Crítica – O dia em que os gatos aprenderam a tocar jazz | Um show de jazz encenado por gatos!
Imagem – Pedro Portugal
Por Fernanda Nascimento
Licencianda em Teatro (UFPE)
Eu, que nunca tinha assistido um show de jazz,
nunca imaginei que assistiria um show de gatos que sabiam tocar jaaaazzzzzzz.
O dia em que os gatos aprenderam a tocar jazz é inspirado no livro do cineasta carioca Pedro Henrique Barros e fruto do processo de criação compartilhada entre alunas e alunos do 4º período da Licenciatura em Teatro (UFPE), coordenado pelo Professor Luís Reis (UFPE). Esse espetáculo, voltado para o público infanto-juvenil, aponta para as violências sofridas pelas minorias políticas através dos personagens-felinos.
Assisti a peça pela segunda vez no Teatro Milton Baccarelli, agora dentro da programação da XII Semana de Cênicas. Como bem diz o título do espetáculo, percebe-se que a trama é sobre como os gatos aprenderam a tocar jazz e, talvez, a graça de tudo seja tomar conhecimento de como isso aconteceu. A história vai se desenvolvendo com a presença de um narrador, que não está presente na caixa cênica, e com os shows musicais das personagens-felinas em um ambiente que está inteiramente no clima de um jazz club.
Defrontar-se com as atrizes e os atores felinos esparramados nas poltronas da plateia ao entrar no teatro, foi como chegar em casa e ver as minhas gatas me esperando para colocar ração no pote. Mas esses gatos, na verdade, estavam esperando outra coisa: para começarem seu show, era preciso o público. Meus olhares se perdiam em admiração aos incontáveis gatos que se lambiam, espreguiçavam sem pudor ou interagiam com os espectadores enquanto aguardavam a “deixa” para subirem ao palco.
Quem convive com gatos – ou sabe, pelo menos, como eles se comportam – vai entender facilmente as ações apresentadas na peça. O medo que os felinos tinham, por exemplo, de uma simples vassoura, um objeto tão utilizado pelos humanos, era motivo de correria e alvoroço entre eles. Não duvido que os atores estavam conectados com as suas personagens, pois o espírito animal parecia nítido em cenas como essa e com a interação deles com o público, no início do espetáculo. É possível notar que houve um processo por trás de todo produto para desenvolvimento de um espírito animal, de modo distinto: tínhamos gatos dos mais preguiçosos até os mais agitados.
Aos poucos, uma cenografia idealizada com papelão, objeto amado por todos os felinos, foi criando vida em cena. Caixas de papelão compunham todo o espaço cênico e instrumentos musicais confeccionados com esse mesmo material foram utilizados pelas personagens. O cenário casava com o figurino dos gatinhos que usavam vestidos, saias longas, suspensórios e ternos, com cores que alternavam entre amarelo queimado, marrom e preto. Mesmo em harmonia, essa composição não apagava as singularidades, pois cada personagem possuía o seu jeito próprio e peculiar.
Na maioria das cenas, a iluminação era formada por refletores que nos remetiam às avenidas da cidade ou mesmo às ruelas escuras habitadas pelos gatos de rua. Para mim, o uso do camarim como um bar foi algo muito bem pensado, pois trouxe vida a esse espaço tão escondido da plateia e ao mesmo tempo tão ocupado pelos atores. Em cima da porta do camarim tinha um nome com a iluminação de cores neon como verde, azul e roxo, da mesma forma, essas cores vibravam lá dentro também. Esse recinto, com um clima noturno e aparentemente populoso, recebia o grupo de jazz criado por gatos, Musichounds, para as suas apresentações.
A sonoplastia foi idealizada para fazer com que o jazz se espalhasse pelo teatro, como se estivesse convocando os espectadores a dançar juntamente a eles. Um verdadeiro show de jazz encenado. Em determinado momento de todo esse acontecimento teatral, algumas pessoas até se sentiram à vontade de estralar os dedos em sincronia com os personagens-felinos. Apesar de trazer consigo uma temática pesada, a atmosfera descontraída da seleção de músicas e coreografias das personagens deixava uma experiência divertida para quem estava assistindo.
Não sendo um espetáculo que vi apenas uma vez, sempre é um incômodo ouvir pauladas e pisadas com violência em um animal tão indefeso que estava apenas mostrando o seu talento ao mundo. Com o decorrer das cenas, o ser humano mostra o seu pior lado quando uma gata cantora mostra o seu melhor: Augusta Valentine, logo após apresentar sua voz suave e doce num show dos Musichounds, foi morta a pauladas sem motivo algum. Diante do trágico fim da gata cantora interpretada por uma mulher trans negra, vemos mais uma vez a arte imitando a vida.
Estão satisfeitos, seres humanos?
Assim se dá o fim de outros tantos gatos que conhecemos, os marginalizados pela sociedade, encontrados mortos na sarjeta. Ouvir os miados de choro dos felinos ecoando pela caixa cênica em lamento pela perda de Augusta Valentine, é como cutucar uma ferida. E é um incômodo que tende a piorar cada vez mais quando os olhares de reprovação dos bichanos encaram o público depois que a desgraça já está feita. Dói, mas é necessário. Arrepia e perturba, mas faz nos refletir.
E então, o nome de Augusta Valentine, entrou não apenas para o Jazz Hall of Fame, mas também, para o coração de todos os espectadores que se dispuseram a assistir O dia em que os gatos aprenderam a tocar jazz. Um alívio saber, depois do debate ao fim do espetáculo, que muitos voltaram para casa com um sentimento de inquietação por terem se permitido absorver o valor simbólico da narrativa. A mim, fico com vontade de me debruçar por mais alguns minutos nesse ambiente de jazz club. E, lembremos que: se reparar, quando seu gatinho some por três dias, tem sempre um festival de jazz rolando por perto.