Crítica – Puro Lixo | Eu comeria todo o Puro Lixo
Imagens – Ana Araújo
Por Durval Cristóvão
Professor de Teatro e Filosofia, Ator-Pedagogo, Encenador-Pedagogo e Coordenador do Núcleo de Teatro Experimental (NUTE / Centro Cultural Benfica)
A verdadeira comédia não nos diverte;
ela nos coloca na inquietante alegria
de ter de rir
da obscenidade do real
Alain Badiou
O quê, do Vivencial Diversiones, ainda acena para nós? O espetáculo Puro Lixo, de Antonio Cadengue, nos ajuda a responder a essa questão. No momento, para tudo que diga respeito ao teatro, creio, “a universalidade é o local a que nos devemos dirigir”, a frase é do dramaturgo francês Henry Becque, mas poderia ser minha.
Luís Reis trabalhou com um livro de história do teatro, escrito por ele, debaixo do braço esquerdo, e com um jornal do dia, fresquinho, debaixo do outro braço, o direito. Os atores, a cada apresentação, colaboram com a escritura da peça, pois, improvisam os textos com base em situação dramática sugerida pelo dramaturgo.
Há pudores na cena que interessam à encenação e à dramaturgia. O pudor que gostaria de destacar é o do politicamente correto, que interrompe e censura a escritura cênica e dramática. Considero um ponto alto do trabalho. Enquanto a plateia ouve atenta e emocionada o discurso em defesa das minorias, das policialescas minorias, que, por vezes, censuram as criações artísticas com certos exageros, eu ria secretamente. Pura ironia, puro teatro. O efeito melodramático, dado pela leitura de uma carta escrita pelo dramaturgo, comove a plateia e me deixa extasiado. Na carta, o dramaturgo procura solucionar um problema enfrentado pelo elenco durante os ensaios: como representar um negro que sodomiza e humilha michês brancos? A cena é narrada e nos obriga a uma encenação virtual.
É pelo princípio de delicadeza que há no deboche (Barthes) e pela imaginação que as bichas podem fugir ao espaço, ao tempo, à repressão, às presenças opacas, à morte, à vida, aos conflitos da existência e à todas as contradições. A fantasia veste as vivecas, as bichas, os bichos, os caras, as rachas, as sapas, os cis… a fantasia nos veste. No imaginário, as bichas estão seguras, pois ainda não há um aporte de realidade consolidado para os existires que escapam às condições de pertencimento limitadoras.
Que nossa senhora dos cílios postiços e das sobrancelhas arqueadas dê forças e permita que as bichas sejam sempre as que riem de si, as que se desconstroem, as que teatram. E que nós, bichas ou não, aprendamos sempre com elas a transbordar. Deixo aqui um recado: “Sede apenas o vosso rosto. Andai no limiar. Não permaneçais os sujeitos das vossas propriedades ou faculdades, não permaneçais sob elas, mas andai com elas, nelas, além delas” (Giorgio Agamben).
Sobre a performance dos atores, gostaria de ressaltar que o espaço que fica entre o rosto e a máscara, que revela o ator e o personagem, na encenação de Antonio Cadengue, se dilata e embaralha essas e outras fronteiras. No elenco, Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha. O espetáculo está em cartaz no teatro Hermilo Borba Filho até o próximo final de semana.
Queridos, eu comeria todos vocês.
Recife, 27 de agosto de 2016