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Home›.Tudo›#14 Confrontos | Traveco-Terrorismo

#14 Confrontos | Traveco-Terrorismo

Por 4 Parede
13 de novembro de 2019
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Por Tertuliana Lustosa[1]

Pesquisadora, professora, DJ e produtora de Funk 150BPM, artista visual e escritora

 

Fui convidada através de uma mensagem no Instagram para publicar este presente texto na revista digital Quarta Parede, cujos curadores pesquisaram o meu texto publicado originalmente na Revista Concinnitas/UERJ, o “Manifesto traveco-terrorista”. A minha proposta diante do convite foi de organizar uma espécie de mini dossiê com alguns desdobramentos da minha escrita para além da literatura acadêmica, incluindo meus trabalhos com ficção e literatura, arte contemporânea e no mundo da música, que são outras áreas minhas de atuação.

Para começar, considerei importante trazer um trecho da introdução do Manifesto, que, de algum modo, sintetiza meus pensamentos sobre apropriação e exotificação do outro com um olhar prático e da experiência.

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No bairro carioca da Lapa, localizada na estreita Rua Moraes e Vale, uma casa chama atenção pelas suas paredes cobertas por frases e versos de resistência e pela bandeira do orgulho Trans em uma das janelas. Lá, a organização coletiva de pessoas trans e colaboradores da causa permitiu a existência da CasaNem, um espaço ocupado e gerido pela força daqueles que vivem cotidianamente vulnerabilidades sociais. Desde fevereiro de 2016, a CasaNem abriga pessoas em marginalidade de gênero e socioeconômica, promovendo, no local, peças, ações voltadas para pessoas trans, além do curso de educação e pré-vestibular PreparaNem.

No meio de uma das reuniões para pensar a agenda de festas, oficinas e debates que aconteceriam na casa, dois jornalistas nos interrompem para fazer uma proposta. A ideia que nos traziam era de um documentário que visava, com “todas as melhores intenções”, entrevistar nossas mães (sobretudo, aquelas que não nos aceitavam). Lembrei-me de como as histórias de violência cotidianas das pessoas trans transformam-se, tantas vezes, em dados frios, em imagens espetaculares e em projetos que não nos beneficiam efetivamente. Nas palavras dessas duas pessoas havia erros de pronome, negligências ao histórico de abandono e instabilidade emocional entre pessoas trans e seus parentes biológicos. A meu ver, não éramos, para eles, um coletivo de afetividades e cooperativismo, mas sim ratos de laboratório.

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É urgente para alguns corpos relatar as suas realidades, considerando intensidades sensitivas, vozes e escutas, tensões e paralisias. A possibilidade de escrita sobre minhas vivências e epistemes aglutinam-se às ancestralidades das que já lutaram muito antes de mim, pessoas como Indianara Siqueira, Cláudia Rodríguez e Alessandra Ramos. Sei que foi duro que todas elas existissem e construíssem os seus corpos pra para que eu hoje tivesse alguns direitos e algumas possibilidades de vivência. Muitas travestis foram expulsas de diversos espaços, começando por suas casas, foram estupradas, tiveram seus corpos impedidos, distorcidos, invadidos, destroçados e mortos.

No intuito de criar possibilidades de contato com pessoas que vivem ou não as poesias da vida trans – odiadas e silenciadas há tanto tempo – e também de repensar as leituras que se comunicam com as precariedades, tive a ideia de retraçar a história da minha própria vida com todos os livros do mundo e de reinventar os livros sujando-os com a poeira dos meus pés. Nesse processo de refração escrita, propus-me, como ponto de partida, a reescrever o “Manifesto Contrassexual” de Paul Preciado, dentro de um processo de texto-transição.

Como dispositivo tático, hormonizei bastante e operei cirurgicamente algumas das dimensões epistemicidas, em que seria preciso dizer mais ou desdizer algumas coisas para transformá-las em possibilidade de fuga da subalternidade. Aqui, o tom de manifesto acabou fadado ao riso proposital, e não se tratava de tecer pensamentos nos esquemas da paródia pelo caricato ou da antropofagia, pois o saber concatenado ao corpo precisa retirar-se das amarras coloniais do nacionalismo, da vanguarda e do fetichismo. Era sacrifício também, só que não do mote “purista” da cultura do outro. Penso tratar-se, mais certamente, do ato do terrorismo – aquele que ainda incomoda o reinado capitalista. Terrorismo contra os apagamentos promovidos pelos impérios de discursos afiados e que fazem todo o sentido, mas que, na prática, não reconciliam as opressões de muitas de nós.

Partindo dessa demanda por releituras decoloniais dos discursos e epistemicídios euroestadunidenses e cisheteronormativos, o meu desabafo – traveco-terrorista – não age ausente das intersubjetividades e diversidades nos fluxos históricos de cada corpo. Como as escavações e as autópsias auto-corporais não são capazes de incidir sobre outros corpos de forma universal e generalizada, elas se pactuam, nesse texto, com os meus derramamentos de corpo travesti. Aliás, germinando da traveca que sou para enveredar minhas relações de alteridade com outros corpos (que não podem mais ser separados segundo os critérios “dentro” ou “fora”, senão incluídos numa conectividade interseccional).

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O Manifesto foi escrito no momento do início da minha transição e carrega uma voz muito marcada pelos momentos de transfobia que estava vivendo e que ainda não sabia como lidar. Eu fiz uma performance para o programa da TV Fashion do Dudu Bertolini, intitulada “Manifesto Traveco-terrorista”, que depois eu incluí em uma produção audiovisual intitulada “Cordel Pornô”, disponível AQUI.

Com o passar dos anos da publicação do texto (2016), tive a oportunidade de acompanhar algumas de suas circulações, e uma delas foi o Seminário Traveco, do curso de comunicação social da UERJ, ocasião em que fui convidada pelas organizadoras, assisti e comentei a apresentação. Na fala de Juliana Nascimento, que apresentava o seminário, algumas observações sobre um dos parágrafos que eu tinha escrito me fizeram refletir sobre como talvez aquele tenha sido a parte do texto que mais deixou a desejar, primeiro por eu ter utilizado o termo escrava, e não escravizada, que na época que escrevi ainda não tinha discutido sobre, e segundo por eu não ter aprofundado mais um pouco nos temas da Xica Manicongo e do pajubá. Então quando fui convidada para publicar o Manifesto de forma impressa, reescrevi essa parte do texto:

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Muitas das figuras brasileiras que transgrediram práticas de gênero instituídas foram pouco lembradas pela história, como foi o caso de Xica Manicongo, na história do Brasil colonial. Xica foi escravizada no final do século XVI, em na cidade de Salvador e foi condenada à morte por não aceitar se vestir como homem. Jaqueline Gomes de Jesus retoma sua memória em seu artigo…

Havia na capital do país, São Salvador da Bahia de Todos os Santos, também conhecida, posteriormente, como Cidade da Bahia ou simplesmente Salvador, então colônia de Portugal, nos idos de 1591, uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro, a qual chamamos de Xica Manicongo. O registro da existência de Xica Manicongo se deve à extensa pesquisa de Luiz Mott sobre a perseguição aos chamados “sodomitas” no Brasil, a partir da documentação inquisitorial encontrada no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. Mais uma Francisca entre tantas que lutam diuturnamente para sobreviver, em meio ao ódio e o preconceito que nos cerca, ontem e hoje. Manicongo era, originalmente, um título para governantes do Reino do Congo (Mwene Kongo, literalmente, Senhor do Congo), que foi transformado na corruptela que conhecemos pelos portugueses, para designar pessoas oriundas da região (Ou seria Xica uma rainha?). Coberta com um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbanda3 de sua Terra Natal, e apesar de sua condição desumanizada, imposta pelos homens brancos, os candangos, ela andava sobranceira por toda Cidade Baixa, às vezes subindo para a Cidade Alta e voltando, a serviço do seu senhor, ou só passeando, inclusive para encontrar os seus homens. Diz-se que Xica era conhecida por ser muito namoradeira. Mesmo no inferno da escravidão havia frestas, sempre escavadas pela gente negra. (JESUS, 2019, p. 251)

Os fluxos de identidade que construíram historicamente o ser “travesti” são atravessados por construções negras, indígenas e de religiosidades afro-brasileiras, entrelaçando questões étnico-raciais, de gênero e de classe. O Pajubá, linguagem baseada em diversas matrizes africanas, é utilizado como forma de resistência por bixas, sapatonas e travestis, seja para que o alibã não entenda que dele estamos falando, seja quando contamos um bafo ou quando falamos mal da tia.

As ancestralidades negras, indígenas e travestis dialogam e criam pontes através de práticas contra-hegemônicas de comunicação. Essa capoeira falada deflagra tessituras que estão além das identidades fixas de gênero e sexualidade, o que acontece, por exemplo, quando o ser “bixa” não corresponde a ser homossexual, contemplando performatividades não binárias e de muitas pessoas travestis. No Pajubá, as palavras se reinventam a cada momento, e se transformam através da oralidade, de modo que um bordão se transforma em significado entre um grupo e uma palavra se transforma em outra para confundir, como por exemplo uo que já se tornou mais comum, vira ueudrem, uossime…

Mais especificamente com relação às pautas trans, a possibilidade de circulação da militância transfeminista entre os diversos meios de atuação na vida é preciosa. Tendo em vista a ineficácia do sistema de representatividade nos espaços de privilégio políticos e econômicos da sociedade brasileira para com as questões trans, a necessidade de dissolução dos bloqueios parte de uma postura lateral de infiltração.

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Além de Xica Manicongo ser essa figura tão emblemática na história do Brasil, para mim foi também muito marcante a sua memória pois fez parte de um dos coletivos de arte que eu idealizei: o Coletivo Xica Manicongo. O coletivo levava um pouco da literatura de cordel para os espaços de arte e cultura da cidade do Rio de Janeiro; era uma forma de gerar renda para nós participantes do coletivo e rendeu belos poemas e xilogravuras.

Essas são algumas das capas dos nossos cordéis, a primeira feita por mim e por Matheusa Passareli; a segunda feita por Mayara Velozo. Ambos os cordéis trazem poemas autorais e inéditos escritos por pessoas LGBTs com vivências interseccionais, com temas como nordestinidade, travestilidade, vivência em comunidades e favelas, e militâncias negras.

Também organizei posteriormente um cordel autoral intitulado “Não se nasce mulher, torna-se traveca”, frase publicada originalmente no Manifesto. Um dos poemas do cordel, intitulado “Viva”:

Capas do cordel ‘Sertransneja’ | Imagem – Divulgação | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem em preto e branco de três capas de cordel dispostas lado a lado. Na primeira, à esquerda, uma figura feminina segura um estandarte com a inscrição ‘Sertransneja’ e, acima dela, um desenho de um sol. Na segunda capa, ao centro, uma inscrição ‘Não se nasce mulher, torna-se traveca’ está acima de um desenho, em primeiro plano, de uma pessoa que mostra seu ânus em nossa direção e, em segundo, de um mandacaru. Na terceira capa, à direita, uma inscrição ‘Xica Manicongo’ está acima de uma gravura de uma mulher negra que usa colares e adereços que lembram a cultura africana.

 

VIVA

Sobrevivi a dias de fome

Dias sem poder dormir

Dias de tiro na Terceira Guerra Mundial

Sem casa

Sem família

Sem alguém para me comunicar

Sobrevivi a estupros de mão armada

Sobrevivi a cantadas e deboches que sugavam todas as minhas energias de repente

Sobrevivi a tentativas de feminicídio

Sobrevivi a transfeminicídios

Sobrevivi a médicos que não me atenderam quando estava morrendo

Sobrevivi a tiros de quem se dizia meu aliado

Sobrevivi a Bolsonaro

Sobrevivi a dias e noites de pista sem ganhar um real

Já me prostituí por drogas

E sobrevivi a overdoses depois do programa

Sobrevivi a homens que não me assumem por eu ser quem sou

Sobrevivi a homens que me assumem por interesse e me batem e me matam

Sobrevivi a mulheres que lutam por feminismo dizerem que eu sou homem

Pior, dizerem que eu sou “o novo patriarcado”

Sobrevivi a terapias hormonais que me causaram trombose, doenças no fígado, baixa imunidade

Sobrevivi a mutilações

Sobrevivi a erros cirúrgicos que deformaram para sempre meu rosto

Sobrevivi a litros de silicone industrial que necrosaram todo o meu corpo

Sobrevivi a doenças sexualmente transmissíveis

Sobrevivi a apedrejamentos

Sobrevivi a assassinatos de 15 homens

Sobrevivi ao machismo

Sobrevivi ao racismo, xenofobia, transfobia, gordofobia

Me silenciaram

Não me ensinaram a ler

Sobrevivi à escola brasileira de torturas psicológicas e físicas

Sobrevivi à casa dos meus pais de torturas psicológicas e físicas

Sobrevivi a minha expectativa de vida medieval

Sobrevivi a falta de um emprego formal

Sobrevivi a homens que me comeram depois me assassinaram

Já fui roubada, já roubei, bati, matei

Sobrevivi aos presídios masculinos sendo uma figura feminina

Sobrevivi

Pode ter certeza que se não desapareci ainda

É porque tenho uma missão a ser cumprida

Eu me chamo TRAVESTI

Minha resposta a tudo isso é permanecer

essa cultura

viva

.

O termo “terrorismo” que utilizei provém de um discurso da Diana Torres, que fala em seu livro Pornoterrorismo: “O Pornoterrorismo é algo que pulsa, que jorra, um impulso composto de desejo e de imaginação. Assim, este livro é um relato biográfico e uma profunda reflexão em relação ao sexo, às práticas sexuais, à moral e à política. É um apelo a romper os tabus ainda em vigor em nossa sociedade.” (TORRES, 2011). No entanto, considero algumas práticas, corpas, modos de trabalho e comportamento como pornoterroristas na medida em que rompem com diversos tabus de uma sociedade machista, elitista, racista e LGBTfóbica.

O funk para mim é um desses espaços, em que vozes diversas (homens e mulheres, cis e trans, heterossexuais e LGBTs) falam sobre pau, xereca, bunda, cu, bandido, crime, dinheiro, carro, moto… Tudo isso é falado de um jeito que incomoda a burguesia, que sempre aponta o funk como machista, esquecendo que o funk é um ritmo e seu ritmo liberta o corpo, provoca a dança, a imaginação e movimenta locais periféricos e até mesmo locais de elite que vêm adotando o estilo em boates e festas particulares. Quantas vezes tive o som cortado, tive minha playlist questionada por donos de locais onde fui contratada por quem já conhecia o meu trabalho, quantas afetos deixei de ter por ser vista como puta e vulgar…

Que bom que perdi esses afetos, viu, porque sou puta e vulgar mesmo, com todo o orgulho! Uma música que fiz com a Mc Bumbum de Ouro – Vem me mamar (pode ouvir AQUI) – gosto dela porque ela é tudo que eu queria falar para vários machos escrotos que me veem como objeto: “Hoje eu vou gozar, mas não vou sentar, vou te falar uma coisa, você vai só me chupar, vem me mamar, vem me mamar, vem-vem, vem me mamar!”

Minha experiência como DJ de funk se deu sempre dentro de um universo LGBT. Comecei tocando na CasaNem, local onde era voluntária, para arrecadar fundos para manter os custos da casa: aluguel, alimentação, etc. Tive a honra de gravar alguns Mcs LGBTs bafônicos como Mc Caten, Mc Pambelli, Mc Michelle dos Caralhos, Wqueer e Kaique Theodoro.  

Em janeiro de 2019, rolou a primeira parada LGBT na Gaiola, organizado pelo DJ Renan da Penha, que está hoje preso numa sociedade que o julgou não por ser DJ mas por ser DJ negro e de favela[2]. O evento contou com presenças LGBTs como Pepita e Iasmin Turbininha.

Nesse panorama LGBT e de mulheres do funk, não poderia deixar de falar da Taísa Machado e das suas oficinas de Afrofunk, que são uma verdadeira revolução feminista corpo a corpo. Taísa também é escritora e suas palavras valem muito, pois, além de qualquer talento para a escrita, carregam vivências coletivas, que eu inclusive tive o orgulho de presenciar algumas vezes. Ela observa:

As mulheres que estão na linha de frente do movimento desde os primórdios hoje não são mais vozes isoladas. Existe uma mudança de comportamento e vários MCs estão compreendendo que um funk sem misoginia é mais gostoso de dançar, o prazer feminino não fica mais solitário num lugar de reivindicação. Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona e Valeska ensinaram direitinho. Os MCs espertos viram que “Surubinha de Leve” representava um tempo que as minas não aceitam mais, a favela entendeu o recado e está acontecendo, quem curte sabe. Os meninos estão ainda que lentamente mudando os processos de composição e as minas estão firmemente levantando a bandeira LGBT pra dentro da cena. Iasmin Turbininha já não é mais a única abertamente lésbica. São dançarinas, DJs, produtoras, geral saindo do armário, dando visibilidade pras pretas sapatão que curtem funk, sim. Sem falar na dona da porra toda: nossa pepita de ouro, Ludmilla, que desde 2018 escreve e emplaca sucessos na voz de outras funkeiras como “Cai de boca [no meu bucetão]”. Mesmo “vendendo” majoritariamente para o público hétero, também mostrou para o Brasil que o coração da mulher preta bate onde ela quiser! (MACHADO, 2019)

Além do funk, fui agraciada de encontros também pornoterroristas através de performances com corpos não cisgeneros. Uma delas foi com o Coletivo Seus Putos (RJ) e outra foi com a performance Cuceta, com Sara-Elton Panamby, que encerra o Manifesto…

Apresentação de MC Pepita no Baile da Gaiola | Imagem – Divulgação | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um palco, onde uma mulher está cantando e dança. Ela tem cabelos negros longos e usa top e calça jeans. Ao fundo, uma multidão a aplaude e tira fotos dela com seus celulares.

A corponormatividade cirúrgica me fez refletir durante muito tempo sobre como o meu corpo se modifica durante o meu processo de transição. Um antiandrógino e um estrogênio, substâncias que fazem parte da terapia hormonal utilizada por muitas pessoas trans, não foram suficientes para as demandas do meu corpo, nem mesmo cirurgias o seriam por completo. Talvez porque a experiência de gênero a que eu me submeti sempre esteve mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica-hormonal.

Aprendi que os multiversos trans possuem atravessamentos de religiosidades afro-brasileiras e de ancestralidades xamãs. Em culturas ameríndias, os papéis de gênero transitavam correntemente antes da ideia de “pecado” ser inserida pelo colonialismo e as práticas/devires corporais estavam diretamente relacionadas à espiritualidade. Os Two-spirits praticavam papéis sociais de forma não-binária em muitas das tribos norte-americanas. A pessoa por trás dos que muitos chamam de traveco faz parte de um arcabouço histórico marcado por processos civilizatórios que, para tantas culturas, estão diretamente ligadas ao apagamento das suas culturas e espiritualidades.

Catalisar as minhas frequências mortas e os meus sonhos foi algo que me encorajou a criar e intervir sobre o meu corpo com cargas energéticas além do cientificismo e do antropocentrismo. Em mente, era muito certa a recusa às ideias: de que existe um gênero apropriado para o órgão sexual; de que o sexo se baseia no prazer falocêntrico; de que a inserção social virá acompanhada da imposição de estereótipos mulher-cis/homem-cis, corpo biológico/corpo desviante; de que existe uma correspondência única entre órgão sexual, orientação sexual e identidade de gênero.

Performance ‘Cuceta’, em parceria com Sara Elton Panamby | Imagem – Helena Assanti | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de uma pessoa tatuando o desenho de uma vagina no ânus de outra pessoa.

Foi dentro de um estado de autopsia espiritual que eu imaginei a cuceta para o meu corpo, como artesanato do cu que concretizaria muito sobre o meu pensamento traveco-terrorista. O procedimento de intervenção corporal consistiu basicamente numa tatuagem/body-modification sobre a região anal e perianal, não se propondo a criar uma imagem de órgão sexual realista nem humanocentrado. Não interessava a estética, porque dentro da sua singularidade, a cuceta partia de demandas interiores que não se relacionavam diretamente aos métodos de transexualização ocidentais, como a CRS (Cirurgia de Redesignação Sexual).

Não se revertia nada do que sobre o meu corpo fora designado, nem se almejava reinserir-me em alguma polaridade homem/mulher. A modificação corpórea, conectada ao banho de alecrim com levante, possibilitou-me escutas, curas, visões e viradas importantes para o meu corpo. O gesto da ferida e da desorganização anatômica era uma tomada de ação diante das transfobias, misoginias torturas e mortes que alimentam o avanço científico da medicina ocidental.

Cuceta: deriva, vasculha, interrupção, ataque, invasão, ocupação, desocupação, prostituição, política de explosão do universal e do colonialismo. Masculinidade não corresponde a pênis ereto e o desrespeito das categorias de expressividade de gênero se dá também pelos ecos desativados: o pênis como órgão sexual feminino, o clitóris como órgão sexual masculino, a cuceta (fig. 3) em desordem. O corpo como arma. A palavra como gatilho.


Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2003.

JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVR. Rio de Janeiro: Revista Docência e Cibercultura, 2019.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami.  São Paulo: Companhia das letras, 2015

MACHADO, Taísa. O futuro é o funk. 2019. Disponível AQUI

PEREIRA, P. Entrevista Marie-Hélène/Sam Bourcier. Revista CULT. São Paulo: Editora Bregantini, ano 18, setembro 2015.

PERRA, Hija. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Salvador: Revista Periódicus, 2ª edição, novembro 2014 – abril 2015.

PRECIADO, Paul. Manifesto contrassexual. 1. Ed. São Paulo: n-1 edições, 2015.

SILVA, Sara/Elton Panamby Rosa da. Perenidades, porosidades e penetrações: [trans]versalidades pela carne. Rio de Janeiro: UERJ, 2016

TORRES, Diana. Pornoterrorismo. Barcelona: Txalaparta, 2011.


Notas de Rodapé

[1] Tertuliana Lustosa é pesquisadora, DJ e produtora de Funk 150BPM, professora de literatura, artista visual, cordelista e escritora. Ministra a oficina Escritos Trans no COART/UERJ, tendo iniciado como professora em 2015 no PreparaNemRJ, pré-vestibular para pessoas LGBT com foco na população T. Publicou o ensaio “Manifesto traveco-terrorista” na Revista Concinnitas e o ensaio “A lenda da trava leiteira” na Revista Periodicus, o conto “O narrador de Xangô” no livro “Tertúlia” e organizou o livro “Y” (2018) pela Edirota OutraLiteratura. Participou das exposições coletivas: “os corpos são as obras”, 2017, na Despina, e “A  retomada da imagem será a presença”, 2018, na Galeria Oriente. Sua arte e pesquisa articulam palavra escrita e oralidade, arte contemporânea e arte popular. É graduada no curso de História da Arte na UERJ. Nascida cidade de Corrente Piauí, crescida em Salvador BA e Teresina PI. É redatora do site www.outraliteratura.com.br

[2] Pode saber mais sobre o caso AQUI e AQUI.

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A partir da próxima semana, na sua timeline.
#4Parceria: Quer aprofundar seus conhecimentos sob #4Parceria: Quer aprofundar seus conhecimentos sobre as histórias e as estéticas dos teatros negros no Brasil? 

Estão abertas as inscrições, até o dia 13/09, para a oficina on-line Saberes Espiralares - sobre o teatro negro e a cena contemporânea preta. 

Dividida em três módulos (Escavações, Giras de Conversa e Fabulações), o formato intercala aulas expositivas, debates e rodas de conversa que serão ministrados pela pesquisadora, historiadora e crítica cultural Lorenna Rocha. 

A atividade também será realizada com a presença das artistas convidadas Raquel Franco, Íris Campos, Iara Izidoro, Naná Sodré e Guilherme Diniz. 

Não é necessário ter experiência prévia. A iniciativa é gratuita e tem incentivo do Governo do Estado de Pernambuco, por meio do Funcultura, e parceria com o @4.parede 

Garanta sua vaga! 

Link na bio. 

Serviço:
Oficina SABERES ESPIRALARES - sobre teatros negros e a cena contemporânea preta
Datas: Módulo 1 – 16/09/24 – 20/09/24; Módulo 2 (participação das convidadas) – 23/09/24 – 27/09/24; Módulo 3 – 30/09/24 - 04/10/24. Sempre de segunda a sexta-feira
Datas da participação das convidadas: Raquel Franco - 23/09/24; Íris Campos - 24/09/24; Iara Izidoro - 25/09/24; Naná Sodré - 26/09/24; Guilherme Diniz - 27/09/24
Horário: 19h às 22h
Carga horária: 45 horas – 15 encontros
Local: Plataforma Zoom (on-line)
Vagas: 30 (50% para pessoas negras, indígenas, quilombolas, 10% para pessoas LGBTTQIA+ e 10% para pessoas surdas e ensurdecidas)
Todas as aulas contarão com intérpretes de Libras
Incentivo: Governo do Estado de Pernambuco - Funcultura
Inscrições: até 13/09. Link na bio

#teatro #teatronegro #cultura #oficinas #gratuito #online #pernambuco #4parede #Funcultura #FunculturaPE #CulturaPE
#4Panorama: O MIRADA – Festival Ibero-Americano #4Panorama: O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado pelo Sesc São Paulo, ocorre de 5 a 15 de setembro de 2024, em Santos. 

A sétima edição homenageia o Peru, com onze obras, incluindo espetáculos e apresentações musicais. O evento conta com doze peças de Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, México, Portugal e Uruguai, além de treze produções brasileiras de vários estados, totalizando 33 espetáculos. 

A curadoria propõe três eixos: sonho, floresta e esperança, abordando temas como questões indígenas, decoloniais, relações com a natureza, violência, gênero, identidade, migrações e diversidade. 

Destaque para "El Teatro Es un Sueño", do grupo Yuyachkani, e "Esperanza", de Marisol Palacios e Aldo Miyashiro, que abrem o festival. Instalações como "Florestania", de Eliana Monteiro, com redes de buriti feitas por mulheres indígenas, convidam o público a vivenciar a floresta. 

Obras peruanas refletem sobre violência de gênero, educação e ativismo. O festival também inclui performances site-specific e de rua, como "A Velocidade da Luz", de Marco Canale, "PALMASOLA – uma cidade-prisão", e "Granada", da artista chilena Paula Aros Gho.

As coproduções como "G.O.L.P." e "Subterrâneo, um Musical Obscuro" exploram temas sociais e históricos, enquanto espetáculos internacionais, como "Yo Soy el Monstruo que os Habla" e "Mendoza", adaptam clássicos ao contexto latino-americano. 

Para o público infantojuvenil, obras como "O Estado do Mundo (Quando Acordas)" e "De Mãos Dadas com Minha Irmã" abordam temas contemporâneos com criatividade.

Além das estreias, o festival apresenta peças que tratam de questões indígenas, memória social, política e cultura popular, como "MONGA", "VAPOR, ocupação infiltrável", "Arqueologias do Futuro", "Esperando Godot", entre outras.

Serviço: MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, de 5 a 15 de setembro de 2024, em Santos. 

Para saber mais, acesse @sescsantos
#4Panorama: Nos dias 05, 14, 21 e 28 de setembro, #4Panorama: Nos dias 05, 14, 21 e 28 de setembro, acontece Ocupação Espaço O Poste, com programação que inclui a Gira de Diálogo com Iran Xukuru (05/09) e os espetáculos “Antígona - A Retomada” (14/09), “A Receita” (21/09) e “Brechas da Muximba” (28/09).

Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 467, Boa Vista - Recife/PE), com apoio do Programa Funarte de Apoio a Ações Continuadas 2023, promove atrações culturais que refletem vivências afropindorâmicas em sua sede, no Recife/PE. 

A Gira de Diálogo com Iran Xukuru acontece em 05/09, às 19h, com entrada gratuita. Iran Xukuru, idealizador da Escola de Vida Xukuru Ynarú da Mata, compartilhará conhecimentos sobre práticas afroindígenas, regeneração ambiental e sistemas agrícolas tradicionais.

Em 14/09, às 19h, o grupo Luz Criativa apresenta “Antígona - A Retomada”, adaptação da tragédia grega de Sófocles em formato de monólogo. Dirigido por Quiercles Santana, o espetáculo explora a resistência de uma mulher contra um sistema patriarcal opressor. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Em 21/09, às 19h, Naná Sodré apresenta “A Receita”, solo que discute violência doméstica contra mulheres negras, com direção de Samuel Santos. A peça é fundamentada na pesquisa “O Corpo Ancestral dentro da Cena Contemporânea” e utiliza treinamento de corpo e voz inspirado em entidades de Jurema, Umbanda e Candomblé. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

No dia 28/09, às 19h, ocorre a 3ª edição do projeto “Ítàn do Jovem Preto” com o espetáculo “Brechas da Muximba” do Coletivo À Margem. A peça, dirigida por Cas Almeida e Iná Paz, é um experimento cênico que mistura Teatro e Hip Hop para abordar vivências da juventude negra. Entrada gratuita mediante retirada de ingresso antecipado no Sympla.

Para saber mais, acesse @oposteoficial
#4Papo: O espetáculo MACÁRIO do brazil, dirigido #4Papo: O espetáculo MACÁRIO do brazil, dirigido por Carlos Canhameiro, estreia no TUSP Maria Antonia e segue em temporada até 1º de setembro de 2024. O trabalho revisita o clássico Macário, de Álvares de Azevedo (1831-1852), publicado postumamente em 1855. Trata-se de uma obra inacabada e a única do escritor brasileiro pensada para o teatro.

Para abordar o processo de criação da obra, o diretor Carlos Canhameiro conversou com o Quarta Parede. Confira um trecho da entrevista:

‘Macário é uma peça inacabada, publicada à revelia do autor (que morreu antes de ver qualquer de seus textos publicados). Desse modo, a forma incompleta, o texto fragmentado, com saltos geográficos, saltos temporais, são alguns dos aspectos formais que me interessaram para fazer essa montagem’

Para ler a entrevista completa, acesse o link na bio.
#4Papo: O livro Elegbára Beat – um comentário #4Papo: O livro Elegbára Beat – um comentário épico sobre o poder é fruto dos 20 anos de pesquisa de rodrigo de odé sobre as relações entre capoeira angola, teatro negro, cinema, candomblé e filosofia africana. 

Publicado pela Kitabu Editora, o texto parte da diversidade racial negra para refletir sobre as relações de poder no mundo de hoje. O autor estabelece conexões entre o mito de nascimento de Exu Elegbára e algumas tragédias recentes, como o assassinato do Mestre Moa do Katendê, o assassinato de George Floyd, a morte do menino Miguel Otávio e a pandemia de Covid-19.

Para abordar os principais temas e o processo de escrita do livro, o autor rodrigo de odé conversou com o Quarta Parede. Confira um trecho da entrevista:

‘Em Elegbára Beat, a figura de Exu também fala sobre um certo antagonismo à crença exagerada na figura da razão. Parafraseando uma ideia de Mãe Beata de Yemonjá, nossos mitos têm o mesmo poder que os deles, talvez até mais, porque são milenares. Uma vez que descobrimos que não existe uma hierarquia entre mito e razão, já que a razão também é fruto de uma mitologia, compreendemos que não faz sentido submeter o discurso de Exu ao discurso racional, tal como ele foi concebido pelo Ocidente. Nos compete, porém, aprender o que Exu nos ensina sobre a nossa razão negra’

Para ler a entrevista completa, acesse o link na bio.
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