Atualmente, é muito comum encontrar nas quadrilhas gays que se vestem de mulher apenas nos festejos juninos para dançar, ou mulheres trans que assumem as experiências de transgeneridade também em seus cotidianos. Nos espetáculos juninos, contudo, esses sujeitos devem apagar os marcadores de diferença corpórea no intuito de se confundir com as mulheres cis e compor de modo coeso, uniforme, o conjunto de damas do seu grupo. Os quadrilheiros, os concursos e a audiência esperam que as damas representadas por sujeitos trans passem despercebidas, o que nem sempre acontece com sucesso, se misturem às demais damas para parecerem com mulheres cis, heterossexuais, dançando com graça, leveza, feminilidade (e outros adjetivos constitutivos da ideia do feminino heteronormativo), compondo um par de opostos com seus cavalheiros. Rafael Noleto (2016), pensando nas quadrilhas de Belém do Pará, chama esse movimento de heterossexualidade e cisgeneridade coreográfica, dispositivo de regulação dos corpos para conseguir o efeito de indistinção enquanto dançam.
Assim, se por um lado, a presença de gays e mulheres trans dançando como damas aponta para um avanço político na discussão atual sobre representatividade e diversidade sexual e de gênero na cultura popular, por outro, inadvertidamente também aponta para o reforço do binarismo e para a manutenção dos estereótipos, uma vez que as quadrilhas juninas continuam dramatizando anualmente os códigos, valores e comportamentos corporais heteronormativos, inclusive tentando enquadrar os corpos e as corporalidades dissidentes dos seus brincantes. Nesses termos, a referida presença trans não subverte plenamente a estrutura. Não há espaço para as muitas experiências não binárias que podem tencionar os parâmetros pré-estabelecidos acerca de como devem dançar homens/cavalheiros e mulheres/damas. Gays e mulheres trans que dançam de dama não podem deixar a barba por fazer (chuchu), não podem ser “machudas” (masculinas), devem fazer maquiagem e cabelo (se montar) de forma impecável,, tem que saber rodar a saia “como uma mulher”. De maneira contraditória, então, é fortemente recomendável que os gays e as mulheres trans não deixem transparecer sua condição/experiência de trangeneridade, não podem reivindicar esse léxico político-identitário potente, um esforço a serviço da manutenção dos sentidos rituais da festa e da estrutura sexista das quadrilhas.
Em 2018, contudo, as quadrilhas sinalizam mudanças. Um vídeo da apresentação da Quadrilha Girassol do Sertão, do Ceará, viralizou na internet no mês de junho. O grupo da cidade de Russas, no Vale do Jaguaribe, trouxe como tema “Minha manifestação cultural também é política” cujo argumento central é o potencial político de uma quadrilha junina para falar sobre opressão às minorias. Em determinado ato do espetáculo, o grupo faz uma homenagem à mulher trans Dandara Santos, espancada e morta a tiros, por homens, no dia 15 de fevereiro de 2017, em Fortaleza (um crime de ódio, provocado por transfobia, que teve muita repercussão nas redes sociais). Cíntia Freitas, uma das quadrilheiras da Girassol do Sertão, é uma mulher trans que interpreta a cena do espancamento e morte de Dandara, ao som de “Geni e o Zepelin”, de Chico Buarque, emocionando a audiência presencial e virtual. Assim como na vida real, a personagem do arraial é levada num carro de mão, mas, reaparece minutos depois vestida como a rainha da quadrilha (personagem de destaque), e grita: “Dandara, presente! Parem de nos matar! Eu sou Cíntia Freitas, sou mulher trans e faço parte dessa sociedade!”.
Em Recife, outro grupo fez uma homenagem à Dandara Santos de forma muito semelhante. A Quadrilha Junina Raízes, com o tema “Só Jesus na causa”, conta a história da esperada volta de Jesus a Terra. Ao chegar, o filho de Deus se encontra com uma mulher trans, Geni, sendo apedrejada. A cena também é realizada ao som de “Geni e o Zepelin”, de Chico Buarque. O carro de mão em alusão ao caso de Dandara Santos novamente entra em cena para carregar a Geni, nome do personagem criado pela Raízes, abreviação de Genivaldo. Geni é salva por Jesus e também retorna ao arraial como a rainha da quadrilha, com direito ao arco-íris da bandeira do movimento LGBTTQ na barra da sua saia. Sem peruca, sem enchimentos, desafiando mais fortemente o modelo binário, ela dança com um homem cis que tem uma faixa atravessada no peito com o mesmo arco-íris da diversidade.
Além da homenagem à Dandara, as quadrilhas Raízes (de Pernambuco) e Girassol do Sertão (do Ceará) têm mais em comum: duas mulheres trans que dançam de damas, mas que negam a farsa artística e anunciam a sua condição/experiência transgênero no arraial. A rainha cearense, inclusive, grita seu nome social. São mulheres trans representando damas sem o compromisso com a interpretação da cisgeneridade e da heterossexualidade. Não precisam encenar a corporalidade ligada ao modelo ideal/esperado do feminino se não quiserem, pois não há segredos entre elas, os espectadores e os jurados. Elas são mulheres trans performando damas trans.
Destaco, por fim, os esforços dessas quadrilhas em apresentar temas com conteúdos políticos, tentando relacionar o repertório imagético e discursivo constitutivo do ciclo junino, que tradicionalmente subsidiou a produção das quadrilhas, às questões sociais, às pautas políticas que atentam para as minorias sociais e mobilizam a vida dos brincantes. Tendo em vista a participação contundente de gays e transexuais, não só nos espetáculos como também em funções de liderança, a homofobia e a transfobia tornam-se temas prementes, justificados pelos altos índices de assassinatos e crimes de ódio. Credito o sucesso do vídeo da Quadrilha Girassol do Sertão ou a repercussão alcançada pela Quadrilha Raízes, especialmente junto a pessoas que não conheciam o movimento quadrilheiro do Ceará e de Pernambuco, à forma clara como esses grupos assumiram a presença trans em seus quadros de damas, descortinando a encenação e desestabilizando com mais vigor político a lógica sexista.
As quadrilhas juninas do Nordeste e do Norte do país há décadas têm se transformado em espaços de sociabilidade no qual convivem quadrilheiros e quadrilheiras com diversas experiências de gênero e sexualidade, classe social e raça; espaços nos quais as diferenças compõem e engendram processos de convivência, disputas, conciliação e conflitos. Esses artistas populares agenciam as tradições continuamente e agora abrem espaços para repensar o fazer quadrilha – uma dança de pares composta por cavalheiros e damas, homens e mulheres como opostos complementares, idealizados e irredutíveis – e ao mesmo tempo encampar discussões políticas que libertam os corpos da estrutura binária limitadora. Nos corpos indecorosos, dissidentes, desobedientes, está a esperança de novos tempos e novas tradições.
PS.: Optamos pela categoria transgeneridade por considerar a forma mais ampla como ela complexifica as questões postas. Sabemos, entretanto, que parte significativa do movimento LGBTTQ usa também transexualidade para articular questões similares.
Bibliografia Recomendada
MENEZES NETO, Hugo. O Balancê no Arraial da Capital: quadrilha e tradição no São João do Recife. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Recife, 2008. O Balancê do Arraial da Capital Hugo Menezes Neto (2009).
MELO, Liana de Queiroz, “Na minha quadrilha só tem gente que brilha”: corporalidades dissidentes e direitos humanos nas quadrilhas juninas do Recife/PE. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Artes e Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos. Recife, 2018.
NASCIMENTO, José Roberto. Entre damas e “outras damas”: um estudo sobre as travestilidades nas quadrilhas juninas da região metropolitana do Recife. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Licenciatura em Dança. Recife, 2017.
NOLETO, Rafael da Silva. “Brilham estrelas de São João!”: gênero, raça e sexualidade em performance nas festas juninas de Belém – PA. Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. São Paulo, 2016.
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