#17 Corpas Possíveis, Corpos Sensíveis | Vocês, bípedes, me cansam!
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Edu O
Artista da dança, performer, escritor e professor da Escola de Dança (UFBA)*
Salvador, 23 de março de 2021
Carta aos bípedes #5,
Você, talvez, não se dê conta, mas você é bípede. Sim, se você não possui nenhuma deficiência e é parte da categoria de pessoas construídas dentro de padrões normativos de corpo que consideram as experiências da deficiência como patologia; se nos olha com sentimento de pena, compaixão, coitadinho; se considera a pessoa com deficiência improdutiva, inferior, incapaz, menos bela; se considera a deficiência como se fosse uma experiência única que se repete da mesma maneira para todas as pessoas e desconsidera a grande diversidade das deficiências e suas especificidades, você é bípede. Se pensa que somos ora heróis, super homens, exemplos de superação, ora subumanos, sem valor e sem lugar; Se a sua inclusão quiser nos colocar nos cercadinhos específicos que mais excluem, sim, você é bípede. Se entende que o corpo sem deficiência é a única possibilidade de normalidade, sem dúvida, você é bípede.
Deixa eu te explicar logo que a bipedia, na minha perspectiva, é a estrutura sócio-econômica-cultural-política que determina o que é normal e o que é anormal, capaz e incapaz. O que apresento como bipedia não se trata da maneira de andar. Eu não estou dizendo sobre como você se desloca ou a galinha e o canguru, é sobre o sistema de opressão pautado numa construção também histórica da normalidade, assim como é construída a ideia de deficiência. Se você entende o corpo como relacional e sabe que ele não deve ser compreendido apenas pelo seu aspecto físico, pense que esse corpo tão falado nos seus estudos e discursos é o mesmo das pessoas com deficiência. A bipedia não é o oposto ao não andar, ela atua também sobre as pessoas cegas, surdas, com deficiência intelectual e todas as outras.
Trazendo para o campo da Dança. Você é bípede
– se a sua dança desconsidera as possibilidades de diversos corpos e não se dá conta das limitações (palavra tão associada à deficiência) da sua própria bipedia que ao longo do tempo repete tantos clichês de uma verticalidade e virtuose tão redutoras sobre o que é dança e corpo;
- se nas suas escolhas estéticas, artísticas e, portanto, políticas, você mantém e reproduz espaços de invisibilidade e não reconhecimento da produção de artistas com deficiência;
- se na sua curadoria você não se dá conta de que o tema secular da Dança é o corpo branco-cisgênero-bípede que você teima em perpetuar na programação de seus festivais, bienais, eventos, editais e não faz a mínima questão de romper com esse padrão e ainda nos mantém nas atividades extras, nas caixinhas, nas suas ações formativas que você nem participa e nas mesas de debate como um assunto que você também não quer ouvir;
- se em suas aulas você nem pensa nas pessoas com deficiência e quando aparece alguma ela que se vire, se adapte como puder ou, então, fique no canto assistindo;
- se você desconsidera os inúmeros estudos sobre a deficiência e a relação com a Dança em suas pesquisas “descoloniais” e a contribuição que a presença de pessoas com deficiência pode dar sobre movimento, tempo, espaço, composição e dramaturgia;
- se na sua produção você não se importa com a acessibilidade e até descumpre o que determinam as Leis brasileiras se justificando com falta de verba, falta de tempo, falta de equipe. Se a sua equipe não consegue gerir situações problemas geradas pela falta de acessibilidade que você mesmo produz. Aliás, se na sua equipe não ou nunca teve a participação de pessoas com deficiência;
- Pior, ainda, se você não se constrange por não ter pessoas com deficiência no seu quadro de funcionários, às vezes, em eventos que falarão sobre nós mesmos. Você, bípede, não deve entender o que significa “Nada sobre nós, sem nós”. Lembre-se que isso também não deve ser uma cadeia onde só possamos estar em espaços que falem sobre deficiência, nós sabemos sobre muitas coisas;
- Você também é bípede quando não luta para que os espaços culturais se responsabilizem com os equipamentos ou haja nos orçamentos dos editais ou ferramentas de fomento à cultura uma rubrica, específica, destinada à acessibilidade para todos os projetos. Você sequer pensa nisso e, no fundo, acha muito trabalhoso;
- se você for jornalista, continua insistindo no tom sensacionalista em matérias que nos tratam como nos antigos freak shows. Você entende? O pensamento bípede está em todo canto, domina todos os espaços e nos invisibiliza, nos recusa em todos os setores da rede de produção cultural.
Eu queria mesmo entender quando você pensa em Dança, qual o corpo pode dançar a sua Dança? Quem pode fazer a sua arte? Quem pode assisti-la? Se todo corpo é a própria pessoa, pois não existe corpo isolado da pessoa, que pessoas cabem na sua caixinha? Quem você deixa fora? O que você pensa sobre deficiência? Quais as palavras você associa à deficiência? E quando pensa na relação Dança e Deficiência ou Arte e Deficiência, quais as imagens que surgem? Que referências você tem sobre o tema? E se você não tem nenhuma referência ou segue o senso comum ao analisar nossos projetos e nos assistir, como se arvora a julgar nossa competência e produção? Você, provavelmente, nem conhece o trabalho de Mickaella Dantas, Renata Mara, Dave Toole, Annie Hanauer, Dan Daw, Claire Cunningham, Carolina Teixeira, Natalia Rocha, Leo Castilho, João Paulo Lima, Jéssica Teixeira, Candoco Dance Company, Estela Lapponi, Cia Gira Dança, Moira Braga, Roland Walter, entre tantos outros. Você sabe tão pouco sobre tanta coisa! Só para te lembrar, bípede, Frida Kahlo, Stephen Hawking, Franklin Roosevelt tinham deficiência. Pasme, bípede, mas o REI da música brasileira é pessoa com deficiência, sabia? Talvez, se ele tivesse assumido de fato essa característica você não o considerasse tão rei assim, não é? Espero não ter te decepcionado, mas no nosso caso, somos reis e rainhas que sempre estamos nus. Vocês nos olham e só enxergam o que acham ou querem achar sobre nossos corpos. Sobre nós. E nunca acham algo positivo.
VOCÊS, BÍPEDES, ME CANSAM!
Sabemos que é muito difícil desconstruir e destruir estruturas tão fixas assim. O pensamento bípede é da nossa estrutura social, molda e limita a compreensão de corpo e de mundo que anula qualquer experiência fora do que é considerado normal. Essa normalidade não existe, bípede. Acredite em mim! Repense, reveja, mude esses conceitos. Não dá mais para você continuar vivendo montado em tantos privilégios. Sabe por que? Eu percebo um vento que vem de longe para soprar – quem sabe – alguma mudança. Nós – pessoas com deficiência – estamos ocupando espaços, furando algumas bolhas. É da ordem do existir mudarmos quando entramos em contato com o outro, nos perturbamos com o desconhecido. E, vamos combinar? Nós – na verdade – não somos tão desconhecidos assim, ne? Você já nos viu em diversos lugares, mas finge que não. O encontro… o contato… transformam.
Agora, falo aos meus pares, “Ventaneiros”, como Moira, que lançam músicas de transformação aos quatro ventos. Esses corpos “Húmus” de Renata Mara que volvem e nutrem a terra com o novo e revolucionários que somos na mudança de pensamento e não apenas de atitudes. Esses “corpos intrusos”, como diz Lapponi, que chegam sem pedir licença, invadem onde não foram historicamente chamados e rompem tudo desde a arquitetura até as atitudes, a comunicação, a tecnologia… As “curvas sinuosas” desejantes de Jéssica Teixeira… “Corpos perturbadores” que instigam, incomodam, coçam o meio das costas, furando essas bolhas para afirmar o que somos e rejeitar padrões impostos. Jamais esquecer de que quando entramos nos espaços os transformamos.
Eu te escrevo, bípede, não para aumentar os abismos que tantas vezes vocês nos jogaram desde a Grécia antiga, mas para criarmos pontes, para vocês se darem conta das violências que provocam cotidianamente, até mesmo no tratamento que pensam ser cuidadoso, mas vem carregado de compaixão, pena. Eu sei, alguns de vocês nem sabem.
Mas, olha, se já havia passado da hora da mudança, não será este o momento para transformarmos nossos hábitos de consumo, romper padrões que criamos. Quando sairmos desse isolamento que vocês bípedes estão achando uma novidade e uma violência – que é!, mas que para nós – pessoas com deficiência – é uma condição imposta rotineiramente pela falta de acessibilidade e oportunidades, o que vai importar? Quais vidas importam? Umas mais outras menos?
Você até aparece defendendo causas com certa visibilidade, mas quando é sobre nós, você está sempre muito ocupado, precisa cuidar de outras demandas mais urgentes. Na verdade você nem lembra da nossa existência. Na sua luta anti qualquer coisa e em defesa da vida, você pensa na vida da pessoa com deficiência? Se não, bípede, me desculpe te desapontar, mas eu não acredito na sua luta. Sabe por que?
Porque o corpo com deficiência é futuro. Tenho repetido isso incansavelmente. A experiência da deficiência é um porvir constante para qualquer pessoa sejam mulheres, homens, negras, indígenas, transsexuais, cisgêneras, gays, lésbicas, assexuadas… O que não quer dizer, nem lhe permite afirmar que “todo mundo tem deficiência”. O que estou afirmando é que a deficiência é um vir a ser para qualquer pessoa, se não por alguma surpresa do destino, pela própria vida. Sim, quando envelhecemos é porque nos mantemos vivos e o envelhecimento é companheiro da deficiência. Entender o corpo com deficiência como futuro é pensar na contribuição que estudos da deficiência tem trazido para diversas áreas da ciência, desde estudos da medicina, quanto robótica, tecnologia, comunicação, artes… enfim, pensar por outra via, pensar dialogicamente, desconstruindo uma perspectiva de subalternidade da deficiência. Se todo mundo pode vir a ter deficiência, não seria melhor construirmos um mundo a partir dessa realidade?
Pelo futuro que já é agora, desejo que nós, pessoas com deficiência, ocupemos os espaços de produção, visibilidade, decisão, representatividade porque somos multidão, 1/4 da população desse país. Tentar quebrar as barreiras impostas pela normatividade deve ser o que nos faz mover e mostrar essa história ainda pouco contada e quase nada acessada por grande parte das pessoas. Para mim, isso é o que me faz existir nesse passado-presente-futuro-AQUI
Até breve,
Edu O.
*Carlos Eduardo Oliveira do Carmo, conhecido como Edu O., é artista da dança, performer, escritor, professor da Escola de Dança da UFBA, mestre em Dança, cadeirante, gosta de escrever e criar conteúdos no seu Instagram @eduimpro alertando para as exclusões e violências provocadas pela bipedia compulsória, termo que desenvolve – atualmente – no Doutorado Multiinstitucional e Muldisciplinar em Difusão do Conhecimento.