#20 Territórios em Trânsito | Ancestralidade Themônia – Possibilidades de territorialização Themônia
Ouça essa notícia
|
Arte – Rodrigo Sarmento
Por Juliano Bentes
Produtor cultural, performer e multiartista. Doutorando em Artes (UFPA), Mestre em Artes (2019), Especialista em Gestão Cultural (2017) e fundador da Haus of Carão.
É complexo, a princípio, explicar o que é ser Themônia para um público alheio, nos atendo aos fatos, mas é possível traçar uma linha cronológica de acontecimentos para pensarmos essa configuração. Podemos começar com um duo de DJs, S1mone e Tristan Soledade que em 2013 começam a fazer sets montades em festas pela cidade com o nome de NoiteSuja, no ano seguinte, 2014, começam a produzir festas para reunir pessoas que peitassem a ideia da montação. Nem sequer era drag a palavra utilizada, não era por aí, depois veio a percepção de que drag era montação, adotamos o título de maneira pedagógica.
Com o tempo passamos a nos reorganizar em diversos âmbitos e crescer, crescer muito. Éramos muitas, vindas de todos os bairros, de cidades do interior, ávidas por consumir não só essa energia gerada pelo todo, mas umas às outras, assim se fez a retroalimentação entre nós. A vontade de nos ver, nos abraçar, nos tocar, nos assistir, nos refletir. Nos tornamos as maiores fãs das nossas melhores amigas e isso construiu uma rede gigantesca, costurada delicadamente entre afetos e vivências. O que externamente era apenas um “grupo de drags feias” se tornou nossa casa, nossa família, nosso refúgio.
Em 2017, não sabemos se a tradicional palhaçada de mesa de bar dizendo que a outra estava tão linda quanto uma demônia, se a influência da cola acrilex permanente utilizada nas maquiagens – que colava tudo e por isso foi batizada pelo grupo de cola themônia, se talvez o meme da Socorro Feirante – olha a cara dessa demônia! O que sabemos é que o termo se atravessou dos nossos discursos e começou a ser pensado de que forma nós, enquanto corpos dissidentes, de fato, estávamos sendo demonizados. Em contraponto e também em manifesto, tanto à demonização cristã que nossos corpos sofrem no dia a dia quanto à leitura de internacionalização das nossas produções, elencando as nossas encantarias amazônicas estéticas ao local simplório de “drag queen”. É quando começa a ser construído enquanto conceito o termo Themônia. É um movimento anti-o que fizeram de nós. É o manifesto nós por nós. Como explica Gabriela Luz em sua pesquisa:
Insistimos que Themônia escrita com “th” é um estranhamento a palavra demônio que tenta resumir tudo aquilo que é ruim e que deve ser proibido pela moral judaico-cristã, e com isso, o sentido da themonização que para nós é sinônimo de qualidade, como resposta à demonização da nossa existência, cultura e ancestralidade, fazemos questão de existir, de incomodar cada vez mais, sendo a nossa existência uma ameaça, nossas ações passam a ser um atentado em nome do amor e da liberdade de expressão. (LUZ, Gabriela, 2018, p.22)
Para muito além de drag queens, para muito além de corpos dissidentes que produzem arte, para muito além de artistas da Amazônia, existe um eixo que costura cada um desses vincos, transformando tudo isso no que hoje entendemos (ou não entendemos) por Themônia. Por isso, hoje podemos dizer com segurança que existem diversas Themônias que não se montam, que nunca passaram uma maquiagem no rosto, não é sobre drag, é sobre produzir a coletividade, retroalimentar, redimensionar afetos e reivindicar nossas próprias Amazônias, nossos territórios e nossos modos de fazer.
Themônia é energia vazando pelos poros, é quente, é úmido. Às vezes precisa respirar fundo para dar conta da magnitude desse pertencimento. Exatamente como Belém, onde o movimento nasce e onde tudo se atravessa. É preciso muito abraço, muita risada e muita vala aberta para construir uma Themonização. Ainda assim, não existe um critério e/ou uma seleção de participação do movimento, tem artistas que há anos rondam querendo fazer parte e simplesmente não conseguem se vincular e/ou construir essa soma de afetos, e tem pessoas que surgiram ontem e já construíram vínculos familiares. E, em questão, torna-se mais simples de explicar que Themônia é família, não se pede para ser família de alguém, é preciso falar a mesma língua, é preciso construir o afeto e o vínculo.
Passado o momento de tentar explicar o que pode significar ser uma artista Themônia na Amazônia, é preciso conjecturar que hoje temos mais de trezentas artistas envolvidas no movimento, que segue em propósito de expansão. Estamos em todos os lugares de Belém, em diversas manifestações artísticas e já não estamos mais apenas aqui, estamos em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis, Recife, bem como em Castanhal, Santa Izabel, Cametá, Marabá, Soure, Vigia, Apeú, Santa Bárbara, Santo Antônio do Tauá, Igarapé-Açú, etc. E com essa expansão descomedida é repensado: se o fazer e identidade Themônia é atrelado ao vínculo corpo-arte-território-afeto, como as Themônias em outros territórios seguem construindo esse vínculo com essa ancestralidade? E ainda: como se configuraria essa Ancestralidade Themônia?
A Themônia pode existir em outros espaços, mas ela faz sentido aqui, em coletivo. (…) a territorialidade pessoal de cada artista em sua relação com a cidade de Belém, assim como as relações sociais e políticas intrínsecas, influenciam diretamente nessa construção de identidade, seja através dos afetos, da necessidade de invadir espaços, da cultura densa ou das forças climáticas. Tudo isso molda a Themônia e faz dela uma artista essencialmente territorial (…) é uma obra inacabada, porque a Themônia é a sua própria obra, não é apenas uma performance, não é apenas uma montação, é ela inteira, é o conjunto de performances, montações e atravessamentos, ela é o processo. (BENTES, Juliano, 2020, p.159)
Talvez o primeiro lugar a se refutar seria reconhecer o externo. Quem fala por nós de nós senão nós? Para além de tantos textos completamente sem pé nem cabeça que colocam a gente em locais questionáveis de produção, nossa expansão trouxe demais pesquisadores-urubus de outras áreas a sondar o que são Themônias e suas representações estético-políticas na Amazônia Contemporânea. Como é o caso do mais recente livro do famoso teórico João de Jesus Paes Loureiro – O Espelho Quebrado da Arte Canônica (2024). No dia 14 de agosto do referido ano foi realizado o lançamento do seu livro e, conforme em todo espaço cultural-artístico da cidade de Belém atualmente, haviam Themônias presentes e logo chegou ao grupo de artistas no aplicativo whatsapp a referida imagem:
Mais uma, das diversas publicações colocando Themônias no espaço único da drag, mais ainda, restringindo nossas produções a uma “Montação hiperbólica das personagens que são elas mesmas. Maquiagens, penteados e vestimentas hiperbolizadas.” Chega a ser desrespeitoso tratar o que temos construído filosoficamente na última década de trabalho como eixo hiperbólico de personagem ou como uma mera estética do exagero. Reitero o já citado acima: Themônia é o vinco bem costurado entre corpo-arte-território-afeto, e é preciso muito abraço pra alinhavar esses mancais, logo tão mais surgiram os questionamentos:
Como pode alguém falar de nós sem nunca ter tomado uma catuaba na beira da vala conosco? A partir disso, relembramos um outro eixo muito importante da construção da Themônia: o corpo alterado. A alteração corporal não precisa apenas vir de “maquiagens, penteados e vestimentas”, a alteração corporal é o que nos move, é o que gerencia a energia pulsante da produção themônia, seja com o álcool, seja com a montação, seja com hormônios sintéticos, seja com o peso do preconceito recorrente sobre nós, seja com ansiedade ou depressão. O corpo alterado é emblemático para construção da dissidência que marca a nossa vivência diária, seja em espaços noturnos, de boates e bares, ou seja pra comprar um pão na esquina de casa. Themonizar é manipular essa demonização do corpo, é construir poder sobre a imposição e tomar para si.
Assim como o eixo afetivo é central para o mantenimento do movimento cabe a pergunta: as que estão em expansão em outros territórios continuam sendo themônias? Por difícil que o contato se configure, é perceptível como as artistas que se afastam fisicamente e se mantém atreladas ao movimento não deixam de emergir suas essências themônias em suas produções independente do âmbito, bem como Uhura Bqueer em seu filme “Themônias”, a manifestação sustentável estética que é Sarita Themônia vivida por Gabriela Luz, os quadros de humor apresentados por Luka Cortez nas suas redes sociais, ou Yndjah que, como DJ, leva ritmos paraenses por onde vai. Que se possa construir o argumento: mas isso é suficiente? Não, não é apenas falar de Amazônia, é o contato afetivo, é viver a retroalimentação com a família/movimento ainda que distante, é saber que em qualquer lugar do mundo em que haja uma irmã Themônia ali teremos família. Essa certeza de modus operandi demarca o eixo da Ancestralidade Themônia. Em contraponto, diversas outras artistas que se expandem para outros territórios deixam de reivindicar esse espaço dentro do movimento e se afastam. Em entrevista realizada em 2018 com A.K.A. Della, quando perguntada sobre se considerava uma Themônia, foi explícita:
Não sou mais uma Themônia. Mais que uma visualidade, acredito que Themônia seja um fenômeno local (…) penso que depois que me afastei por conta da minha mudança para Mosqueiro, dos rolês, dos grupos, das rodas de conversa com as outras Themônias, meu jeito mudou, não me alcançam mais. Pelo simples fato de não ter mais nenhuma convivência. Estou interessado e ligado em outras coisas. Acredito que a convivência com o grupo influencia na formação de crenças e valores que compartilhados formam a definição de uma Themônia.” (A.K.A. Della, 2018)
Cabendo a hipótese de que uma referida Ancestralidade Themônia só é possível a partir do mantenimento dos vínculos afetivos, entre pessoas e com o território, de forma que cada indivíduo seja por si só um próprio agente de territorialização e themonização, que mije por onde passe, que themonizar seja o método de sua produção com ênfase do eixo corpo-arte-território-afeto.
Existem, sim, nomes como Xirley Tão, Pandora Rivera Raia, Tristan Soledade, Skyyssime, Flores Astrais, Sarita Themônia, S1mone, Gigi Híbrida, Shayra Brotero, Monique Lafon, entre tantas outras que estiveram desde os primórdios do movimento e não pararam de produzir em nome dele, que possuem vínculos muito fortes entre si e que desenvolveram seus nichos familiares, suas Haus e suas próprias descendências, mas há de se enfatizar que essa Ancestralidade vislumbrada não é em referência apenas a algumas pessoas mais antigas nesse panteão, mas, sim, aos valores compartilhados e construídos ao longo dessa década de vivência artística intensa, como o afeto em rede, a territorialização, a retroalimentação e a retomada de poder. Isso é themonização. Isso é se conectar com a Ancestralidade Themônia.
De forma geral, desde seu nascimento, o Movimento Cultural das Themônias tem reconfigurado a paisagem cultural e artística da Amazônia e além. Este ensaio é apenas um olhar rápido sobre história, identidade e evolução desse movimento, uma família LGBTQIAPN+ que utiliza o corpo-arte como meio de expressão e resistência. Por meio de uma densa rede de afeto e territorialização, as artistas transformam suas vivências em poderosas declarações de pertencimento e luta. Explorando desde as raízes do movimento na efervescente Belém até sua expansão global, o artigo traz à tona as complexas relações entre corpo e território, destacando a vital conexão com a Amazônia, com sua biodiversidade, encantarias e lutas socioambientais, se torna muito mais que um cenário – é um personagem vivo e essencial na narrativa das Themônias. Este artigo convida o leitor a participar de uma celebração contínua de identidade, resistência e criação coletiva.
Referências
BENTES, Juliano. EKOAOVERÁ: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. 2019.
BENTES, Juliano. Identidades em trânsito: revisitações acerca da arte da montação. GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LION, Antonio Ricardo Calori de (org.). Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades. Salvador: Devires, p. 228-242, 2020.
GOMES, Ana Paula. Cultura Marginal: A Trajetória das Drags em Belém do Pará. Trabalho de Conclusão de Curso – UEPa. 2018.
LATIF, Larissa. Insurreições estéticas e performances na Amazônia brasileira: notas para uma reflexão decolonial (Edição 485). Papers do NAEA, v. 1, n. 2, 2020.
LUZ, Gabriela. Desconstrução Permanente publicado em: I Revista das Themônias. 2020.
LUZ, Gabriela. Diarréia humana no colapso da colônia: Themonização nas ruínas do heterociscapitalismo (Transtorno de Cognição em Curso–TCC). 2018.
Manifesto das Themônias. 2020. Acesso AQUI