Crítica – Donos | Porque vocês não queriam ter nascido negros?

Imagem – Autor(a) desconhecido(a)
Por Halberys Morais de Holanda
Ator, Produtor Cultural e Graduando da Licenciatura em História (UPE)
Negristê!
O negro que habita em mim saúda o negro que habita em você!
.
.
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Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
(..)
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
Clara Nunes – Canto das três raças
Dia 04 de Novembro iniciou a XII Semana de Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco, que teve como título Teatro, Democracia e Censura, onde diversos trabalhos entre performances, espetáculos, oficinas foram apresentados durante toda a semana, do dia 04 a 08 de novembro.
Um destaque do evento foi a exposição Censurados: Atuação da Censura no Teatro Brasileiro, idealizada por André Lourenço e Iale Rodrigues, estudantes de Teatro, desdobramento de um trabalho realizado em uma disciplina do Profº Drº Rodrigo Dourado (UFPE). As imagens exibiam trabalhos que foram censurados no Brasil, entre 1965 e 2019. A produção se insere num contexto delicado para o país, que tem passado por acontecimentos como: o fim do Ministério da Cultura e cortes de verbas em leis de patrocínios e editais. Em 2019, diversos trabalhos foram censurados como Abrazo, do Clowns de Shakespeare, na Caixa Cultural (Recife), como também Caranguejo Overdrive, do Aquela Cia de Teatro, no CCBB (Rio de Janeiro).
E, iniciando a Semana de Cênicas deste ano, aconteceu a performance Donos. Às 11h da manhã, o corpo negro é levado ao escárnio do ridículo com as agressões diárias. A tentativa de poder ser quem se é e não sofrer pelo tom mais ou menos escuro de sua pele… Mas a “cor” o joga para baixo! A cor ou o preconceito? Ou o preconceito da cor que é o teu racismo?! O ato de ser negra(o) está posto na mesa e não há como fugir. Não tem como apagar as manchas da colonização, pois, os meus ainda gritam hoje por socorro. Então é preciso insurgir!
Donos retrata sobre estes que cotidianamente recebem olhares tortuosos, tem suas vozes silenciadas e são associados ao animalesco. Ainda bem que nas Universidade tem cotas para garantir sua presença, pois, se não houvesse este sistema, muitos pretos e pretas não conseguiriam adentrar as universidades devido a falta de equidade no campo educacional. Mas, se ampliarmos esta reflexão, notamos que ela chega em outros campos também, como o social, o político e econômico.
DONOS (representados por pessoas brancas na performance) que comandam o(s) corpo(s) negro(s) e que ditam, desde a colonização, quais são os locais que o corpo negro pode habitar, ou melhor, existir. Mas, antes de analisarmos os processos que levaram para este comandar, é necessário olharmos para reflexão implícita no título que a performance busca apresentar aos espectadores. Tomaremos como referência a palavra existir, que advém do verbo ser. Para ser… É necessário que este corpo seja livre, que não precise de vigilância… Sabe quando entramos em uma loja e o segurança o segue, para garantir a segurança (de pessoas brancas)? Mas, antes de ser, o corpo negro precisa resistir. Por que não posso apenas ser e não só ter que existir? Mais de 100 anos se passaram pós-abolição e não foram capazes de retirar de mim, o termo escravo. Precisamos sempre tomar cuidado com o tipo de roupa que usamos; se cobrar para tirar as melhores notas e vê se, pelo menos assim, alguém nos enxerga; são tantas cobranças, são tantas pressões. Cansa, às vezes. O ato de nascer negro já carrega em si várias implicações para poder viver.
Na performance Donos, em seu corpo de elenco temos atores e atrizes, negros e brancos, para mostrar as agressões diárias que são feitas pelos brancos ao(s) corpo(s) negro(s), a população LGBTQI+ e o egresso da preta e do preto na universidade! De um lado vamos ter os brancos dizendo que você NÃO pode entrar numa faculdade; que você NÃO tem direito de falar; fazem a festa com o corpo negro. Mas, do outro lado temos a resistência negra enfrentando as adversidades. “Experimenta nascer preto, pobre na comunidade, cê vai ver como são diferentes as oportunidades”, Bia Ferreira na música Cota não é Esmola nos apresenta como são difíceis as realidades da população negra. Se pensarmos quando o corpo negro se sente culpado pelo racismo que ele sofre, reforça o quadro em que as pessoas que praticam o racismo se sentem corretos sobre suas práticas… Mas “nem venha me dizer que isso é vitimismo. Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo”.

Bia Ferreira | Foto – Autor(a) desconhecido(a) | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem em preto e branco. Mulher negra posando para foto. Ela usa dreads no cabelo, óculos de sol no rosto e um colar de ouro de corrente grossa. Exibida do tórax para cima, ela eleva seus braços mexendo na gola de seu casaco. Ela está olhando firmemente para a câmera.
Uma das frases ditas na performance me tocou profundamente por desvelar em mim algo que já escutei e que vez ou outra volto a ouvir “É ser muito azarento, além de nascer gordo, é preto e viado!”. Ouvir estas palavras não é fácil! Na sequência da cena vê as tapas desferidas, os pontapés, os puxões de cabelo doe de ver e ouvir os gritos de dor. Faz arrepiar!
Mas, afinal, o que caracteriza um corpo negro? Impõem sinais de reducionismos sobre o que é: somente apenas ligado a algo dançante; corpo que pulsa alegria; um povo festivo; ele é estes adjetivos todos, mas também é luta, é representatividade, empoderamento. É a música de Clara Nunes, Canto das Três Raças, que é evocada durante a performance e carrega a ancestralidade dos que primeiro lutaram, dos que foram escravizados e trazidos para o Brasil e sofreram bastante nas senzalas, pelourinhos, utilizando máscaras de Flandres, torturas e açoites por seus donos! Mas, eles não desistiram.
Em Donos a todo momento o corpo negro está exposto. Frases de efeito surgem e cortam a quem assiste… Lá no fundo algo mexe em você: um arrepio, choro, um embrulho no estômago, uma lembrança de algo que vivenciou. Estas agressões que o corpo negro sofre são diárias: os processos de se embranquecer, aponta para um corpo preto uma luta em querer ser aceito e termina por negar suas raízes históricas, culturais e sociais. Só que isso não muda o fato de ser negra(o) e passar por preconceitos. Tocqueville, em seu texto sobre “Liberdade e igualdade” nos traz justamente a questão sobre como a uma associação do negro à escravidão, quando discorre que nos Estados Unidos, mesmo com o fim deste processo histórico, os negros eram vistos como escravizados, ocorrendo só uma troca no nome, pois na realidade continuava com os mesmos pensamentos sobre eles.
Corpos negros trazem em si marcas e símbolos associados. Há uma grande objetificação ligada ao corpo para aquela(e) que é negra(o). Toma-se uma ideia de um corpo de “livre acesso”, de idas e vindas sem consentimentos, passagem de direito pelo corpo por ser negro. Vitória de Santa Cruz em seu poema “Gritaram-me Negra”, expressa versos muito fortes sobre como é doloroso o processo de reconhecimento, aceitação e afirmação, mas antes desta concepção ganhar forma e voz, surge uma tentativa de se enquadrar e não sofrer, como é posto abaixo:
(…)
Alisei o cabelo,
Passei pó na cara,
E entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra!
(…)
Ponho-me a pensar: 1888 ou 2019? O ato da Princesa Isabel assinando a Lei Áurea, em 1888, encerrou as ” formas de escravidão”. Mas, hoje elas só mudaram de formas e locais. Pois, uma reverberação da escravidão persiste quando vemos os negros em funções subalternas aos brancos, as empregadas domésticas demonstram muito bem este processo. As pressões políticas que foram feitas pela Inglaterra para determinar seu fim, não saiu só caro para o Brasil, mas para todos. O que é difundido nos livros didáticos como libertação, trata-se na verdade de um grande acordo comercial. Brasil, o último país a abrir mão do sistema escravocrata.
Ainda são muitos os silenciamentos da História do povo negro a estudar, questionar e visibilizar. Aos poucos novos grupos vão surgindo, vamos ver trabalhos que exploram as negritudes. Locais tidos como espaços de ocupação branca, como a Universidade, vão sendo ocupados por negras e negros. Os negros saindo dos papéis sem fala e destaque e aparecendo como protagonistas de suas próprias histórias.
Propagando esses discursos, o grupo Cantantes da Resistência retrata este empoderamento e realizam apresentações em espaços alternativos, como em atos políticos ou festivais de teatro. Espero que esse trabalho não pare e possa alcançar mais espaços e mais pessoas.
A educação é livre, nós somos livres e eles não são nossos DONOS! A luta não morrerá!
Como Vitória Santa Cruz nos diz:
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum disabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
NEGRO
E que ritmo tem!
Negro
(…)
Afinal compreendi
AFINAL
Já não retrocedo
AFINAL
E avanço segura
AFINAL
Avanço e espero
AFINAL
E bendigo aos céus porque quis Deus
que negro azeviche fosse minha cor
E já compreendi
AFINAL
Já tenho a chave!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
Negra sou.