Crítica – Corpo Alvo | A vídeo performance como mídia antirracista
Arte – Gabriel Furmiga
Por Lucas Bebiano
Ator, Performer e Graduando da Licenciatura em Teatro (UFPE)
‘Se o vírus parece assumir uma forma a-social, ele é vivido efetivamente como algo social, e o esforço em contê-lo, seja por meio da prevenção ou da medicação, continua sendo um esforço social. Por isso ele é marcado por todos os preconceitos e relações de poder que definem qualquer ação humana: racismo, colonialismo, preconceito de classe, sexismo, preconceito heteronormativos’
(Ghassan Hage, 2020)
É preciso localizar
Instalou-se no primeiro semestre de 2020 a pandemia do coronavírus. Uma proliferação em escala mundial de um vírus altamente contagioso, e até o momento sem cura. Por isso o decreto da Organização Mundial da Saúde (OMS) de suspensão das atividades sociais, e que todos fiquem em casa de quarentena. Essa nova organização social pegou todos os setores trabalhistas de surpresa. Os setores culturais e artísticos que não estavam habituados com o home office foram os primeiros a parar.
Diante disso, grupos e artistas independentes das artes da cena tiveram que se deslocar (física e financeiramente) para pensar possibilidades de encontro e desenvolvimento de processos artísticos pela internet. Para aqueles que trabalham com a escrita e a pesquisa em artes, cabe a reflexão: quais seriam os deslocamentos da crítica cultural?
Ao pensar sobre essa questão, me afino com o pensamento do antropólogo libanês-australiano Ghassan Hage em seu texto “O Fantasma do Acadêmico Inútil: Pensamento Crítico em Tempos de Coronavírus”. Nele, o autor nota a tendência de alguns pesquisadores nesse momento, em tratar a realidade pandêmica como serviente exclusiva de suas teorias pessoais sobre o capitalismo, o colonialismo, a biopolítica etc.
Para Hage, ao fazerem isso, tais pesquisadores correm o risco de produzirem pesquisas que do ponto de vista das urgências práticas, se tornam inúteis. Ainda segundo o autor: “Um intelectual crítico – um profissional cujo trabalho é observar, pensar, refletir e transmitir ideias – pode ser um verdadeiro incômodo em circunstâncias de urgência prática. Isso se dá, pois a temporalidade da crítica e a temporalidade das ações de urgência são geralmente incompatíveis.”[1].
Ao estabelecer um conflito entre pensamento crítico vs realidade prática, Hage vai propor em seu texto a imagem de um fantasma do acadêmico inútil, que assombra as mentes academicistas nesse momento de pandemia. Apesar de Hage estabelecer um recorte pandêmico, esses fantasmas não são novidade, pois regularmente esses intelectuais pouco práticos dominam os espaços ditos “intelectuais” como jornais, telejornais, revistas, congressos científicos etc.
Isso porque usualmente eles se utilizam da linguagem do universalismo, que, segundo Abdias Nascimento, vem com uma dita neutralidade científica: “A chamada neutralidade científica funciona como máscara para o preconceito eurocêntrico exatamente como o chamado “universalismo” tem sido um disfarce para a imposição do sistema de valores europeus sobre outros povos do mundo.” (2019, p.321). Ou seja, numa linguagem do cotidiano, trata-se de uma forma “isentona”, que finge falar por e para todas/todos, mas fala apenas de si.
Antes de qualquer coisa, este texto é uma tentativa máxima de distanciamento do fantasma do acadêmico inútil. Esse texto existe porque os espaços hegemônicos de disseminação de informação no Brasil, como jornais, telejornais, e falas oficiais do governo, falharam no primeiro semestre (e continuam falhando) ao não relacionarem raça e coronavirus.
Essa falha se deu e se dá através de diversas metodologias, como o uso de uma linguagem epidemiológica universal, como se existisse democracia racial no acesso a saúde (ou em qualquer setor da sociedade brasileira); como também no registro quantitativo das vítimas de covid-19, não racializando os corpos; e principalmente: falharam na criação do imaginário de uma quarentena, que nunca chegou para a classe trabalhadora e empobrecida, que, sabe-se bem, no Brasil, é majoritariamente racializada.
Todas essas falhas envolvendo a desarticulação das categorias de raça, classe e gênero me afetam diretamente em alguns pontos da minha construção/condição de sujeito: homem cisgênero, negro, com menos de 29 anos, bolsista de assistência estudantil etc. Isso fez com que eu não me visse nos espaços hegemônicos de informação sobre coronavírus, mas as minhas questões diante a pandemia não deixaram de existir.
Diante da necessidade uma narrativa imagética sobre as problemáticas e questões que me cercam, me vi atraído por uma vídeo performance chamada “Corpo Alvo”, do artista Reinaldo Junior, produzida durante os primeiros dias da nova organização social no Rio de Janeiro. Peço licença para empreender um percurso crítico da obra, e assim como muitos fizeram antes de mim, tentar urgentemente refletir sobre a racialidade dentro do debate pandêmico no Brasil.
Corpo Alvo
Corpo Alvo (1,39s) é uma vídeo performance do multiartista Reinaldo Júnior (RJ), esse que também é idealizador de grupos, coletivos e festivais de teatro negro como o Grupo Emú, a Confraria do Impossível, o Terreiro Contemporâneo e a Segunda Black. Reinaldo assina a concepção, o texto, a direção, a performance e a edição da obra, que também conta com a colaboração da artista Dani Câmara e do artista Fernando Porto. “Corpo Alvo” faz parte de um conjunto de performances que Reinaldo criou durante a quarentena, intitulado “Crônicas Políticas por Palhakaus”.
Trata-se de uma produção independente, sem fomento financeiro, que ainda assim conseguiu uma circulação ativa pela internet, apresentando, desse modo, possibilidades de produção das artes da cena em home office durante a pandemia. O vídeo foi postado no perfil de Reinaldo no Instagram (@reiblack) em abril de 2020, com mais de 1.950 visualizações (até agosto de 2020). No mesmo período, a performance foi postada no Instagram da Confraria do Impossível (@confrariadoimpossível).
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A postagem foi dentro de um projeto chamado #criaçõesdequarentena, espaço onde artistas negros de diversas linguagens publicaram seus afetos em relação aos primeiros dias de mudança social no Brasil. Foi nesse contexto que conheci Reinaldo e sua obra pela primeira vez.
Em junho, a performance concorreu ao Júri Popular no Festival Felino Preta (realizado inteiramente de forma online). No debate de apresentação do evento Reinaldo detalhou que o vídeo foi gravado inteiramente pelo celular. A obra também circulou por cinco regiões do país ao ser selecionada no projeto #QuarentenaProjetada, uma parceria das plataformas Mídia Ninja e Instituto Moreira Salles, em que trabalhos visuais que foram produzidos durante a quarentena foram projetados em edifícios de 5 capitais brasileiras.
Na publicação da performance no perfil da Confraria do Impossível, a sinopse do vídeo vem com duas perguntas: “Mas é tranquilo preto andar de máscara?” e “Como usar máscara sendo preto?”. De cara, percebemos que o discurso da performance direciona o olhar da espectadora/dor para a imagem do sujeito negro usando máscara, que, pelo atual contexto social de pandemia passou a ser um acessório, em comum uso, devido ao risco de contaminação da covid-19 por vias respiratórias.
No período em que a performance foi publicada (abril de 2020), o uso de máscaras de pano ainda não era popularizado. Isso fez com que a OMS recomendasse usar um lenço cobrindo o nariz e a boca ao sair na rua, uma vez que as máscaras descartáveis passaram a ser reservadas as/aos profissionais de saúde.
Voltemos a pergunta: mas é tranquilo preto usar máscara? A imagem de uma pessoa negra, sobretudo a imagem de um homem negro com o rosto coberto por um pano, é uma imagem associada ao crime. Existe o estereótipo do homem negro com o rosto coberto, que pode facilmente ser associado com um assaltante/criminoso. É a partir dessa lógica racista que Reinaldo produz sua performance.
É como disse à CNN estadunidense, em abril de 2020 o professor Trevor Logan da Universidade de Ohio: “Nós temos muitos exemplos de criminalidade presumida de homens negros em geral. E aí nós temos as autoridades pedindo que usemos em público algo que pode, certamente, ser visto como um adereço de um criminoso, particularmente quando usado por homens negros”. A fala do professor veio a público depois que algumas autoridades policias no EUA pediu para que a população negra não usasse máscara nas ruas, por ser um adereço ligado a criminosos.
A CNN estadunidense só deu atenção à fala do professor depois que um tweet do educador Aaron Thomas viralizou em seu perfil da rede social Twitter: “Eu não me sinto seguro usando um lenço ou qualquer coisa que não seja CLARAMENTE uma máscara protetora cobrindo meu rosto até a loja porque eu sou um homem negro vivendo nesse mundo. Eu quero ficar vivo mas eu também quero ficar vivo”[2]. Depois da repercussão em seu perfil pessoal, Aaron chegou a dar entrevistas em jornais locais de Ohio e publicou um texto argumentando sobre no jornal estadunidense The Boston Globe.
Nos EUA, assim como no Brasil, existiu e existe um grande espaço nas mídias hegemônicas e nos pronunciamentos governamentais, tratando apenas das questões epidemiológicas da pandemia, não se comprometendo diretamente com a racialização das questões de saúde pública. Isso fez com que as páginas pessoais na internet e os espaços de mídia alternativos se tornassem possibilidade de fala e denúncia racial durante a pandemia.
No Brasil, a tímida atenção que alguns jornais da internet depositaram sobre casos de racismo na pandemia, atrelados ao uso de máscara, só foi dada depois de uma repercussão expressiva nas redes sociais por parte das vítimas. E todos os casos de homens negros atingidos pelo racismo por uso de máscaras de proteção que tive nota, e isso seja no Brasil ou nos EUA, só chegaram em grandes jornais depois de terem repercutido no Twitter.
No Rio de Janeiro, o estudante Carlos Paulo Falcão (UFRJ) foi abordado grosseiramente por um segurança da rede Carrefour ao entrar no supermercado. Detalhe: ele não usava um lenço, ele já usava uma máscara de pano confeccionada e, mesmo assim, foi abordado. Carlos tentou prestar queixa por injuria racial, mas teve sua denúncia cancelada pela delegacia de polícia.
O jovem usou seu perfil no Twitter para se manifestar e, mesmo com a conta reservada para um número limitado de seguidores, o post viralizou, fazendo com que, posteriormente, ele passasse a dar entrevistas a jornais na internet. Já em São Paulo, um dos diretores do portal Buzz Feed Brasil, Suki de Pilares também se manifestou no Twitter, dizendo: “Saí de máscara para ir ao mercado e uma viatura me seguiu por 7 quarteirões. Eu não aguento mais”[3].
O uso do Twitter para a denúncia e/ou desabafo sobre tais casos de racismo é uma das formas que esses sujeitos negros possuem para se colocarem em perspectiva, nos fazendo atentar para o volume e pluralidade dos casos, uma vez que são homens negros de diferentes países e estados das Américas, e de diferentes classes sociais.
Nesse caso, o estabelecimento de uma corrente midiática contra hegemônica se dá pelo caráter de repercussão da linguagem da internet, uma vez que, com o crescimento do número de usuários nas redes sociais, é muito fácil que as informações, muitas vezes de forma inesperadas, circulem massivamente, ganhando, assim, a atenção de quem usualmente detém o controle hegemônico da propagação de informação, no caso, os jornais e a televisão.
Assim como nos casos citados, o artista Reinaldo Júnior, em sua vídeo performance também usa seu perfil pessoal em uma rede social para se colocar em perspectiva. Além disso, ele também pega carona em uma outra característica da linguagem da internet para construir a sua estratégia narrativa: o deboche.
Um exemplo disso está na sonoplastia, que, dentre inúmeros desenhos de som, também apresenta: a voz da rapper negra estadunidense Cardi B dizendo a palavra “Coronavirus” (em inglês); e trechos da música Astronomia do artista russo Tony Igy, remixada pela dupla holandesa Vicetone.
Ambos os áudios foram retirados de dois vídeos que repercutiram mundialmente na internet no início da pandemia; o vídeo em que Cardi B expõe com seu “jeito engraçado” suas aflições em relação ao agravamento do vírus; e uma reportagem da BCC News de 2017 sobre o grupo ganense Dancing Peallbearers, conhecido pelos serviços de carregamento de caixão na região sul do país africano Gana. Esse último virou meme depois que o remix da música Astronomia foi anexado por cima da reportagem.
Esses eram os dois vídeos envolvendo corpos negros que a internet propagava em escala mundial no começo da pandemia, ao passo que Aaron Thomas, Carlos Paulo Falcão e Suki de Pilares buscavam chamar atenção para suas denúncias e/ou alertas de racismo por uso de máscara ou lenço de proteção por corpos negros. Os dois vídeos citados repercutiram através do humor, o que nos leva a pensar sobre a forma com que corpos negros alcançaram (na lógica de repercussão da internet) relevante notoriedade nas mídias durante a pandemia.
Afinal, apesar da notoriedade local, nenhum dos casos citados envolvendo as denúncias de racismo e coronavírus repercutiram mundialmente na internet, ou tiveram de fato uma grande atenção da mídia, ou governo, para a mudança de alguma estrutura. Para que isso de fato acontecesse, foi preciso chegar ao assassinato do estadunidense George Floyde pelo policial branco Derek Chauvin (o ápice da violência contra o corpo negro masculino na pandemia).
Aqui, sim, tivemos uma repercussão midiática trazendo a racialidade para o debate pandêmico, propagada em escalada mundial pelos jornais, telejornais, internet etc., e ganhando a atenção de alguns líderes governamentais sobre o tema.[4]
Essa inserção da racialidade nas pautas e discussões das mídias hegemônicas chegou tarde demais. Como pudemos ver através de alguns exemplos, o racismo na pandemia já estava dilatado antes do caso Floyde. A diferença é que a única estrutura que vídeos de corpos negros relacionados a pandemia moviam antes desse assassinato era a estrutura dos memes.
Meu primeiro acesso aos casos envolvendo racismo e máscaras de proteção foi na performance de Reinaldo Júnior, isso porque ele insere na edição do vídeo algumas manchetes dos poucos jornais que pautaram alguns dos casos citados acima, algumas delas com os títulos: “Racismo por uso de máscara de proteção no RJ” e “Racismo: por que alguns homens negros não se sentem seguros ao usar máscaras durante a…”[5].
Dessa forma, a narrativa da performance de Reinaldo se envolve com discursos jornalísticos, criando, assim, uma dimensão documental. E ao trazer elementos da linguagem da internet para a narrativa da performance, Reinaldo cria uma relação entre o conteúdo e o espaço de criação/propagação – as redes sociais.
Para além da dimensão informativa e documental, “Corpo Alvo” também insere em sua narrativa camadas de imagens. Se a questão central da performance é o uso de máscara por pessoas negras, Reinaldo brinca com a temática e propõe diversas possibilidades de reflexão racial.
Afinal, para além da noção protetiva da máscara, que está sendo consumida dentro do contexto atual de pandemia, seu símbolo também diz respeito a representações e identidades. E Reinaldo usa isso como um dispositivo estético. A exemplo disso temos a imagem 2 do texto, que é a primeira imagem escolhida por Reinaldo para abrir a vídeo performance.
Na imagem, existem duas representações de homens negros, a do próprio Reinaldo e a de um desenho anexado na parede ao fundo, ambas estão olhando fixamente para a câmera. Durante a performance, Reinaldo usa diversas vezes essa ideia de multiplicidade como recurso visual, o que se torna uma metáfora quando levamos em consideração que o gatilho criativo da performance (denúncias de racismo por homens negros), apesar de também atravessá-lo, não parte exclusivamente de si. O que Reinaldo faz é criar uma estrutura narrativa que diz respeito a uma parcela significante de masculinidades negras, que podem ou não se encontrar na mesma situação: “Como usar máscara sendo preto?”.
Para além da questão da multiplicidade, o que também me chama a atenção nessa primeira imagem é a relação entre a temática da performance e o design da máscara elaborada pelo artista Fernando Porto. Se trata de uma máscara animalizada, o que faz com que a imagem também permita ser vista como uma metáfora com a forma com que historicamente pessoas negras foram (e ainda são) discursivamente construídas através do racismo, como animais.
É como diz a escritora Grada Kilomba: “O Racismo não é biológico, mas discursivo. Ele funciona através de um regime discursivo, uma cadeia de palavras e imagens que por associação se tornam equivalentes: africano – África – selva – selvagem – primitivo – inferior – animal – macaco.” (2020, p. 130).
E essa ideia racista de sujeita/to negra/negro animalizada/o é logo destruída, isso porque a máscara permite que o rosto de Reinaldo fique a mostra, fazendo ver, assim, aquilo que supostamente deveria estar escondido. Afinal, a ideia comum de uma máscara é que ela cubra parcial ou totalmente uma identidade, a fim de que a sujeita/to que está sendo coberta, passe a ser representada/do por outra coisa.
Nesse caso, a ideia de uma máscara que possibilita ambas as presenças: a do sujeito (performer negro) e a da representação (animal), transmite a sensação de inversão de valores, ou seja, quem está no comando é quem supostamente deveria estar sendo representado.
No decorrer da performance, Reinaldo vai intensificar seu jogo com máscaras e as representações que elas trazem. Se na primeira imagem pudemos traçar analogias que partiam exclusivamente do sujeito negro, agora, na imagem 3, temos o sujeito negro em relação com outras representações.
Vemos que as duas representações de homens negros continuam em quadro, só que dessa vez o performer usa uma máscara de rosto branco com nariz de palhaço, mesclando, assim, três representações: performer-homem negro/ máscara-rosto branco/ máscara-nariz de palhaço. Para a contribuição da leitura da imagem, um gesto: o performer segura um globo terrestre com uma das mãos.
Uma das metáforas que se pode depreender dessa imagem remete à tese do psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon: “Pele Negra, Máscaras Brancas”. Nela Fanon traça seu percurso enquanto homem negro no mundo e suas impressões acerca do olhar branco e colonial perante a racialidade. O título da obra de Fanon vem da ideia de que historicamente, as subjetividades políticas das sujeitas/tos negras/negros são construídas/dos a partir do que a colonialidade e a branquitude define como negra/negro, o que é problemático.
Identifico essa metáfora ao ver Reinaldo colocar literalmente sua pele negra vestindo uma máscara branca. O globo terrestre sendo sustentado por uma das mãos pode trazer uma noção de controle e poder; a imagem do objeto é uma boa metáfora para a colonialidade, que foi articulada pela supremacia branca enquanto um fenômeno global. Nessa lógica, as sobreposições entre as máscaras de homem negro vs homem branco podem representar um conflito de controle, no qual, dentro da narrativa da performance, o controle é do homem negro.
A máscara de palhaço traz uma analogia direta ao ridículo, como o próprio Reinaldo denomina: um “PalhaKaus”. Um estado de corpo debochado, que também é uma forma de mídia contra-hegemônica, pois expõe as violências das estruturas de raça e classe. E da maneira que expõe, nos permite compreender essas violências enquanto uma coisa só, ou seja, estruturas de opressão que se compõe.
Para melhor representar essa ideia de estruturas de opressão que se compõe, temos a imagem 4. Dessa vez o performer usa uma máscara de homem branco com um semblante cordial. Ele se posiciona atrás de um microfone segurando o que parece representar uma bíblia. Entendemos que se trata de uma figura religiosa.
A imagem da máscara perante o microfone mostra quem é o sujeito que pode falar (homem branco), e o sorriso cordial (debochado) dá o tom de uma certa banalização. Rapidamente ele abaixa o que segura e levanta um revólver. Áudios de tiros são reproduzidos.
Fotos do atual prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella são anexadas ao vídeo. Se trata de algumas imagens do prefeito que foram desumanizadas com um filtro de distorção, como podemos ver ainda na Imagem 4. Tais fotos foram reproduzidas desde o começo do vídeo e retornam nesse momento, fixando, assim, uma persistente crítica da performance a Crivella, que não só pode representar o Estado como também a Igreja.
Isso porque, antes de ser político, Crivella também já havia adquirido os títulos de pastor e de bispo. Sua eleição como prefeito do Rio de Janeiro, em 2016, foi alavancada por um discurso fundamentalmente religioso. Ou seja, existe um esquema no sistema eleitoral brasileiro (constitucionalmente laico) de nomeação de figuras religiosas a cargos governamentais através da democracia.
Ao trazer a figura de Crivella, Reinaldo localiza a questão, o que nos permite lembrar de casos isolados para a exemplificação. Como no dia do resultado do 2º turno das eleições de 2016 no Rio de Janeiro, no qual o então eleito prefeito Crivella rezou a oração do “Pai nosso” ao finalizar seu agradecimento oficial, oficializando publicamente as relações entre Estado e Igreja.
Separados, o Estado e a Igreja já apresentam falhas quanto às políticas raciais, e ambos seguem persistindo, juntos, atualmente, nessas falhas durante a pandemia. Ao se mesclarem na construção de um governo, como é o caso do governo Crivella, vemos as estruturas de opressão se comporem sem mais precisar de filtros. Assim, por que a raça excede (salvo raras exceções) a ideia de amor cristão?
E o que tem no olhar cristão do Estado perante a racialidade, que foge aos princípios da religião? Ao refletir sobre essa falha, Abdias Nascimento diz: “Cristianismo, em qualquer das suas formas, não constituiu outra coisa que aceitação, justificação e elogio da instituição escravocrata, com toda sua inerente brutalidade e desumanização dos africanos” (2019, p. 63).
Ao relacionarmos as atuais estruturas conjuntas de opressão com essa fala de Nascimento, vemos que o trio supremacia branca, colonialidade e cristianismo formam uma espécie de “pacto” colonial.
Ilustram bem isso a questão da exploração da mão de obra negra escravizada, para serviços domésticos e tarefas agrícolas por parte da Igreja Católica em suas propriedades rurais (NASCIMENTO, 2019, p. 198); a intolerância religiosa na sociedade brasileira, que em geral parte de uma visão cristã perante uma presença religiosa de matriz africana; a exclusão da raça nas doutrinas e histórias religiosas; a personificação da branquitude em figuras sacras de fé/poder etc. No caso desse último, uma ligação direta ao Prefeito Crivella: bispo, branco, ex-senador, eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro em 2016.
Já as falhas dos governos atuais que se constroem a partir dos pilares da supremacia branca, da colonialidade e do cristianismo, se dá pela manutenção (ou dilatação) do racismo estrutural durante um contexto que não faz parte da organização social comum: a pandemia.
Os exemplos disso são abundantes: a abordagem abusiva a homens negros de máscara, e a omissão policial perante a isso; operações policiais acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro (habitada majoritariamente por pessoas racializadas) sem manter o respeito ao isolamento social nessas regiões; hospitais públicos e/ou unidades de tratamento nas periferias com superlotação e sem recursos ou estrutura etc.
A dialética entre pessoas negras e máscaras
Ao investigar o uso das máscaras de proteção em corpos negros masculinos, Reinaldo cria diversas imagens performativas produzidas a partir de máscaras cênicas, uma metáfora ao tema. O artista usa exemplos reais de racismo cotidiano durante a pandemia, mas a dialética entre pessoas negras e máscaras no continente americano é mais antiga do que o coronavírus.
A escolha das manchetes jornalísticas feitas por Reinaldo correspondem a dois países: Brasil e EUA. Na tentativa de compreender alguma lógica nessa relação dialética entre corpos negros e máscaras, penso que existe, sim, uma diferença histórica entre os sistemas coloniais e escravocratas de cada país.
Mas para a elaboração de uma melhor metáfora, também gosto de pensar que existe alguma ligação continental entre eles, possivelmente, uma herança colonial em comum. Digo isso por representarem os dois maiores sistemas escravocratas do período colonial em seus respectivos hemisférios: América do Norte e América do Sul. E se trata de dois países que foram colônias europeias e que viveram a experiência das plantations.
A palavra plantation (plantação em inglês) diz respeito ao antigo sistema de exploração colonial europeu, consistindo na manutenção de grandes latifúndios; na monocultura de cana-de-açúcar, algodão etc.; mão de obra escravizada; exportação exclusiva para as metrópoles. E é justamente nesse cenário que o uso das máscaras por pessoas negras passa a ser um objeto de opressão na lógica da subjugação racial no continente americano.
No ensaio “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano”, a escritora Grada Kilomba detalha o que foi o uso de uma máscara de ferro aplicada em pessoas negras escravizadas, e reflete sobre a simbologia atribuída a esse objeto em corpos racializados: “…. sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura.” (2020, p.33).
A autora ainda detalha que essa máscara era instalada dentro da boca das sujeitas/os negras/os e amarrada por duas cordas, uma passava pelo queixo e a outra pelo nariz e testa. Em seu livro, ela apresenta, numa rápida introdução, a história da “Escrava Anástacia”, e expõe sua ilustração como exemplo:
Kilomba usa o termo das plantations como metáfora de um passado violento que não é superado, que constantemente é reencenado a partir do racismo cotidiano. Segundo a própria autora: “A ideia de “esquecer” o passado torna-se, de fato, inatingível; pois cotidiana e abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a cenas que evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um presente irracional.” (2020, p. 213).
Essa citação nos ajudaria, por exemplo, a melhor compreender o título de uma das manchetes selecionadas por Reinaldo em sua performance: “…por que alguns homens negros não se sentem seguros ao usar máscaras…”. Ou seja, para além de questões sociais como a criminalização de homens negros usando máscara por policiais, também existe uma dimensão subjetiva, que diz respeito as/os sujeitas/sujeitos negras/negros no geral, que podem não se sentir bem usando uma máscara que tampa apenas sua boca, possivelmente, por poder remeter a uma memória colonial da máscara como símbolo de silenciamento e inferiorização racial.
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Se no primeiro semestre de 2020 os Estados Unidos e o Brasil apresentavam casos de racismo por uso de máscara de proteção durante a pandemia, hoje, no segundo semestre, tais países são respectivamente 1º e 2º lugares no número de mortes por covid-19. Talvez esteja nesse fato a relevância da hipótese sustentada pelo antropólogo Ghassan Hage, citado na epígrafe e no início do texto: o vírus também é um fator social.
Fazer isso pode significar uma abertura para uma maior atenção a direitos mínimos que não foram distribuídos de forma igualitária quando levado em consideração a raça, a classe, e o gênero. Nesses casos, com direitos mínimos, me refiro especialmente ao que talvez seja o mínimo para qualquer pessoa durante uma pandemia: o direito de poder se preocupar apenas com a pandemia. Mas isso não aconteceu de forma massiva no Brasil.
Nesse ponto, o caráter de mídia contra-hegemônica que atribuo a vídeo performance “Corpo Alvo” não vem com uma ideia de ineditismo, pelo contrário, identifico no trabalho de Reinaldo uma aproximação com outras manifestações midiáticas que acabam por entrar nessa mesma lógica.
Por exemplo, a questão do racismo na pandemia também foi abordada pelo artista Felipe Oládelè em sua vídeo performance “Fragmentos”; a professora Dodi Leal publicou um texto na n-1 edições refletindo sobre como a pandemia faz com que as pedagogias travestis identifiquem a ruína dos pilares cisnormativos da democracia brasileira; a filósofa Djamila Ribeiro publicou diversos textos em sua coluna na Folha de S. Paulo (talvez o maior espaço de destaque contra-hegemônico dentro de um jornal impresso e digital no Brasil) nos quais relaciona os impactos da pandemia com as falhas dos governos perante a sociedade. Em um de seus textos a filósofa destaca o agravamento da violência doméstica relativa às mulheres que puderam ficar em casa de quarentena.
Esses foram alguns dos arquivos/imaginários sobre a pandemia que consumi no primeiro semestre de 2020. Ao trazer “Corpo Alvo” para esse texto me interessei em destacar quais aspectos da performance me comunicam, e quais aspectos da performance me tensionam. Destaco, então, meu tensionamento final: O que estaria o artista Reinaldo Júnior criando se não fosse o racismo? E sobre o que eu estaria escrevendo?
Referências
HAGE, Ghassan. O Fantasma do Acadêmico Inútil: Pensamento Crítico em Tempos de Coronavírus. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível AQUI
LEAL, Dodi. A arte travesti é a única estética pós apocalíptica possível? Pedagogias antiCIStêmicas da pandemia. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível AQUI
GONÇALVES CONCEIÇÃO, Jessy Kerolayne. A máscara não pode ser esquecida. Poiésis, Niterói, v. 21, n. 35, p. 345-362, jan./jun. 2020. [https://doi.org/10.22409/poiesis. v21i35.36386].
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. 1ª edição, Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. 4ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2019.
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2019.
THOMAS, Aaron. Why I don’t feel safe wearing a face mask. The Boston Globe. Columbus, 05 de abril de 2020. Disponível AQUI
FAGUNDES, Ana Caroline. Uso de máscara por homens negros é motivo de racismo durante a quarentena. Notícia Preta. 12 de abril de 2020. Disponível AQUI
BERMÚDEZ, Ángel. Morte de George Floyd: 4 fatores que explicam por que caso gerou onda tão grande de protestos nos EUA. BBC News Brasil. São Paulo, 02 de junho de 2020. Disponível AQUI
FURTADO, Marcos. Estudante diz ter sofrido racismo por usar máscara de proteção contra coronavírus. Folha de S. Paulo. São Paulo, 09 de abril de 2020. Disponível AQUI
RIBEIRO, Djamila. Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus. Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 de março de 2020. Disponível AQUI
RIBEIRO, Djamila. Com isolamento, a questão da violência contra mulher fica ainda mais grave. Folha de S. Paulo. São Paulo, 27 de março de 2020. Disponível AQUI
Notas de Rodapé
[1] Os especialistas e profissionais dos saberes de valor prático para a contenção do coronavírus, como as instituições médicas, políticas e as policias, não se enquadram na categoria de inutilidade e incômodo abordada pelo antropólogo.
[2] Livre tradução de: “I don’t feel safe wearing a handkerchief or something else that isn’t CLEARLY a protective mask covering my face to the store because I am a Black man living in this world. I want to stay alive but I also want to stay alive.” postado no perfil @Aaron_TheThomas no Twitter. Essa publicação obteve mais de 120 mil curtidas até agosto de 2020.
[3] Tweet publicado no perfil @Sukitabr. O post obteve mais de 90,2 mil curtidas até agosto de 2020.
[4] Para mais detalhes sobre a repercussão envolvendo o assassinato de George Floyd ver 09ª citação em referências.
[5] As referências das manchetes de jornais não são localizadas na vídeo performance. Porém, encontrei manchetes de jornais com os mesmos títulos usados e/ou falando sobre o mesmo assunto. Para conferir tais manchetes, ver a 7ª, 8ª e 10ª citação em referências.