Crítica – Deslenhar | Como medir o tempo do gosto de manga na boca?

Imagem – Tuca Soares
Por Liana Gesteira
Pesquisadora do Acervo RecorDança e Artista do Coletivo Lugar Comum
Escrever sobre o espetáculo Deslenhar me provoca a pensar sobre outras maneiras de perceber o tempo. Transitar temporalidades. O efêmero e o eterno a um só tempo. Deslocar por narrativas não cronológicas de vidas, co-criadas pelas imaginações e sensações do público.
O trabalho foi apresentado durante o Usina Teatral, evento realizado pelo Sesc Santa Rita em setembro de 2019, início de primavera. Pude acompanhar todo o evento, e os debates e espetáculos me trouxeram como sensação um sentimento constante de deslocamento, por trazer frequentemente questionamentos sobre o lugar do teatro, seja um lugar físico, ou político, ou estético. Parecia um terreno movediço para deslocar reflexões sobre o fazer teatral, suas possibilidades e fronteiras.
E esse sentido de deslocamento se faz presente no espetáculo Deslenhar, pela maneira em que o grupo Teatro Miçanga propõe em sua dramaturgia outra possibilidade de vivenciar o tempo. O trabalho conta fragmentos da história de Dona Eterninha e Seu Perpétuo, inspirada no conto A Fogueira, do escritor moçambicano Mia Couto.

Amanda Pegado em ‘Deslenhar’ | Imagem – Leandro Lima | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um palco escuro, em que se vê uma mulher com roupas brancas segurando um candeeiro aceso. Ao fundo, duas pessoas em meio à penumbra.
Como lembranças que vão emergindo da memória, as cenas vão acontecendo num fluxo não linear de narrativas. O prenúncio de uma morte tensiona o fio que conduz o espectador a enveredar por diferentes momentos da vida compartilhada pelos personagens Dona Eterninha e Seu Perpétuo. As mudanças recorrentes das temporalidades dessa história vão deslocando o público para outras maneiras de encarar a passagem do tempo.
A noção de tempo é diversa a partir de diferentes cosmovisões. Esse tempo Chronos, cronológico, que costumamos lidar, é uma referência ocidental, que entende o tempo como sequencial, uma sucessão de eventos em uma ordem linear. Já o Kairós é o tempo como algo não previsível, não controlável, um tempo que cada coisa tem e precisa para acontecer.
Tendo em mente a diversidade de culturas que convivem neste mundo, cada uma delas tem maneiras singulares de lidar com o tempo e seus significados. Existem tempos cíclicos, temporalidades em espiral, o sonho como um outro tempo, a natureza e suas intempéries. A medição do tempo reflete uma maneira de estar no mundo e pensá-lo.
Deslenhar traz o prefixo “des”, que se refere a uma ação contrária; nesse caso, quase que um desfazer. O “des” propositadamente nos desloca para um tempo antes, como um reverso. Deslenhar nos propõe refazer o tempo, numa outra lógica.
O espaço do espetáculo é delimitado pelo público sentado ao redor do lugar onde as cenas acontecem. Uma roda, onde todo mundo possa se ver, onde o tempo pode ser circular. Assisti a esta peça duas vezes: em datas e espaços diferentes. Curiosamente, ao final da segunda apresentação, me dei conta que me sentei no exato mesmo lugar em que assisti na primeira vez. O tempo da magia se fez. Mas obviamente não era o mesmo lugar, nem eu era a mesma. Tudo era diferente.

Fernando Rybka em ‘Deslenhar’ | Imagem – Tuca Soares | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de uma sala em penumbra. Do lado direito, pessoas com idades, etnias e roupas distintas estão sentadas em cadeiras e no chão assistem a um espetáculo. No lado esquerdo, um ator, homem branco, está sentado no chão olhando para as pessoas.
Deslenhar acontece num tempo do artesanal, com cenários construídos na labuta da imaginação, espaços criados pelas palavras, amparado por poucos artefatos cênicos. Revela histórias a partir de textos, músicas, tato. Tais recursos não são necessariamente novidade, mas foram articulados nesta peça de maneira singular, potencializando uma dramaturgia dos vínculos, pelo tempo. Seja pela troca de olhares entre os espectadores, seja por uma música cantada conjuntamente, seja pelo calor do toque.
A intimidade entre os atores Amanda Pegado, André Alencar e Fernando Rybka também potencializa esse sentimento de vínculo. O afeto que os alinha em cena nos atravessa, nos toca, como um carinho. O afeto também tem seus tempos. Visibiliza uma construção conjunta, um vínculo que se cria na convivência e dá a ver sua intensidade. Quanto tempo precisamos para criar um vínculo? Existe medida para isso?
Deslenhar tem 45 min de duração. Para mim, o trabalho propôs uma degustação dos tempos. Deu vontade de fiar mais tempo. Fui embora cantarolando a música da peça internamente, com ela vibrando no peito. Parecia com o gosto de manga que fica na boca ainda um tempo após ter sido saboreada.
Imagino que o Teatro Miçanga talvez nos proponha um tempo mais de perto, esse dos vínculos. O tempo que se dá entre as coisas. Sai do espetáculo refletindo sobre qual tempo está regendo nossos cotidianos e nossas relações sociais. Um questionamento tão ingênuo quanto político. Uma pergunta para nosso pouco tempo de cada dia.
Referências
PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Rev. Bras. Ci. Soc, São Paulo, vol.16, no.47, oct. 2001.