#15 Deslocamentos | Figuras Traçadas nas Ruas
Imagem – Carolina Calcavecchia | Arte – Rodrigo Sarmento
Natural de Goiânia, Flávia Naves esteve radicada por muitos anos no Rio de Janeiro, onde começou a realizar performances em ruas e residências. As normatizações do corpo, as noções de cuidado e as imbricações entre as pessoas são fundamentos presentes em sua prática – levada ao extremo pela artista – que lida constantemente com longas durações, limites psicofísicos e transformações do próprio corpo. A ideia de ‘corpo Figura’ tem sido o coração de sua prática artística, sendo um conceito que a performer desenvolve em suas pesquisas de mestrado e doutorado. Através da criação de ‘Figuras’, Naves procura evidenciar as normatizações que o corpo, sobretudo o feminino, sofre por parte da estrutura social.
Figuraça foi uma performance de longa duração realizada ao longo de 2015. A artista caminhava pelas ruas e transportes do Rio de Janeiro fotografando coisas que capturavam sua atenção nos corpos transeuntes: peças de roupa, adereços, cortes e colorações de cabelo, tatuagens… Depois fazia um mosaico dessas partes de corpos e compunha uma ‘Figuraça’. Os próximos passos eram convidar uma figurinista, pesquisar os materiais, transferir o mosaico para o seu próprio corpo e viver assim durante um mês. Inclusive, a performer possui tatuagens permanentes nos seus dois braços que foram fotografadas de corpos com os quais ela cruzou uma única vez nas ruas.
Recentemente, a ideia de longa duração se faz presente na ação Quem matou Marielle?: há mais de um ano, a artista se propôs a estampar essa pergunta em todas as roupas que vestisse em espaços públicos e seguir repetindo o gesto até a pergunta ser respondida ou até atingir o seu limite psicofísico. Confira mais nessa entrevista realizada pelo artista e pesquisador Elilson e saiba mais sobre a artista AQUI.
Flávia, como muitos performers, você iniciou seu percurso artístico como atriz. Em um de seus textos, afirma: ‘O teatro intensifica o meu encontro com a vida, mas é a performance que, de fato, abre outras possibilidades de vida’. A partir desta frase, você poderia iniciar nossa conversa relatando um pouco sobre sua trajetória, pensando em teus deslocamentos geográficos e artísticos?
Assim foi para mim o encontro com a performance, uma abertura para que outros modos de vida passassem a me pertencer. Associo a performance à criação e execução de ‘programas performativos’: eu penso uma ação, elaboro seu enunciado e estabeleço um compromisso comigo mesma, que é o de tentar cumprir a ação que elaborei até o seu fim, fim que muitas vezes significa agir até que o programa se cumpra – ou até o meu limite psicofísico.
É a energética do paradoxo: programar uma ação para desprogramar organismo e meio, como diz a performer carioca Eleonora Fabião, responsável por propor o conceito de programa performativo. O rigor do programa desorganiza hábitos, crenças, valores, modifica meu olhar, altera meus desejos. Quanto mais estendido no tempo o programa performativo for, mais radical será a experimentação de outro modo de vida. Criar um programa talvez seja um modo de criar meus próprios problemas.
A filósofa e teórica feminista Judith Butler diz que, durante toda a sua infância, o que ela não poderia fazer era criar problema, ou seja, qualquer sinal de rebeldia, qualquer questionamento era o que não deveria ser feito. Aos poucos, ela compreendeu que a lei dominante se encarregava de criar problemas para nós justamente para que não tivéssemos tempo de criar os nossos, mas, como problemas são inevitáveis, nos cabe encontrar a melhor maneira de criá-los. Acredito que um programa performativo é uma boa forma de criar o seu próprio problema de forma crítica, criativa e responsável.
Mas, falando um pouco mais sobre a minha relação entre teatro e performance, ter praticado teatro durante tantos anos foi de extrema importância para que eu confiasse na capacidade que meu corpo tem em ser múltiplo, e a prática da performance apenas intensificou essa capacidade ao abrir os caminhos para que eu pudesse viver essa multiplicidade na minha própria vida. A performance chega para me dizer que a arte está no meu cotidiano alterando tudo: hábitos, rotinas, relações, escolhas, modificando meu dia a dia, do momento em que eu acordo até o momento em que durmo.
Vale dizer que comecei a performar em 2013 com a criação da performance A Besta, em que, vestida com a Figura da Besta, permanecia imóvel por uma hora e meia em um ponto do meu cotidiano. Naquela época, eu tinha um conhecimento raso sobre performance e não conhecia o termo programa performativo. A questão é que no momento em que visto a Figura da Besta e realizo o programa, percebo que algo ali é muito diferente do que eu estava experimentando no teatro. Eu já não vestia um figurino, eu vestia uma Figura, o que significa alterar a minha imagem em meu próprio cotidiano para uma ação cuja finalidade não é a representação de uma personagem, e sim uma reapresentação de mim mesma.
Ao tomar conhecimento da arte da performance e do conceito de programa performativo proposto por Eleonora, as experimentações em torno da ação de performar Figuras passaram a intensificar a sensação de que o que eu fazia já não era mais apenas arte, e sim a própria vida.
Realizando fundamentalmente performances em ruas e casas, como você costuma refletir/trabalhar as relações entre espaço e deslocamento no teu processo de criação?
Como disse anteriormente, realizo performances sobretudo para que elas possam me apresentar outras possibilidades de vida e, para que isso aconteça, elas precisam alterar meu cotidiano. Portanto, é na cidade, no bairro em que eu moro e nos lugares que eu frequento que a maioria das minhas ações acontece. Ao menos foi assim até agora.
Já a escolha do deslocamento e do local da ação dependerá do contexto em que a performance foi criada. Por exemplo, a Figura da GUARDyà surgiu quando policiais executaram o bailarino Douglas Rafael, o DG, morador da favela Pavão Pavãozinho, na cidade do Rio de Janeiro. Diante de tamanha covardia, criei a Figura da GUARDyà para que ela pudesse guardar os corpos da cidade que seguem desprotegidos e negligenciados pelo poder público.
Busquei, então, performá-la em bairros e localidades da cidade com maior índice de vulnerabilidade dos corpos. Junto às amigas e aos amigos, procurei casas que estivessem próximas a regiões com esta característica para que me acolhessem na realização da primeira parte da ação, momento que consiste em um ritual para a vestimenta da Figura da GUARDyÃ. Realizada essa primeira parte, eu sigo para a rua, me deslocando até a entrada de uma favela, e ali, imóvel, permaneço em vigília por tempo indeterminado.
Já na performance À Brasileira, eu vesti a Figura da rainha de bateria de escola de samba com máscara antigás, procurando me deslocar pelos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro, como o calçadão da orla de Copacabana. Importava com essa ação apresentar para a cena turística da cidade uma nova versão da mulher carnavalesca, alterando o seu status de objeto de desejo e consumo para a função ‘modo de combate’.
Você tem mencionado o termo ‘Figura’, que desenvolve tanto na performance ‘Figuraça’ como no Mestrado em Artes Visuais na UFF, com a elaboração do conceito ‘corpo Figura’. Como esse conceito vem se desdobrando no seu Doutorado em Artes Cênicas na UniRio?
corpo Figura é um ‘conceito’ que eu coloco entre aspas, pois desde que ele se apresentou para mim não consegui chegar à sua definição. Posso dizer que corpo Figura é um ‘conceito’ movente, ele só pode existir performativamente, ou seja, em constante redefinição. Isso porque o corpo Figura só existe a partir de uma prática e a cada ação que realizo algo novo se apresenta.
Mas falando de FIGURAÇA, posso dizer que o corpo Figura se apresenta nela como uma prática de desnormatização do corpo em que modifico a minha imagem ao incorporar diversos elementos que vestem corpos alheios. A performance FIGURAÇA contou com o seguinte programa performativo:
Ter um mês para:
- Capturar com o meu celular fotos de pedaços dos corpos das pessoas em meu cotidiano (um braço, uma perna, um tronco, uma cabeça); 2. Escolher as fotos dos pedaços de forma que, ao juntá-las, um novo corpo seja criado; 3. Revelar as imagens dos pedaços escolhidos; 4. Em folha de papel A3 gramatura 300, compor uma nova Figura feita destes múltiplos pedaços; 5. Encontrar (em brechós, lojas, mercados populares, bancas de ambulantes, casa de amigxs etc.) os elementos diversos que vestem a Figura composta; 6. Vestir a Figura composta em meu próprio corpo.
Ter mais um mês para:
Permanecer vestida da Figura composta em todo o meu cotidiano.
A performance teve duração de um ano: iniciando em outubro de 2014 e finalizando em outubro de 2015. Ao longo de um ano foram ao todo seis FIGURAÇAS criadas.
Como você pode perceber, através da performance FIGURAÇA estive comprometida durante um ano em alterar significativamente a minha imagem incorporando os diversos elementos que compõem a imagem de outros.
O corpo Figura então se apresenta para mim como um trabalho sobre a imagem do corpo, que é um trabalho sobre a política do aparecimento. É como se o corpo Figura perguntasse: de que modo aparecemos? Como podemos fazer da nossa aparência, a nossa política? Que Figura podemos criar para nós a fim de desarticular e não propagar processos normatizadores e colonizadores do corpo?
Foram perguntas como essas que me levaram a criar o programa performativo FIGURAÇA. Antes de FIGURAÇA, sentia meu corpo intensamente colonizado, mesmo sem querer eu reproduzia padrões de beleza e comportamento que me afastavam da potência política e poética do meu corpo. Eu reproduzia normas e regras que foram impostas ao meu corpo antes mesmo de eu nascer. Criei o programa performativo FIGURAÇA para que eu pudesse, se não me desvencilhar dessas imposições, ao menos me tornar consciente delas.
Em FIGURAÇA, fui atrás de um corpo que pudesse me pertencer, não por ser um corpo capaz de reencontrar sua originalidade, mas por ser capaz de ser único em sua múltipla existência. Um corpo que sai em busca não de sua essência, mas de uma aparência que, quanto menos minha, mais a mim pertencia. Mais uma vez a energética do paradoxo aqui se apresenta.
Não acredito em essência, pureza ou originalidade, somos capturados antes mesmo de nascer, escolhem para nós sexo e gênero, nascemos em uma determinada classe e, de acordo com a cor da pele que nos veste, recebemos diferentes tratamentos. Através da performance e, especificamente, através de FIGURAÇA, encontro a possibilidade de me conscientizar dos processos normatizadores do corpo e, assim, vivenciar um corpo outro, um corpo em construção, corpo em constante processo que hoje pode ser Flávia, amanhã Caio e depois de amanhã outra coisa completamente diversa.
Claro que, dentro da ordem social, diante dos olhos da lei, continuamos tendo os nossos corpos capturados e limitados nos enquadramentos das marcas sociais. Quando digo que hoje posso ser uma e amanhã outro, falo da capacidade que um corpo tem de experimentar graus de liberdade quando descobre que não é apenas o que disseram que ele era.
Hoje, no doutorado em Artes Cênicas na Unirio, sigo pesquisando a poética e a política do corpo Figura nas ações que executo, mas agora com uma diferença: pesquiso também o corpo Figura sendo praticado em outros corpos através de laboratórios que ofereço. Uma perspectiva pedagógica começa a se desenhar, o que para mim é um grande desafio. Vamos ver no que vai dar.
Numa carta à filósofa Judith Butler, você comenta: ‘através da performance encontro maneiras para compreender, revelar, denunciar, enfrentar e subverter os diversos tipos de poder que diariamente operam em meu corpo’. Nessa prática de performar Figuras, pode relatar as normatizações e policiamentos presente nas ruas (e no teu próprio corpo) que suas ações acabam desvelando?
Prefiro dizer o quanto as ações que realizo reforçam o exercício de liberdade que um corpo como o meu (tido como feminino, pertencente ao gênero mulher) passa a experimentar em uma cidade e País em que mulheres são constantemente coagidas, assediadas, agredidas e assassinadas. Não podemos esquecer que falo de uma perspectiva branca, não conheço a violência do preconceito racial e nem corro o risco da morte social como uma mulher negra corre.
De toda forma, ainda que a cor da minha pele me conceda privilégios, não escapei da violência do sexismo e do machismo. Carrego em meu corpo essa ferida, fruto da marca de gênero que me pertence, e é no atravessar dessa marca e no cuidar dessa ferida que coloco meu corpo em ação nas ruas da cidade. Na contramão das normatizações e impedimentos que diariamente recaem sobre meu corpo, as ações que executo me ajudam a lembrar que existem outras possibilidades para meu corpo de mulher, e que estas possibilidades são inesgotáveis e infinitas.
Você é uma artista que costuma experimentar uma radicalidade que se reflete nas ações de longa duração, como ‘Quem matou Marielle?’, que durou mais de um ano. Sabendo que ela rendeu episódios marcantes de interação com transeuntes, gosto de ler tua poética como um diálogo constante entre práticas de cuidado e desnormatizações do corpo. Como você percebe essa articulação em teu trabalho?
Começo por um relato. Conheci Marielle Franco como uma força política imensa, suas palavras e pensamentos me enchiam de esperança, sua simples presença me comovia profundamente. Votei nela para vereadora da cidade do Rio de Janeiro, assim como outras 46 mil e 501 pessoas. Nunca a conheci pessoalmente, nunca fomos apresentadas, mas isso não foi impedimento para que a tristeza, a raiva e a indignação tomassem conta do meu corpo ao saber do crime brutal que tirou sua vida.
Quando chegava perto de completar dois meses da sua execução e a do seu motorista, Anderson Gomes, eu comecei a sentir as ruas se esvaziarem de Marielle. O seu nome, que antes ecoava em tantas bocas, começava a silenciar; o seu rosto, que antes aparecia quase que diariamente nos jornais e nas mídias sociais, começava a desaparecer.
As perguntas sobre o que aconteceu, quem matou, quem mandou matar e por que mataram Marielle continuavam circulando pela cidade, mas o pedido por justiça começava a enfraquecer quando as respostas a estas perguntas pareciam ficar cada vez mais distantes. A sensação era de que, em pouco tempo, já não nos lembraríamos do que aconteceu – ou a recordação da barbárie seria apenas uma ferida sem possibilidade de ser sanada.
Foi neste tempo que eu caminhava pela Rua Riachuelo em direção aos Arcos da Lapa. Caminhava carregando um corpo que não queria silenciar e muito menos esquecer que uma mulher negra da favela, mãe, esposa, filha, irmã, a quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro, defensora incansável dos direitos humanos, teve sua vida interrompida e sua voz silenciada. Foi carregando este corpo em ferida latente que eu cruzei com outro corpo carregando a pergunta Quem matou Marielle?. Naquele instante, compreendi que esta pergunta não podia descansar e, acompanhada da imagem dela, continuei meu percurso tecendo o seguinte programa:
No dia 14 de maio de 2018, dia em que se completam dois meses do assassinato de Marielle Franco, vestir a pergunta QUEM MATOU MARIELLE? e não tirar mais até que esta seja respondida – ou até o meu limite psicofísico.
Elaborei o stencil com a pergunta, abri meu guarda-roupa e fui escolhendo as peças que seriam grafitadas. Em algumas semanas, todo o meu guarda-roupa continha a pergunta e, em alguns meses, eu estava completamente tomada pela ação.
Foram 365 dias vestida da pergunta.
Neste tempo, fui abordada das mais diferentes formas pelas mais diversas pessoas, recebi afetos de todos os tipos, dos mais amáveis aos mais hostis. Nunca fui agredida fisicamente, nem xingada de forma violenta, mas recebi palavras, olhares e gestos tão violentos quanto um soco no estômago. Chorei algumas vezes sozinha, outras acompanhada, gargalhei com pessoas que nunca tinha visto, sorri junto com quem eu acabara de conhecer.
Cuidar de uma ferida como a da execução da Marielle não é tarefa fácil, machuca e dói, mas tenho para mim que deixar a ferida de lado e seguir a vida é muito mais dolorido que estar em contato com ela. Movimentar a dor compartilhando a indignação e encontrando eco no grito por justiça, me enche de potência de vida.
Do contrário, a impossibilidade de agir tornaria meu corpo doente. É nesse sentido que o cuidado se apresenta para mim na performance ‘Quem matou Marielle?’, na insistência que um corpo possui de agir quando somos diariamente desacreditados da nossa capacidade de ação.
Portanto, peço às leitoras e aos leitores que chegaram até aqui comigo, peço que gentilmente se imaginem na rua do seu quarteirão, do seu bairro, da sua cidade. Imaginem-se caminhando pela rua, assim como você fez há algum tempo. Em que ponto dessa caminhada algum acontecimento ou alguma lembrança te afetou negativamente a ponto de fazer você parar? Em que localidade algum olhar, algum gesto, alguma memória te constrangeu? Te fez mal? Te deixou desconfortável a ponto de te paralisar? Não necessariamente uma paralisação motora: se algo que você viveu ou lembrou te fez parar de sorrir já é suficiente. Visualize o lugar exato em que você sentiu essa paralisação, descreva este lugar para você mesma (o). Agora vá até esse lugar e dance, dance ali de olhos abertos, de olhos fechados, dance freneticamente, timidamente, enlouquecidamente, contidamente. Dance com música, sem música, cantando, em silêncio, tanto faz. Apenas dance até ferir seus pés. Agora, volte para casa e, com amorosidade, cuide das suas feridas. Repita a ação quantas vezes achar necessário.