#14 Confrontos | Performar (n)as urgências da cidade
Imagem – Divulgação | Arte – Rodrigo Sarmento
A violência e as urgências urbanas são aspectos centrais nos trabalhos do artista e curador carioca Ronald Duarte. É sobretudo a partir do início dos anos 2000 que a rua passa a ser o lugar para agregar colaboradores e realizar ações que, ao escancarem a violência que domina o espaço urbano, acabam também evidenciando uma discussão sobre o poder público. Nesse movimento, a maioria de suas performances rasura as noções de “permitido” e “proibido”, sendo muitas vezes configuradas como “delitos”.
Exemplos disso são Fogo Cruzado, performance em que o artista, com inúmeros colaboradores, literalmente incendeia os trilhos de bonde do bairro de Santa Teresa, e O que rola você vê, em que põe um caminhão-pipa a espalhar sangue nas ladeiras do mesmo bairro, marcadamente um cenário da violência estatal do Rio de Janeiro, com as disputas entre polícia, milícia e tráfico.
O “sangue”, que advém de um corante inofensivo ao meio ambiente produzido com as beterrabas que o artista cultiva, vez ou outra domina os mares de Copacabana na performance Mar de Amor. Outro destaque é a performance Boiada, em que um grupo de pessoas caminha pelas ruas de cidades como Berlim e Rio de Janeiro vestindo cabeças de gado douradas. Confira essa entrevista conduzida por Elilson e saiba mais sobre o performer AQUI.
Ronald, você costuma afirmar que, em vez de um ‘artista autoral’, é um ‘artista coletivo’. Poderia comentar como vem se articulando esse princípio nesses quase 30 anos de atuação artística, curatorial e docente com o trabalho transitando pelo ateliê, pelas ruas, pela universidade e por ambientes institucionais como as bienais de arte Brasil afora?
Eu penso que tem a ver com aquela frase da Lygia Pape1: “Nada separa a arte erudita da popular”. Pra mim, a arte é coletiva, é para todos. Ela ultrapassa as camadas sociais, vai para o sensível e toca naquilo que nós sentimos. Então, todos os meus trabalhos são pensados como uma espécie de provocação, sobretudo uma provocação a mim mesmo.
Por isso eu distribuo a autoria, sem a participação desse coletivo eu não conseguiria realizar os trabalhos. Se não estivessem todos na “Boiada”, não existiria “Boiada”; se não estivessem todos no “Mar de Amor”, tampouco existiria o “Mar de amor”. É assim na maioria dos meus trabalhos, principalmente nesses que estão nas ruas, nas Universidades e nos ambientes institucionais. As pessoas não estão de forma gratuita/voluntária, elas vivem, entendem e criam formas de fazer o trabalho, seja com o gesto, o corpo ou com a sua participação.
Ou seja, esse coletivo é 99% do trabalho, e o 1% restante seria essa provocação, esse estanque genuíno – como o passarinho que vai pro galho e com um clique o estilhaça com sua cantoria – esse clique nada mais é do que esse início, essa provocação que faço a mim mesmo e a todos esses que eu preciso que existam nos trabalhos. Como eu misturo tudo nessa criação coletiva, eu misturo também essas instituições.
Quer dizer, pra mim tudo é planeta terra! Eu transito em tudo, vou com a massa para criar trabalhos que atinjam, sensibilizem e deem vontade de participar. Essa é minha intenção e desejo. É esse estopim, esse “jogar-se” no mundo em que eu também me jogo e me refaço dentro desse coletivão.
Pensando ainda nesse aspecto de coletividade presente em tua poética – o qual se reflete no teu papel como propositor de ações que são como contravenções e reinvenções do espaço urbano e de suas políticas – você poderia comentar os processos de criação e realização de performances como a série Guerra é Guerra e a já mencionada Boiada?
Sim, eu posso falar da proposição maior que tem 23 anos de criação, que é a série Guerra é Guerra, que agrupa 12 trabalhos. Bem, a série foi instigada durante a ocorrência de diversos episódios, mas um deles foi o gatilho. Ocorreu quando eu era morador de Santa Teresa, um bairro na cidade do Rio de Janeiro. Costumava passear com meu filho recém-nascido pela manhã, e em um desses passeios, quando voltamos para casa, encontrei um homem morto no meu portão. Ele estava esquartejado sobre uma enorme poça de sangue.
Na hora eu pensei: será que meu filho vai ver isso? Tapei os olhos dele, fiz a curva com o carrinho e concluí: “tenho que fazer alguma coisa para mostrar pra todo mundo que isso acontece”, pois isso não saía na mídia, não era veiculado em lugar nenhum. Na época, assim como até hoje, em Santa predominava o poder paralelo, mas ninguém sabia quem poderia ter feito isso com ele – se foi uma briga de facções ou a própria polícia… Eu queria fazer com que todo mundo visse aquele sangue que estava rolando morro abaixo, por isso a série começa com o trabalho O que rola você vê.
Surge dessa tentativa de evidenciar o nível da violência que chegava naquela época, 23 anos atrás. Hoje, então, estou pintando o mar de amor, da rua fui para o mar. Porque é tanta violência, que eu preciso de um mar. Coloquei o mar vermelho para poder gritar e ver se as pessoas percebem esse amor de que estou falando, esse que está faltando, e que não é um mar de violência igual ao que vivemos, mas sim de amor, essa contradição é constante na série.
Vivemos e sobrevivemos ao lado de uma zona de guerra, onde se mata e morre todos os dias. Como gritar de maneira plástica, visual e sensível? Como sensibilizar as pessoas? Daí pensei em lavar as ruas com sangue, esse foi o primeiro trabalho da série Guerra é Guerra, sempre pensada de maneira ética para que não machuque ninguém. Já vi e passei por muito sofrimento. Então o meu processo criativo é visceral.
Um vômito, uma necessidade humana que, se não colocada para fora, eu estaria morto também. Ele não é lógico, 2+2 =4, nada é dessa forma, é uma necessidade expurgante e apertada. Não é uma boa ideia, não tive nenhuma boa ideia, foi uma necessidade de gritar, como ocorre em Boiada. Já viu como é a Boiada? Já viu um boi morrer na sua frente?
Já o viu ser esquartejado e ter sua cabeça arrancada? É isso que estão fazendo conosco o tempo todo, com a nossa sociedade civil, porque o sistema quer, necessita que sejamos burros e idiotas, não podemos ter educação, conhecimento e muito menos liberdade. A liberdade nos é tirada desde o início, desde quando as pessoas começam a sonhar, a criar e a viver elas são cerceadas com a fome, com a falta de educação, a falta de saneamento básico, a falta de água, a falta, enfim, do básico do básico…
Esse cerceamento faz com que essa massa seja manipulada pelo sistema de maneiras explicitamente covardes. Assumi-me artista por isso, acho que um dia teremos a consciência universal, uma consciência do animal, do homem-animal, que não é esse homem limpinho, acético, construído para uma sociedade corrupta e dominadora. É no homem-animal que eu acredito.
Os trabalhos, assim, buscam uma alteridade que estimule uma nova percepção sobre o todo, de forma crítica e criativa, despertando nossa realidade. Lembro, por exemplo, de quando soltei uma bomba no evento “Corpocidade”2. Enquanto alguns gritavam “UMA É POUCO!”, muita gente reclamou. Quantas pessoas estão anestesiadas?
O quanto as próprias instituições produzem anestésicos mentais para as pessoas acreditarem que é assim mesmo? São os ” sinais dos tempos”, mas não! Nós temos que tomar rédea da vida, a frente da vida da gente, temos que dizer o que queremos dela, e não ficar sempre aclamando a mídia e o poder. A vida é aqui e agora, não temos que nos submeter a ninguém e a nada. E dessa liberdade, eu não abro mão, vou morrer brigando, mas não vou me vender, pode vir o dinheiro que for, mas eu sempre vou colocar minha posição, seja lá pra quem for, para o papa, para o milionário colecionador, para o varredor de rua, para o anestesista, para o médico, para quem for.
Porque essa posição que estou é o último suspiro de liberdade. É o último suspiro ser artista em uma sociedade opressora, ditatorial e covarde o suficiente para não declarar logo essas posturas, mas mantê-las veladas. Será que ninguém se incomoda mais? Que anestésico bom é esse que está todo mundo aceitando que um governador dê pulinhos na ponte porque matou uma pessoa, como se tivesse feito um gol? A morte virou publicamente comemorativa? Não estou nesse mundo, não. Eu sou um entusiasta da vida! Sou um cara que quer celebrar a vida todo dia.
Suas ações coletivas, por desvelarem o controle urbano e acrescentarem camadas éticas e estéticas ao imaginário da cidade, muitas vezes possuem como motor de criação o que você chama de ‘urgências urbanas’ para tocar ‘onde a ferida da cidade está gritando’. Como você percebe/utiliza a relação entre violência e confronto como energéticas de criação?
Isso é construção de subjetividade. Claro, eles (os representantes do poder público) estão correndo e eu estou correndo atrás, eles estão pegando o “Zeitgesist” (espírito do tempo) e eu também quero saber que espírito do tempo é esse, quero estar o tempo todo ligado neste instante. Porque a vida é o agora, o que você faz no presente – esse conjunto de “agoras” que vai ser o passado e que constrói o futuro – mas é o agora que está valendo. Temos que pensar nesse homem do instante, e, nesse sentido, é o “agora 2019” que me interessa.
Por isso falo dessa urgência, desse instante que vive a cidade, e por cidade me refiro a um modo coletivo de se viver, pois a própria concepção sobre cidade e a ideia de “Pólis” vem de um pensamento coletivista: criaram-se leis e regras para um melhor convívio entre todos, daí surge o termo “política”. Nós concordamos com isso, iríamos obedecer às leis, à ética e à generosidade. “Água não se nega a ninguém”, lembra? Agora não, ela custa 5 reais, 2 reais, então se nega sim, pois se comercializa, se vende.
Mas a questão é que eu não penso. A percepção é anterior ao racional, é da ordem do sensível, quando sinto essa necessidade já estou agonizando para fazer, espirrando e botando pra fora, e, quando vejo, o trabalho já está acontecendo. Eu não tenho esse tempo de contactar a violência como se fosse a mola para gerar um impulso criativo. Acontece no mesmo instante. É um gozo ardido, doído, que traz toda essa carga da cidade, dessas construções, da violência em todos os níveis possíveis. Como te obrigaram a andar em fila, vestir-se, calar a boca e escutar. “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha’’, não é assim que dizem? Isso é uma violência!
E são todas essas violências, físicas ou morais, que impulsionam o meu energético criativo. O trabalho age como um dedo enfiado na ferida, por isso que o instante é agora, nesse momento. Um exemplo disso é o aquecimento global. A natureza está morrendo, é um fato, estamos sofrendo na pele, e essa urgência nos sufoca de tão urgente que é. São tantas feridas, que devemos enfiar o dedo para questionar e discutir: Que cidade é essa que nós estamos construindo para nossos filhos e nossos netos? Que lugar é esse que estamos construindo ou destruindo para morrer? Pois está evidente que não estão investindo nas cidades como um projeto de Vida.
Você já declarou algumas vezes que, em muitos trabalhos, ‘mostra ao poder público o que ele esconde’. Nas performances ‘O que rola você vê’, ‘A Sangue Frio’ e ‘Mar de Amor’, você opera diferentes escalas com a simbologia do sangue. Poderia relacionar a declaração citada com a descrição desses trabalhos, partilhando episódios em que houve confronto direto por parte do poder público ou mesmo do público passante, que por vezes reage às práticas artísticas como um policial por extensão?
Antes de tudo, penso que o confronto é da ordem desse massacre, dessa violência, que o estado omisso e ativo faz com os cidadãos que ainda acreditam nele. Não tenho conflitos em relação a essas questões, porque elas estão muito claras pra mim. Mas, claro, já tive vários embates. Em “o que rola você vê”, a polícia me parou com uma pistola 765; em “A sangue frio”, a polícia veio atrás de mim, não conseguiram me encontrar, mas desmontaram o trabalho inteiro; e no “Mar de Amor” fomos duas ou três vezes para a delegacia, também porque houve denúncias.
Então, a simbologia do sangue realmente é muito forte – ele fala da violência na lata – todo mundo entende do que está se falando, mas eu procuro amenizar, já que está tão explícito. “A sangue frio”, por exemplo, em que uso uma pedra de gelo e o corante utilizado nas maçãs do amor, é uma contradição entre aqueles que têm coragem de matar a sangue frio e o próprio “sangue frio” de quem se habitua a esse derramamento diário. O sangue, então, vem com uma camada de poesia, mais leve do que a escala da realidade violenta que vivemos.
Em “O que rola você vê” utilizei 90 kg de corante de beterraba, são 30 kg em cada caminhão de 10 mil litros de água. No “Mar de Amor’’ são 100 kg, 20 sacos de 5 kg. Os dois feitos de beterraba, pintam bem, não matam ninguém, não sujam a cidade, não degradam monumentos, não sujam nada, porque o corante é vegetal, o sol bate e a coloração sai, não tem o menor problema.
Minha intenção era questionar se tudo realmente é violência: o sangue cobre o mar disparando a violência da cidade, mas eu chamo a performance de “Mar de Amor”, porque é o que falta, porque isso tudo que já está aí, eu já estou excedendo para saber se alguém consegue ver. Por exemplo, o próprio “Mar de Amor” saiu na capa do jornal Le’ monde, na França, saiu no Público, em Portugal, mas não saiu em nenhum jornal e em nenhuma TV brasileira.
Por que será? Coincidência? Já fiz três vezes esse trabalho. Poderia já estar na mídia, não? Mas, não. Existe, sim, uma necessidade por apagamento, omissão e de sempre mostrar a visão da polícia como a salvadora da história, que sempre tem a solução das coisas, enquanto os prejudicados levam as balas perdidas (que não são tão perdidas assim). E é essa população que está dentro do meu trabalho.
Diante do cenário político atual, com o desmonte da educação sendo orquestrado, perseguição a artistas, boicotes a exposições e os episódios continuados de censura, fatores que parecem atualizar ainda mais a urgência presente em tua poética, quais estratégias artísticas e políticas que você considera fundamentais nesse momento para compartilhar com os artistas mais jovens que dialogam com teu trabalho e com os potenciais leitores desta entrevista?
Micropolíticas. É a palavra-chave. Procurem seus pares, procurem aqueles que trocam contigo felizes, entendem o que você fala e corroboram o tempo todo para o crescimento dessa intenção. Que essa intenção seja contaminante. Então é da ordem das micropolíticas e da contaminação. Quanto mais contaminado nessa intenção como resposta a isso tudo, mais coletivos e maiores seremos.
Nós faremos uma revolução com um trabalho de formiguinhas, no que você pode fazer com o outro ali na esquina, para o outro também exercitar a liberdade. Esse “exercício experimental da liberdade’’, como Mário Pedrosa3 falava. Já que eles estão nos censurando, vamos ver até onde podemos ir, vamos ao limite e nos limites, ou melhor, podemos até ultrapassá-los de maneira bastante inteligente. Vamos virar essa realidade, mas iremos se formos humildes o suficiente para enxergar o outro, não é criando bolhas, mas é por: Con-ta-mi-na-ção!
É sobre virar verme e sair contaminando nas micropolíticas. É assim que a gente vai transformar, e os trabalhos coletivos são parte disso. A Boiada de Ouro, por exemplo, são só 40 pessoas, mas faz um barulho de 400 ou de 4 mil. Então são pequenas ações inteligentes, às vezes com poucas pessoas, 2, 3 ou 4 – sempre bom que sejam alguns – mas que seja sempre aquele grupo, aquele todo, aquela nuvem. Que sejamos nuvens, assim construiremos coletivos potentes, ativos, inteligentes e capazes de realizar mudanças.
Notas de Rodapé
1. Lygia Pape (1927-2004), natural do Rio de Janeiro, foi uma professora e artista multimídia, atuando principalmente com escultura, gravura, pintura e cinema. É um dos principais nomes do neoconcretismo brasileiro.
2. Acesse mais informações sobre Corpocidade AQUI
3. Mário Pedrosa (1900 – 1981), natural de Pernambuco, figura como um dos mais profícuos críticos de arte do Século XX, tendo atuado também como escritor, curador, jornalista e ativista político. Defendia o princípio de que a arte é um exercício experimental de liberdade.