#20 Territórios em Trânsito | Recife ou Kiribati: que identidade nordestina é essa?
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Pollyanna Diniz
Jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) com apoio da PROEX/CAPES e mestre pela mesma instituição
Vou começar propondo um exercício de imaginação. Se você parar por alguns instantes enquanto lê essas linhas e pensar sobre o Nordeste do Brasil, livremente, quais imagens vêm à tona? As respostas a essa pergunta nos ajudam a reunir uma série de símbolos associados de modo aparentemente natural ao Nordeste. Mas será que há aleatoriedade nas imagens que você juntou mentalmente?
Numa das cenas do espetáculo Estudo nº1: Morte e Vida, do grupo pernambucano Magiluth, o ator Bruno Parmera propõe aos espectadores uma pesquisa de imagens em tempo real no Google Images. Os resultados são expostos numa tela no meio do palco, enquanto o ator está na lateral, em frente a um microfone de pedestal. É uma figura franzina, que veste um conjunto de calça e camisa de botão de um jeans molinho. A plateia acompanha as imagens que vão surgindo a cada inserção de uma nova indicação classificatória na busca: homem, homem brasileiro, homem brasileiro nordestino, homem brasileiro nordestino pernambucano, homem brasileiro nordestino pernambucano magro, homem brasileiro nordestino pernambucano magro gay, homem brasileiro nordestino pernambucano magro gay artista.
Desde que o marcador “nordestino” é inserido na busca, constatamos a repetição de um padrão de imagens, homens vestidos com roupas de vaqueiros, o que leva o ator a questionar a si mesmo e a plateia, algumas vezes, se deveria comprar um gibão. A proposta inicial da cena, anunciada aos espectadores antes da pesquisa na internet, é a de que o ator gostaria de se reconhecer, de se ver representado.
Quais camadas semânticas essa cena pode incorporar à peça? Uma das primeiras questões é a estratégia dramatúrgica vinculada ao real. Pode inclusive parecer paradoxal: esse real é composto por um imaginário construído, neste caso da pesquisa, por imagens únicas e, muitas vezes, estereotipadas. De qualquer forma, o grupo constrói o argumento tomando como base um dado de realidade e concretude: a pesquisa no Google Images, realizada ao vivo, nos passa a sensação de veracidade, ainda que os algoritmos sejam capazes de modificar resultados. Isso desbancaria o possível contra-argumento de que aquela discussão que o ator tenta visibilizar não seja factível. Qual seria a diferença no impacto do discurso dramatúrgico se, ao invés de mostrar a pesquisa, o ator escolhesse, por exemplo, contar como é se reconhecer como um homem nordestino, adicionando camadas como a orientação sexual e a escolha por ser um artista, diante de estereótipos vinculados, neste caso, ao Nordeste?
Dependendo da qualidade desse discurso, talvez houvesse alguma mobilização afetiva no público, quiçá empatia ou identificação a partir das questões trazidas. Mas, em tempos de descredibilização e julgamentos rápidos sobre as dores que permeiam aquele que não sou eu, poderia haver quem considerasse que a discussão é, no jargão das redes sociais, “mimimi”, lamentação infundada, autoindulgência. Temos o paralelo, por exemplo, do racismo e da misoginia – quantas vezes descredibilizados? O dado de realidade exibido na tela diminui essa possibilidade e leva a discussão para além das subjetividades dos atores – embora a pesquisa só tenha sido possível a partir do mergulho na subjetividade de Bruno Parmera, ator que fez a cena, inclusive pelos marcadores que nortearam a pesquisa a partir de características que ajudariam a defini-lo.
De fato, é como se essa cena fosse capaz de justificar a existência e a relevância do espetáculo. Por que, na terceira década do século 21, faz sentido pensar sobre Nordeste? Porque, desde que o Nordeste foi “inventado”, no final da primeira década do século passado, como uma ficção que planifica as diferenças de uma região formada por nove estados (Alburquerque Júnior, 2011), poucas coisas mudaram em relação à imagem de uma suposta identidade cultural nordestina. A construção e a reprodução dessa identidade, marcada pela rigidez dos estereótipos, influenciam como a população de uma região inteira do país, a terceira maior em extensão territorial, é categorizada. Esses marcadores que, muitas vezes, resvalam para o preconceito e a xenofobia, são capazes de impactar tanto rotas coletivas quanto individuais. Há, necessariamente, disputa de poder envolvida na escolha e na manutenção dessas definições. Ao mesmo tempo, como nós, nordestinos, nos sentimos representados? Como podemos, nós mesmos, nos representarmos, inclusive, a partir da arte? Quais ambiguidades e contradições esse processo é capaz de revelar? E mais: a arte, e aqui especificamente o teatro, é capaz de provocar mudanças na “tradicional identidade nordestina”?
O historiador e professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior defende que o Nordeste se constituiu como uma produção histórica que conferiu uma série de atributos ao que seria essa região, reiteradamente caracterizada como rural, miserável, atrasada, em contraposição à modernidade e ao progresso do Sul e do Sudeste: “(…) uma identidade espacial, construída em um preciso momento histórico, final da primeira década do século passado e na segunda década, como produto do entrecruzamento de práticas e discursos ‘regionalistas’” (2011, p.33). Como a identidade é relacional (Woodward, 2014), ou seja, depende da marcação da diferença para se concretizar, somos definidos justamente por aquilo que não somos. Na dicotomia em que o Nordeste foi elaborado, que insiste num sistema de classificação de opostos, desequilíbrios de todas as ordens são acentuados, o que se reflete numa disputa de poder perdida desde a largada.
A cena da pesquisa de imagens do Magiluth constata que a associação entre a figura de um homem vestindo gibão de couro, uma vestimenta de proteção para os vaqueiros, e a indicação “homem nordestino” é uma construção fruto de uma generalização, como se o homem de gibão pudesse se configurar uma imagem-síntese desse homem, o que se mostra supostamente falso diante da incapacidade que o ator tem de se reconhecer naquele símbolo. O gibão seria um símbolo de marcação da identidade nordestina, tendo como recorte o gênero masculino. Dessa cena, podemos desdobrar discussões sobre muitos conceitos imbricados: identidade, identificação, diferença, representação, sistemas simbólicos. Entro nessa seara a partir do que escreve Stuart Hall sobre superação de conceitos como o de identidade:
(…) uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substitui-los, não existe nada a fazer senão continuar e se pensar com eles – embora agora em suas formas destotalizadas e descontruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados”. (Hall, 2014, p.104)
Concordo, de modo semelhante, com Durval Muniz de Albuquerque Júnior: “Se questionamos os conceitos de identidade, cultura, civilização, nação, região, não abandonamos o seu uso, ao contrário, fizemos questão de utilizá-lo para explicitar a que maquinaria discursiva pertencem, de que estratégias são peças” (Albuquerque Júnior, 2011, p.44).
Não existe uma só possibilidade quando pensamos no homem nordestino ou uma verdade única sobre o que seria a região Nordeste para além de um recorte geográfico, mas a homogeneização foi uma das consequências da criação dessa identidade nordestina no século passado, que aplaina as diferenças em prol de narrativas e imagens que servem à manutenção de uma estrutura social e econômica estabelecida. Possivelmente, as imagens que recriamos mentalmente quando pensamos em Nordeste são resultado de discursos estereotipados ou discriminatórios construídos ao longo das décadas a partir de muitas influências, inclusive das diversas linguagens artísticas que ajudaram a erguer uma ideia de região e sua identidade.
O que o Magiluth faz em Estudo nº1: Morte e Vida é embaralhar essas imagens que fazem parte de um sistema simbólico que representaria a identidade nordestina. O grupo não as abandona, pelo contrário, se apropria delas mostrando como a realidade – e as identidades – podem ser bem mais passíveis de complexidades e indefinidas do que as imagens prontas, muitas vezes estereotipadas, que surgem diante de uma pesquisa na internet sobre o homem nordestino. Trata-se de desmantelar uma concepção essencialista (Woodward, 2014) de identidade, um conjunto bem delimitado de características imutáveis, em tese, compartilhadas por todos que fazem parte desse cenário.
A próxima cena de Bruno Parmera é um exemplo desse embaralhamento de ideias pré-fixadas do que seria a identidade nordestina, uma elaboração complexa a partir de sistemas simbólicos referenciados pelo grupo na peça. Mesmo não acontecendo em sequência, a dramaturgia recupera a conexão com a cena anterior. O ator diz que continuou as buscas na tentativa de se reconhecer nas imagens, que visitou muitas páginas, que explorou o Google Maps do Rio Capibaribe, no Recife, a Kiribati, país da Oceania, que leu as epígrafes dos livros de João Cabral de Melo Neto, que usou todos os marcadores que poderia no Instagram até que, por fim, chegou àquele vídeo (Magiluth, 2014).
Com o telão posicionado no meio do palco, há a exibição de um vídeo no qual um cortador de cana de açúcar, trajando uniforme azul, vestimenta característica dos trabalhadores das usinas de cana, usando botas e chapéu, faz uma coreografia para Billie Jean, música de Michael Jackson, no meio do canavial[1]. Acrescentando uma camada semântica importante à encenação, o grupo projeta no vídeo a tradução da letra da canção, na qual um homem nega a paternidade de uma criança.
Em cenas anteriores, por mais de uma vez, os atores já haviam dito que aquela era uma história comum, de uma mulher que fala que está grávida e de um homem que nega a criança. A frase It´s not my son (Não é meu filho), um dos versos da música, também tinha sido repetida pelos atores. É importante explicitar que o Magiluth é um grupo formado apenas por homens na sua equipe principal, o espetáculo Estudo nº1 reúne cinco homens no palco (Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sérgio Cabral) e a discussão sobre questões relacionadas à masculinidade, pela própria imagem dos corpos em cena, nunca é descolada das montagens do grupo. Além disso, três atores do grupo são pais de crianças pequenas: Giordano Castro, pai de Gabo, Lucas Torres, pai de Inaê, e Mário Sérgio Cabral, pai de Antônia.
Há, nesse sentido, assim como na cena anterior, a provocação para pensar o recorte de gênero em relação à identidade nordestina. O que é ser um homem nordestino? O que a função da paternidade pode dizer sobre o homem nordestino? O que o trabalhador braçal do corte de cana e o artista que faz parte de um grupo de teatro podem ter em comum? Quais as expectativas, as categorizações prévias, que fazemos sobre os dois e o que acontece quando elas se mostram insuficientes?
Durante a exibição do vídeo, o ator sai do microfone, tira o tênis, levanta as meias colocando-as por cima da calça jeans, e começa a dançar, em alguns momentos reproduzindo a coreografia, noutras apenas dançando junto com o cortador de cana. No início, o ator está na frente do telão e depois atrás dele, momento em que as duas imagens, a do trabalhador e a do ator, estão lado a lado, interagindo e dividindo espaço.
Parmera então deixa a cena e volta usando as vestes de um caboclo de lança: uma grande cabeça de fitas coloridas e uma gola, bordada com lantejoulas coloridas. O caboclo de lança, personagem significativo da cultura e do carnaval pernambucano, tem origem no mito do guerreiro indígena surgido na Zona da Mata de Pernambuco e há muitas simbologias associadas a sua figura, inclusive de ordem religiosa e espiritual. Ainda hoje, muitos maracatus rurais estão sediados na Zona da Mata pernambucana.
O Magiluth leva ao palco a música pop de Michael Jackson, mas performada por um cortador de cana e por um ator vestido como caboclo de lança do maracatu rural, manifestação tradicional da cultura pernambucana. Ao invés de cristalizar um símbolo da cultura de Pernambuco, amplia possibilidades semânticas e questiona a suposta imutabilidade da identidade nordestina, numa perspectiva que está alinhada ao que diz Stuart Hall no livro Identidade e Diferença:
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação”. (Ibidem., 2014, p.108)
Do vídeo do cortador de cana que dança a música de Michael Jackson no mesmo estilo que o cantor dançava, sozinho no meio do canavial, mas sendo observado por uma plateia – já que há uma gravação caseira sendo feita, com uma câmera que em alguns momentos acompanha o movimento – podemos desdobrar ainda debates que permeiam o espetáculo. Além das discussões sobre o que seria a identidade nordestina, passando pelo questionamento de estereótipos, até questões envolvendo o trabalho, inclusive o trabalho no campo e o trabalho braçal, sobre o uso da terra e o latifúndio, debates ambientais relacionados ao corte da cana, ao patriarcado, ao machismo, à masculinidade, à cultura tradicional popular versus a cultura pop, ao preconceito em diversos níveis.
Os fracassos do Nordeste e de quase todo o mundo
O poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), foi disparador e inspiração para Estudo nº1: morte e vida, espetáculo que começou a ser idealizado no final de 2019, mas esbarrou nas impossibilidades que vieram pela pandemia mundial de covid-19 a partir de março do ano seguinte. Em janeiro de 2022, Estudo nº1: Morte e Vida, primeiro espetáculo presencial do grupo pós-isolamento social estreou no Sesc Ipiranga, em São Paulo. A criação, a realização e a dramaturgia são assinadas pelo Magiluth. A direção é de Luiz Fernando Marques, parceiro recorrente do grupo desde Aquilo que o meu olhar guardou para você (2012) e a assistência de direção e direção musical são de Rodrigo Mercadante.
Estudo nº1 é resultado do fracasso e da arrogância, explicita Giordano Castro na dramaturgia (Magiluth, 2024). Mas a indefinição, a respeito de que fracasso ou arrogância o grupo se refere, abre possibilidades de associação e interpretação que vão se desdobrando ao longo do espetáculo diante das questões que o texto suscita. O fracasso da fome? A arrogância de menosprezar a crise climática global? O fracasso do drama dos refugiados ao redor do mundo? A arrogância do latifúndio? O fracasso das relações trabalhistas? A arrogância do estereótipo?
O espetáculo do Magiluth não é sobre o Nordeste explicitamente, mas, a meu ver, é totalmente sobre o Nordeste: um emaranhado sensível que coloca em perspectiva textos, imagens e símbolos tradicionalmente vinculados à região, questionando não só a pertinência, assim como a manutenção dessa representação simbólica. Os temas candentes do poema de João Cabral de Melo Neto estão no trabalho: seca, migração, fome, miséria, mas há uma tentativa de friccionar a forma como essas questões são encaradas pela sociedade. Por vezes, os procedimentos das cenas explicitam as visões estereotipadas e a vinculação imediata de problemas sociais ao Nordeste, como se fossem exclusividade da região, características naturais e imutáveis.
É o caso, por exemplo, dos temas da migração e da seca, fundantes do poema de João Cabral de Melo Neto, a trajetória do retirante do Sertão ao Litoral, abordada aqui também por outro viés: as migrações motivadas por questões climáticas que se espraiam ao redor do mundo – e não só no Nordeste do Brasil. O Magiluth inclui na encenação o tema da crise climática e o quanto as mudanças por conta do aquecimento global impactam os movimentos de migração contemporâneos. O grupo agrega à dramaturgia trechos do episódio “Já ouviu falar dos refugiados do clima?[2]”, de 5 de fevereiro de 2020, do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo, reproduzido para o público no teatro.
Se um conjunto de representações simbólicas, que inclui desde publicações de imprensa a obras de arte, passando pela política e a chamada “indústria da seca”, plasmou no imaginário brasileiro a ideia de que a seca é um problema restrito ao Nordeste e o estereótipo do retirante nordestino, ‘pele e osso’ e que morre de fome e de sede, ampliar esse olhar discursivo para o refugiado ambiental desloca na encenação a expectativa atrelada a Morte e Vida Severina.
A partir do podcast, a peça leva a questão da migração provocada pelos fenômenos climáticos para outros territórios do mundo e, ao longo da montagem, paralelos entre a visão tradicional do retirante e as discussões ambientais e climáticas podem ser tecidos, dando ciência da dimensão do problema na contemporaneidade e do quanto estamos acostumados à narrativa construída do retirante miserável no Nordeste, que se perpetua ainda hoje. Um dos exemplos do podcast, citado na dramaturgia ao longo de toda a montagem, é Kiribati, um país de 116 mil habitantes, na Oceania, que não possui fronteiras terrestres. Em 50 anos, Kiribati pode se tornar um território inabitável por conta do aumento do nível dos oceanos provocado pelo aquecimento global. Um trecho do podcast tratando sobre Kiribati é ouvido pelo espectador numa das primeiras cenas da montagem e depois as menções ao país, inclusive à sua bandeira, utilizada num dos cartazes da peça, são distribuídas ao longo da encenação, principalmente quando os atores trazem novamente as questões climáticas.
Em se tratando de uma montagem inspirada em Morte e Vida Severina, essa aproximação conceitual entre Kiribati, país de onde os seus habitantes precisarão migrar por conta do aumento do nível do mar, e o Sertão nordestino, pode se expandir em múltiplas metáforas. Desde a profecia feita por Antônio Conselheiro de que o sertão viraria mar até a tentativa de materialização de espaços desconhecidos, indefinidos: tanto Kiribati, um país da Oceania que provavelmente antes do podcast ou do espetáculo poucos espectadores da peça tinham ouvido falar, quanto o Sertão, são esses territórios distantes, espaços abertos à imaginação, cujas imagens precisam ser materializadas para que suas construções conceituais possam ser erguidas.
Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, os romances regionalistas de 1930, pelos quais João Cabral de Melo Neto foi influenciado, principalmente pela obra de Graciliano Ramos, instituíram imagens cristalizadas da seca e, consequentemente, do Sertão:
Nordeste do fogo, da brasa, da cinza e do cinza, da galharia negra e morta, do céu transparente, da vegetação agressiva, espinhosa, onde só o mandacaru e o papagaio são verdes. Nordeste das cobras, da luz que cega, da poeira, da terra gretada, das ossadas de boi espalhadas pelo chão, dos urubus, da loucura, da prostituição, dos retirantes puxando jumentos, das mulheres com trouxas na cabeça trazendo pelas mãos meninos magros e barrigudos. Nordeste da despedida dolorosa da terra, de seus animais de estimação, da antropofagia. Nordeste da miséria, da fome, da sede, da fuga para a detestada zona da cana ou para o Sul”. (Alburquerque Júnior, 2011, p.139)
Os universos simbólicos vão sendo misturados e contrapostos em camadas e suportes numa polifonia de sons, imagens e informações. Na primeira cena em que um trecho do podcast é reproduzido, Mário Sérgio Cabral está sugerindo como o espetáculo poderia começar. O ator narra como a cena supostamente seria feita, enquanto ela está acontecendo: conta que planeja uma cena longa, entre oito e nove minutos, que todo mundo gosta de ouvir podcast hoje em dia, e que este episódio foi muito importante para o grupo ao longo de todo o processo de montagem da peça. Diz ainda que gostaria que a cena pudesse falar sobre as problemáticas envolvendo a produção de jeans em Toritama, conhecida como “a capital do jeans”, cidade localizada no Agreste pernambucano.
Além da voz do ator, que vai ficando cada vez mais alta, a cena mistura vários recortes de áudios, que vão se sucedendo num ritmo frenético crescente. Enquanto o ator narra, o público escuta um dos trechos do podcast sobre Kiribati, falando como o país está sendo afetado pela falta de água potável e pelas dificuldades na agricultura. Seguem-se trechos do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar[3] (2019), de Marcelo Gomes, com áudios de moradores de Toritama, cidade de pouco mais de 47 mil habitantes que, de acordo com dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Micro Empresas (Sebrae), de 2013, é responsável por 16% da produção nacional de peças jeans, ficando atrás apenas da região do Brás, na cidade de São Paulo, e lida com questões sociais, relacionadas principalmente às longas jornadas de trabalho autônomo que pagam centavos de real por cada peça produzida, cada botão pregado, e ambientais, diante da necessidade da lavagem do jeans, uma das etapas do seu processo de produção.
O aboio, canto típico dos vaqueiros, é entremeado pela voz do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (2019-2021) durante uma reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril de 2020, afirmando que eles, os representantes do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, precisavam aproveitar o momento que o país atravessava, a crise sanitária de covid-19, para “passar a boiada”, flexibilizando as legislações ambientais no Brasil[4]. Um trecho da música Funeral de um lavrador, de Chico Buarque, entra na edição.
Nessa mesma cena, há ainda um corte de uma entrevista[5] do então candidato à presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, nordestino, concedida no dia 2 de dezembro de 2021. Ouvimos: “E pobre pode comer camarão?”. Lula responde: “Pode e deve. Até porque é ele quem pega. Pega camarão, produz carro. O pobre tem direito àquilo que produz”. A situação do trabalho e os direitos do trabalhador no Brasil são temas do espetáculo abordados também em cenas adiante a partir de exemplos e perspectivas distintas, como as questões trazidas a partir do caso de Toritama.
A multiplicidade de estímulos conta ainda com as pesquisas no Google feitas repetidamente, as imagens e informações sendo exibidas no telão a cada novo comando no buscador, inclusive imagens do Google Maps de mapas que podem ser de Kiribati, de São Paulo ou do Recife.
Estudo nº1: Morte e Vida é resultado do fracasso e da arrogância, como afirma a dramaturgia. Um fracasso que é do Nordeste e de quem vive aqui, mas que é compartilhado por quase todos do planeta, de Recife a Kiribati. Tecendo aproximações semânticas, o Magiluth complexifica as representações da identidade nordestina, abordando criticamente as narrativas e imagens associadas como naturais à região. A intenção não é necessariamente criar novas identidades, pelo menos não nos moldes da perspectiva essencialista, mas assumir a pluralidade, as fraturas e as ressignificações. Entendendo o Nordeste como uma construção ficcionalizada, erguida num determinado momento histórico, a partir de uma série de circunstâncias, o que se sobressai no espetáculo é a possibilidade de quebra de expectativas e de ampliação de perspectivas.
Referências
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed. Petrópolis – Rj: Editora Vozes, 2014.
MAGILUTH. Estudo nº1: morte e vida. Natal: Fortunella, 2024.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed. Petrópolis – Rj: Editora Vozes, 2014.
Notas de Rodapé
[1] O vídeo intitulado Michael Jackson do Canavial foi postado em 2012 e está disponível AQUI
[2] Para ouvir o podcast, acesse AQUI.
[3] A partir das lembranças de infância do seu diretor, Marcelo Gomes, que visitava a cidade com o pai, o filme mostra as mudanças na paisagem de Toritama com a indústria do jeans, que monopoliza a economia da região. Ouvindo depoimentos dos moradores, o filme expõe o orgulho daqueles que trabalham nos quintais de suas casas, em pequenas facções, e se dizem felizes por serem “donos” dos seus tempos, ainda que suas falas revelem jornadas extenuantes, e terem a possibilidade de lucrar mais a partir do aumento da produtividade, já que os valores são pagos por peça. O filme não discute questões ambientais vinculadas à produção do jeans na cidade.