Crítica – Estudo nº 1 – Morte e Vida | Todos Severinos

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Imagem – Vitor Pessoa
Por Maria Pepe
Atriz e Graduada em Letras (UFPE)
Como todo movimento literário, o Regionalismo surge para suprir uma demanda da época. A era industrial irrompe fortemente impregnada de um discurso político, e os romances de 30 aparecem enquanto ferramenta literária capaz de traçar discussões acerca de seu tempo presente. O Regionalismo, historicamente denominado desde A Bagaceira, de José Américo de Almeida, publicado em 1928, é apenas catalogação histórica. O movimento que abarca o pré-modernismo desde Lobato e Lima Barreto até os Andrade (e hoje em dia!) surge como um reflexo deste novo Brasil que se forma com a Revolução de 30, pondo fim à República Velha. É o cenário da urbanização, onde
no sul, a Armour marcava o fim das charqueadas e no norte as modernas usinas eliminavam o engenho. As zonas industriais e as cidades cresciam e suas imediações passavam a produzir alimentos para abastecer estes grandes aglomerados humanos. O café, elemento-chave da velha ordem econômico-política, perdia importância. (DACANAL, 1986, p. 16)
E hoje em dia, como entendemos a urbanização no século XXI?
Neste cenário pós-modernista, o teatro do grupo MAGILUTH surge como a ferramenta teatral capaz de discutir sobre o tempo presente, entre a tríade passado, presente e futuro, filosofando acerca da injustiça social que ultrapassa qualquer temporalidade histórica.
É essa a reflexão que o MAGILUTH propõe em sua peça Estudo nº 1: Morte e Vida, linkando o poeta João Cabral de Melo Neto, mais especificamente o seu livro Morte e Vida Severina, com a realidade contemporânea, através de uma peça-palestra. Uma peça-palestra é uma forma teatral que combina elementos de uma palestra ou conferência com elementos de uma peça de teatro. É uma abordagem na qual os atores apresentam informações, discutem ideias ou compartilham conhecimentos com o público de maneira interativa e teatral. Essas peças geralmente têm um tom mais informal e participativo, permitindo que os atores se comuniquem diretamente com a plateia, estimulando o diálogo e a reflexão.
Na peça-palestra, os atores podem desempenhar papéis de personagens fictícios ou até mesmo de si mesmos, combinando elementos dramáticos e discursivos para transmitir uma mensagem específica. Essa forma teatral pode ser usada para abordar questões sociais, políticas, filosóficas ou educacionais, fornecendo ao público uma experiência que combina entretenimento e aprendizado.
O livro de João Cabral, por sua vez, retrata a história de Severino, que, num movimento de emigração, deixa o sertão e parte para o litoral, em busca de melhores condições de vida.
A história de Severino é o ciclo que repete-se incessantemente até hoje. Ainda há o movimento de migração, mas não apenas isso: a realidade palpável é ainda a da injustiça social.
Os romances regionalistas, em sua narrativa, se atêm à verossimilhança, onde tudo “o que é narrado é verossímil, é semelhante à verdade” (DACANAL, 1986, p. 13). É exatamente este ponto que o MAGILUTH irá explorar, trazendo a realidade de Severino não apenas como um estudo para os atores, mas entendendo a injustiça como protagonista de uma história que não se limita à temporalidade histórica ou geográfica.
Estudo nº 1. Morte e Vida também é uma pesquisa sobre a identidade dos atores. A injustiça também é o que acontece no Kiribati. Severino também é sobre mim, sobre você, sobre Thiago Dias, entregador de aplicativo, que trabalhava 12 horas por dia e morreu durante uma entrega, aos 33 anos, de um AVC. É sobre a banda Devotos, cujos direitos e lucros de seu próprio disco estão reservados à gravadora Sony Music, que em 2004 comprou a BMG.
É sobre isso. Essa frase que Mário Sérgio Cabral enfatiza que tanto detesta, mas que mais sintetiza a essência do tema do poema de João Cabral.
Assim como a injustiça, a morte é uma protagonista que se faz bastante presente na peça-palestra. É na insistência da Vida que Severino enxerga ser a única maneira de vencer a Morte, que a ninguém poupa.
Estudo nº 1, encenada no dia 16 de maio, no Teatro Hermilo Borba Filho, em Recife, com direção de Luiz Fernando Marques (Lubi), inicia-se evidenciando a essência do MAGILUTH: de forma fragmentada e polifônica, num caos organizado, os atores posicionam-se entre microfones e uma superfície que reflete imagens da internet, através de um projetor. O livro é apenas um disparador para o grupo, que entremeia seu estudo com outros poemas do autor, como O Rio e O cão sem plumas.
Em dado momento, a imagem do ator Erivaldo Oliveira surge no telão, como se estivesse fazendo uma ligação para os amigos. É interessante pensar que o estudo, ao trazer a verdade em tantas camadas, também não omite a presença verdadeira dos atores, com nomes e sobrenomes verdadeiros, sem a máscara de personagens fictícios. É interessante, também, a fala de Erivaldo, que insiste que a peça deveria começar na rua, onde ele está, no Rio Capibaribe, e não numa caixa preta, como o teatro em que estamos.
É nesse momento que ele decide mergulhar no rio, e vemos em nossa frente a referência ao Severino do poema, que pensa em suicídio jogando-se no mesmo Rio Capibaribe, mas é contido pelo carpinteiro José, assim como Erivaldo é contido pelo seu grupo de amigos. O momento de renovação da vida de Severino entrelaça-se com a renovação de Erivaldo, e a frase de Severino ecoa em nossas mentes: somos muitos Severinos/iguais em tudo na vida:/na mesma cabeça grande/que a custo é que se equilibra.
Dessa forma, a peça nos leva à inevitável reflexão: não somos nós, atores nordestinos, todos Severinos, quando pensamos em migrar do Nordeste para o Sudeste, em busca de melhores oportunidades de carreira, de uma nova vida?
A palavra também incorpora o sentido de destino, que pode ser interpretado como identidade. E é nessa busca por identidade que o ator Bruno Parmera se encontra imerso, conduzindo diversas pesquisas no banco de imagens do maior mecanismo de busca da internet. Ele busca encontrar a si mesmo através dos adjetivos homem, nordestino, pernambucano, magro, gay, artista. No entanto, a realidade é que ele se depara com imagens que representam apenas uma caricatura de sua descrição, denotando a impossibilidade de encontrar sua própria identidade em um mundo contemporâneo excepcionalmente fragmentado.
No contexto da peça, todos os atores estão vestidos de jeans, remetendo à Toritama. Essa cidade é mencionada no poema de João Cabral como o local onde um corpo está sendo levado para ser enterrado. Além disso, Toritama é conhecida por sua extensa produção de jeans, tornando-se um cenário que reflete a exploração capitalista vigente.
Em determinado momento da encenação, a peça perde o tom de palestra e, diante dos nossos olhos, cria-se uma cena mediada por Giordano Castro. Nesse momento, dois lados em conflito, representados por Mário Sérgio e Bruno Parmera, são desafiados a selarem um acordo. Esse confronto entre os personagens revela a lógica capitalista e a lógica da guerra, onde propostas de genocídio são apresentadas em detrimento da ética e da busca pelo poder.
Assim, a peça transcende os limites da mera palestra, mergulhando em uma narrativa teatral que mescla elementos da realidade contemporânea, reflexões sobre identidade e críticas sociais. O MAGILUTH utiliza sua linguagem metateatral característica para explorar esses temas, construindo um panorama multifacetado do mundo em que vivemos.
Com uma dinâmica inicial em que cada ator propõe um início, a construção da peça revela um iminente fim que parece ser apenas uma resposta natural, desprovido da possibilidade de ter seu destino moldado. O fluxo narrativo se desenvolve em um contexto em que o desfecho se apresenta como uma inevitabilidade, destituído da capacidade de ser influenciado ou modificado.
Dessa maneira, ao encerrar a peça com um corpo estendido no chão, simbolizando Thiago Silva, mais um Severino, somos impactados pela cena que aparenta normalidade em nosso cotidiano. Nesse momento, o sonho de autonomia do trabalhador urbano se choca com a exploração capitalista, a esperança de vida confronta-se com a iminente morte, desafiando uma utopia em que “a desordem reina no mundo e é preciso consertá-lo através da ação dos indivíduos ou dos grupos sociais interessados” (DACANAL, 1986, p. 15).
A verdade trazida pelo MAGILUTH é cirúrgica, evidenciando um desfecho com uma solução que não se revela fácil aos olhos daqueles que lutam pela quebra dessa estrutura. Nesse sentido, a peça emana referências de Rousseau e Marx, no que se refere à opressão, desigualdade e busca por mudança social, seguindo uma tradição de pensamento crítico e questionamento das estruturas injustas da sociedade, mas isso ainda diz pouco sobre a obra.
Para escutar o episódio do podcast Jardim Elétrico com a participação de Mário Sérgio Cabral, do Magiluth, acesse AQUI.
Referência bibliográfica
DACANAL, J. H. O Romance de 30. Porto Alegre, Mercado Aberto: 1986.