Crítica – Parahyba Rio Mulher | O pessoal é político?
Imagem – Morgana Narjara
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE) e crítica teatral
O pessoal é político?
Em 1969, Carol Hanisch1 disse que sim. Tecendo comentários sobre sua participação em grupos terapêuticos, ela refletiu sobre como suas ações cotidianas e seus “problemas pessoais” são problemas políticos. Sendo assim, assumir os cabelos crespos é um problema pessoal? E político? Identificar-se negra, é uma questão pessoal? E política? Casar ou não casar, é político, pessoal? Ser mãe, trabalhadora, itinerante, é uma questão política ou pessoal? Tencionando os temas do público e privado, Parahyba Rio Mulher é sobre várias de nós, mulheres, com nossas subjetividades, complexidades, demandas, alegrias e dores.
O título da performance de rua marca a territorialidade e a(s) identidade(s) da apresentação. Mulheres. Parahybanas. Em busca de (re)escreverem suas histórias e trajetórias, trazem a tona um episódio importante do Brasil Republicano: o assassinato de João Pessoa, que é apontado, pela antiga historiografia, como o estopim da ascensão do governo de Getúlio Vargas, que se inicia em 1930. Nesse evento, aquilo que seria as disputas de poder entre os homens políticos da época, é suprimido pela narrativa que culpabiliza uma mulher. Anayde Beiriz, escritora e professora, companheira de João Dantas, tem suas cartas pessoais endereçadas ao jornalista expostas no jornal da cidade pelo seu opositor político, João Pessoa, à título de vingança. Os homens entram para a História. Ela termina sua vida aos 25 anos, no Recife, enterrada como indigente. Quantas de nós ainda morrem? O rio que corre a experiência feminina é vermelho. De sangue. Anônimas, invisibilizadas, maltratadas, violentadas. Quantas dessas mortes nos atravessam?
No espaço escolhido pela curadoria do Usina Teatral 2019, a Praça Padre Henrique, para a apresentação da performance de Cely Farias, Jinarla Pereira, Kassandra Brandão e Natália Sá, redefiniu-se, com o fazer teatral, naqueles minutos, o cotidiano de mulheres da platéia que, em sua maioria, convivem com uma cidade que as fazem ter medo e angústia. Na dramaturgia, expondo suas inquietações pessoais, cada atriz desenvolveu sua partitura autobiográfica, que se entrecruzam com dados estatísticos do feminicídio, casos de violência contra a mulher e a história de Anayde Beiriz. Então, o que parece ser pequeno, no plano do individual ou do âmbito privado, como o desejo de levar uma vida menos atarefada, ou o fato de escutar o que deve ou não fazer, desde a infância, assim como evocar as memórias de suas avós, passam a criar uma rede de cenas corriqueiras que, em fragmentos, apresenta o machismo que aniquila as subjetividades e as vidas femininas.
Estar na rua parece ser um instrumento de luta para as atrizes desta performance. Elas usam a cidade como forma de se pronunciar diante de tudo que lhes toca ou lhes aflige, abrindo caminhos, a partir de suas escolhas estéticas e poéticas, para que outras mulheres se identifiquem com suas narrativas e passem a refletir sobre tais situações. Em uma das partes da intervenção, por exemplo, as atrizes contam histórias de suas avós, nos entregam objetos que simbolizam essas mulheres ancestrais e nos convidam a também contar “uma história de vó”. A criação artística, então, se dá na polifonia, onde as autobiografias das performers passam a pluralizar as representações sobre as mulheres e as possibilidades de indagar-se sobre os comportamentos esperados pela sociedade sobre esses corpos, que também se atualiza com as narrativas das mulheres presentes.
Nesse sentido, ao construírem um espaço de afeto, elas se aproximam do público remexendo nossas memórias, invocando nossas próprias histórias e promovendo momentos de pertencimento e integração entre todas, ainda que as experiências sejam das mais diversas. E é nesse espaço da afetividade e dos encontros que se desenvolve os discursos políticos de denuncias sobre questões ligadas a(s) vida(s) das mulheres, abrindo janelas para a conscientização e o auto-conhecimento.
O que fica emaranhado na construção da intervenção é como essas micro-histórias muito falam sobre as estruturas patriarcal, misógina, sexista e racista que desembocam nas violências mais diversas. As narrativas de empoderamento pessoal, me parece, são utilizadas como ferramentas para a superação das questões de gênero, segundo a construção da performance. Feminicídio, direito de escolha, tripla jornada, identidades: todas esses temas são pincelados e ressignificados na performance artística, como forma de redesenhar as relações de gênero e reivindicar para si, outros lugares.
Entendendo o pessoal como político, no entanto, talvez fosse preciso aprofundar na performance um pouco mais sobre as discussões de como essas dimensões do particular dialogam com o político, portanto social, e refletir, quem sabe, sobre como o empoderamento feminino, numa perspectiva individual, possibilita (ou interfere) numa ação coletiva2 das mulheres. Tais reflexões se inserem nas tensões entre as perspectivas de um feminismo liberal e o feminismo interseccional que aponta o primeiro como um discurso homogeneizante, pois não considera os marcadores de classe, de raça e de sexualidade, e que tira de si a responsabilidade coletiva para a promoção de mudanças radicais nas estruturas da sociedade, como também, majoritariamente, não abre mão de seus próprios privilégios. E digo isso, inclusive, considerando um momento da performance em que Jinarla Pereira, em sua partitura, aponta sobre a ausência de outros corpos (dissidentes) de mulheres em cena. O que fazer com isso, então, numa perspectiva coletiva, política, estética e poética?
No mais, Parahyba Rio Mulher se insere na tentativa de romper os silêncios impostos sob nossos corpos. E, por fim, traz em sua estética uma função formativa, pedagógica e comunicadora sobre as questões de gênero para seus públicos diversos, com uma linguagem direta e sensível, que aproxima fatos, histórias, registros, memórias como forma de reinventar as relações de gênero.
Sim, o pessoal é político.
Referências Bibliográficas
ABUJAMR, M. (2013). A alma, o olho, a mão ou o uso da autobiografia no teatro. Sala Preta, 13(2), 72-85. (acesse AQUI)
HANISCH, Carol. O pessoal é político. 1969. (acesse AQUI)
HOOKS, bell. Mulheres Negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro – abril de 2015, pp. 193-210. (acesse AQUI)
Notas de Rodapé
1 Carol Hanisch é uma jornalista estadunidense que, nos anos 60, ficou conhecida pelo protesto contra o concurso Miss América. Em 1969, publicou o ensaio The Personal is Political.
2 No texto Mulheres negras: moldando a teoria feminista, bell hooks, ao produzir reflexões sobre o feminismo moderno, aponta que foi produzido ao longo do século XX um discurso feminista que não apontava as opressões como algo imbricado nas categorias de gênero, classe e raça, privilegiando as mulheres brancas. Nesse sentido, na busca de uma mudança radical no quadro das relações de gênero, afirma que “a formação de uma teoria e uma práxis feministas libertadoras é de responsabilidade coletiva, uma responsabilidade que deve ser compartilhada”.