Dramaturgias de Palcos & Plateias | Expandindo nexos, olhares e objetos

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Por Roberta Ramos e Márcio Andrade
O projeto Dramaturgias de Palcos & Plateias – nexos, olhares e exercícios críticos em dança (Versão 2) consiste em uma reedição do projeto de extensão de nome homônimo realizado em 2022. Assim como a versão anterior, o projeto abriu ao público algumas das atividades da disciplina Dramaturgia e Apreciação Crítica em Dança, do curso de Dança da UFPE, oferecida no semestre de 2024.1, pela Professora Roberta Ramos, que também coordenou esta ação extensionista. O projeto, nesta edição, manteve a parceria com a revista digital Quarta Parede e também utilizou como fonte, para algumas de suas atividades, o Acervo Recordança, como explicaremos mais adiante.
Além da abertura de algumas aulas da referida disciplina para o público externo, da realização da roda de conversa Dramaturgias & Críticas Expandidas (em 02.10.24) e da publicação de textos críticos produzidos por estudantes da disciplina, um dos principais diferenciais desta edição do Dramaturgias de Palcos & Plateias consiste na elaboração e realização da exposição Toda História de Danças é Contemporânea (que teve abertura em 14.10.24), atividade que foi com duas outras disciplinas assumidas pela docente (Histórias da Dança 1 e 3).
O projeto, em consonância com as disciplinas às quais esteve vinculado, buscou evidenciar as interrelações entre o fazer dramatúrgico em dança — considerando tanto sua dimensão processual quanto seus desdobramentos cênicos — e o exercício da crítica. O objetivo foi estimular o corpo discente da Licenciatura em Dança a se envolver com ambas as práticas, ampliando as possibilidades de atuação nos campos da dramaturgia e da crítica.
Ao longo das aulas, foram abordados aspectos históricos da dramaturgia e da apreciação crítica em dança, além de conceitos contemporâneos que atravessam o fazer dramatúrgico em seus diversos contextos. Entre eles, destacam-se aqueles que nos levam a questionar se os paradigmas existentes ainda dão conta das práticas atuais. Discutiram-se também as funções e concepções do exercício crítico e os modos de atuação da crítica e da dramaturgia no cenário brasileiro, com especial atenção ao contexto recifense.
A metodologia do projeto foi integrada às abordagens teórico-práticas das disciplinas participantes, contemplando: a elaboração de verbetes; oficinas de experimentação de lógicas dramatúrgicas expandidas, articuladas à improvisação e à composição em tempo real; a apreciação crítica de espetáculos e a produção de textos em formatos experimentais (como cartas, entre outros), como forma de contribuir para a construção de sentido. Além disso, ampliou-se a reflexão sobre o fazer dramatúrgico ao incorporá-lo à concepção de uma exposição historiográfica de dança, compreendida, especialmente em sua dimensão expográfica, como uma forma de “dramaturgia expandida” — conceito que será detalhado mais adiante.

Aula de 28.08.24 sobre dramaturgias expandidas – Da esquerda para a direita: Giovanna Martins, Luciano Augusto, Danillo Chagas, Samuel Florentino, Rosália Lisboa – Créditos: Roberta Ramos
A roda de conversa Dramaturgias & Críticas Expandidas foi realizada em formato híbrido, com a presença da docente, estudantes da UFPE e público interessado no Centro de Artes e Comunicação, além da participação, por videochamada, da artista do Coletivo Lugar Comum e pesquisadora doutora pelo PPGDança (UFBA), Liana Gesteira — integrante do Acervo Recordança e colaboradora da revista Quarta Parede — e do editor-chefe da Quarta Parede, Márcio Andrade.
Na primeira parte da roda de conversa, Liana trouxe a apresentação intitulada CosmoComposição: como compor com o mundo?, em que introduz suas pesquisas de doutorado a partir da visão sobre “cosmocomposição”, um conceito que amplia a noção de dramaturgia, especialmente ao dialogar com danças de matrizes afrodiaspóricas e indígenas. A pesquisadora abordou como diversas culturas possuem formas próprias de compor suas danças, que não se alinham necessariamente às lógicas eurocêntricas das danças cênicas. Nessa perspectiva, Liana compreende que a visão não é o único sentido capaz de organizar e fruir uma composição: podemos dançar e apreciar com o tato, a escuta, o olfato, o paladar. Assim, a CosmoComposição propõe um deslocamento frente à colonialidade dos sentidos e àquilo que entendemos como dança, mostrando-se como uma forma de se relacionar com a vida a partir da multiplicidade sensível do mundo.
Na segunda parte da roda de conversa, Márcio trouxe a apresentação intitulada Críticas, Dramaturgias e Transmidiações, em que toma como ponto de partida a experiência da revista digital Quarta Parede, que, embora inicialmente dedicada à crítica teatral, expandiu seu escopo para abarcar também dança, performance e outras linguagens artísticas. O realizador e pesquisador apresenta como os dossiês temáticos criados na revista vêm refletindo, ao longo dos anos, uma ampliação em torno da concepção de crítica a partir das práticas da própria revista. A partir da confluência na produção de podcasts, vídeos e ensaios sobre temas que atravessam as linguagens abordadas, a prática da crítica vêm explorando dimensões de expandibilidade temática, material e estética, experimentando modos de pensamento crítico que vão além do texto tradicional e entendendo a crítica como um gesto transmidial de escuta, escrita e invenção.
A exposição Toda História de Danças é Contemporânea resultou do trabalho prático das disciplinas História da Dança I e III, no semestre 2024.1, articulando, de forma livre e criativa, a proposta do pensador italiano Benedetto Croce de que “toda história é história contemporânea”. Ao mesmo tempo, a exposição configurou-se como o experimento historiográfico final dessas disciplinas e como uma atividade extra, inicialmente não prevista, da disciplina Dramaturgia e Apreciação Crítica em Dança.
Nesse contexto, os estudantes Danillo Chagas e Rosália Lisboa, em diálogo com Larissa Trajano — que já havia cursado as disciplinas anteriormente e que trazia consigo a experiência de atuação no Paço do Frevo — puderam exercitar a ideia de que a concepção expográfica de uma exposição pode operar como uma forma de “dramaturgia expandida”.
O próprio conceito de dramaturgia — entendido como a composição da ação — passou por diversas expansões ao longo da história, mesmo dentro do campo do teatro. Inicialmente ligado ao sentido clássico, em que designava exclusivamente a dimensão escrita da peça, o termo foi ressignificado por Bertolt Brecht, passando a englobar o conjunto de escolhas, combinações e arranjos que compõem uma encenação (Pavis, 1999).
Quando migra para o campo da dança, essa noção — bem mais recente — já aparece associada ao ato de compor a ação em dança, conferindo coerência aos movimentos em relação a temas e histórias. Um marco nesse sentido é o Ballet d’Action, de Jean-Georges Noverre (1727–1810), teórico e maître de ballet considerado precursor das preocupações dramatúrgicas na dança — ainda que sem empregar o termo dramaturgia. Com o tempo, a ideia de ação em dança se amplia: deixa de ser atrelada apenas à narrativa e passa a incluir movimentos com valor expressivo em si. Além disso, à medida que o próprio entendimento de dança se transforma — abarcando pausas, paragens e silêncios —, a ação deixa de se limitar à relação entre movimento e tema. A dança já não se define apenas pelo movimento contínuo, mas por um conjunto mais complexo de elementos.
Nesse contexto, o termo dramaturgia expandida não surge em um momento exato, nem em um único campo, tampouco possui uma definição estrita. Aparece, antes, como tentativa de nomear um conjunto de práticas — como a improvisação, a composição em tempo real, certas formas de performance art e outras manifestações performativas — que “desnorteia classificações” (Fabião, 2009 apud Araújo e Didonet, 2021, p. 36). Trata-se de práticas que, surgidas ao longo do século XX ou já existentes anteriormente, não se encaixam confortavelmente nos modelos tradicionais da dramaturgia teatral ou da dança ocidental. Essa expansão se expressa, por um lado, em obras cujo sentido só se constitui na relação com o público, em tempo real; por outro, na ampliação dos limites do que se entende por obra cênica a partir de valores estéticos ocidentais.
Além disso, a abertura conceitual permite que outras formas de composição — como processos curatoriais, exposições e, especialmente, suas dimensões de arranjo espacial e narrativo (a expografia) — também possam ser compreendidas sob a lente da dramaturgia expandida. Afinal, não seria possível pensar esses dispositivos como formas de composição dramatúrgica em si?
Este trabalho de pensar a expografia como uma forma de dramaturgia expandida envolveu o processo de coleta de informações sobre cada obra e a organização do “caminho” que conectava todas elas — incluindo a escolha dos espaços e a disposição dos trabalhos nos locais selecionados. Também foram considerados os recursos e estratégias utilizados para materializar os conceitos que fundamentaram a exposição. Através de documentos, associações visuais e ações performativas, a dramaturgia da exposição buscou propor um encontro interativo entre passado e presente, evidenciando como as histórias das danças estudadas podem ser ativadas a partir de olhares e inquietações contemporâneas. O público foi convocado a participar desse gesto de “presentificação do passado”, interagindo com os conteúdos e com a forma como foram dispostos.
Dessa maneira, a exposição construiu um discurso histórico de caráter interpretativo — em relação tênue com a ficção —, instaurando um campo de possibilidades em que o passado é revisto sob a ótica do presente. Ao mesmo tempo, abriu-se espaço para que novos olhares e narrativas históricas pudessem emergir a partir das estratégias poéticas mobilizadas por essa dramaturgia expandida.
Nesta edição, o Acervo Recordança foi também parceiro do projeto, uma vez que alguns dos exercícios críticos foram feitos a partir de espetáculos, videodanças ou outras ações que tenham registro disponibilizados no Acervo Recordança. O interesse por obras históricas, através do Acervo Recordança, colocou em jogo, ainda, como temporalidades diferentes entre obra e apreciação podem trazer outros elementos para essa relação da fruição, para a qual a distância temporal faz-nos refletir sobre como as dramaturgias também ganham novos sentidos à medida que são expostas a novos olhares em tempos diversos na história.
Os textos foram elaborados a partir de laboratórios de apreciação e de escrita crítica em gêneros textuais diversos, tais como cartas, agradecimentos, diálogos, etc., que constituem o que o crítico, pesquisador e professor da UERJ Patrick Pessoa vem chamando de “crítica performativa”. O exercício de escrever críticas culturais em gêneros textuais pouco usuais ao texto crítico foi um dos motes, nesta edição, do que chamamos de crítica expandida, mas não só.
Há também os que se debruçaram sobre objetos que não constituem exatamente obras de artes, mas que possibilitaram, da mesma forma, o exercício da fruição e apreciação, numa perspectiva que superasse a ideia da crítica como aquele saber especializado e de autoridade, que possibilitaria ora proteger normas do fazer artístico, ora promover uma transparência daquilo que uma obra esconde (Katz, 2016).
Assim, apresentamos aqui este conjunto de textos, que assumiram diferentes tarefas e desafios, apresentando, ao final, diferentes formas de expandir a crítica, em seu exercício mais amplo, o de coimplicar-se nos fazeres artísticos e de construção de conhecimento na área de Dança (Arrais, 2016).
Smael Dias traz, em Vestígios históricos H2, PE, justamente a compreensão de que, para além de explicar ou de valorar positiva ou negativamente, o exercício crítico pode estar coimplicado com os objetivos de seu objeto de análise, dando continuidade à construção de conhecimento e à reflexão iniciadas pelo mesmo. O referido texto debruça-se não sobre uma obra de arte, mas sobre uma aula documentário de G-Black, realizada no contexto do da programação do Projeto Recordança 20 anos: política do encontro, do Acervo RecorDança.
O gênero carta foi experimentado em três diferentes textos, dirigidos a diferentes destinatários, e a partir de diferentes objetos. No caso de Carta para a pintora da dança Dani Guimarães, Edileine Bonachela escreve à própria autora do filme Vaga-lumes, articulando como foi atravessada pela referida obra, um filme de dança, e como articula a fruição deste trabalho com a experiência vivenciada pela autora da carta junto à artista em residência artística oportunizada pelo Festival de Dança do Recife em 2024.
Já a carta Frevo e Corpos em (Re)Existência: uma carta sobre Frevo Labore, de Luciano Augusto, nos devolve a 2009, dirigindo-se, a partir de 2024, à criadora da videodança Frevo Labore (de Marcela Rabelo), disponível no Acervo Recordança, trazendo reflexões pertinentes à relação entre estética, tecnologia e historicidade.
Também voltado para uma videodança produzida há mais de uma década, o exercício crítico de Emelly Linhares, intitulado Bokeh: a luz invisível que nos atravessa, presenteia-nos com uma reflexão que, longe de reconhecer-se como um discurso especialista, coloca-se na mesma condição de ver-se “ignorante” diante do outro, e partir desse princípio: de que é preciso, muitas vezes, se cercar de informações sobre o que não conhecemos para nos aproximarmos deste estrangeiro que cada obra é. Assim, pesquisa e nos oferece o que está fora de nosso foco, novamente num exercício coimplicado, fazendo-nos constatar como o que sabemos pode ampliar-se a partir de uma obra de arte.
Dirigida à docente da disciplina e coordenadora do projeto de extensão e uma das autoras deste texto de apresentação, a carta Deixa eu te contar a história da engrenagem que ganhou VIDA!, de João Marcos, nos propõe a oportunidade de fruir e refletir sobre a riqueza dramatúrgica dos espetáculos elaborados por grupos de quadrilha, a exemplo deste que aqui é discutido, A Engrenagem que Nos Move, do grupo Raio de Sol. Expandido aqui é o gênero textual crítico, tanto quanto seu objeto.
Com a persepctiva da historicidade de seu objeto, o texto Duo-elo: força de oposição e inovação, de Samuel Florentino, interessantemente, debruça-se sobre uma experiência piloto do Grupo Cais do Corpo, em 1992, que vem a ser o vídeo-registro do trabalho Duo-Elo, deste grupo, antes mesmo da filmagem do que então conheceríamos como a primeira experiência de videodança de Recife, Elástico, filmado no mesmo ano e pela mesma companhia (ambos disponíveis no Acervo recordança).
Assim como acontece com Edileine Bonachela, é interessante observar que articular as experiências do exercício crítico de uma obra com outras experiências vivenciadas junto a um artista também é algo que é trazido pelo texto Inverso Concreto: conexão coletiva e arquitetura desconstrutiva, de Giovanna Martins. Neste exercício de fruição, ela experimenta atribuir sentidos ao que vê, mas também englobar neste exercício coimplicado, a continuidade do que tem aprendido como estudante de dança, através de sua fruição do trabalho Inverso Concreto (versão 1), do grupo dirigido por seu professor e orientador, Cláudio Lacerda.
Com este conjunto de ações e exercícios críticos, reafirmamos que o projeto de extensão Dramaturgias de Palcos & Plateias – nexos, olhares e exercícios críticos em dança (Versão 2) segue contribuindo de forma significativa para a formação de estudantes e para a comunidade da dança, não apenas no Recife, mas em diversas regiões do país. O projeto também incentiva a reflexão sobre os fazeres da dramaturgia e da crítica como campos possíveis de atuação artística e intelectual na dança contemporânea.
Ao trazer convidades de contextos diversos e com abordagens atuais sobre o tema, o projeto — em continuidade a outros desenvolvidos pela docente — buscou arejar o currículo do curso, conectando, na prática, saberes produzidos em diferentes ambientes de atuação no campo da dança com os espaços de interlocução da universidade.
As temáticas abordadas ao longo do percurso reforçaram a proposta central do projeto: evidenciar a indissociabilidade entre o fazer dramatúrgico nos processos criativos e a apreciação crítica das obras, ampliando sentidos e interpretações. Discutiu-se, ainda, a importância de determinadas perspectivas críticas para a formação de público; a urgência de deslocar o olhar da crítica de bases elitistas e etnocentradas, reconhecendo as potências das dramaturgias expandidas; e as lacunas e possibilidades da crítica e da dramaturgia em dança no contexto brasileiro.
Acreditamos que essas reflexões contribuem para fomentar um olhar mais crítico, sensível e descolonizante sobre os processos artísticos e as experiências estéticas diversas, conferindo visibilidade e relevância à pluralidade desses fazeres. As parcerias estabelecidas com o Quarta Parede e o Acervo Recordança, por sua vez, enriqueceram profundamente o projeto, ao possibilitar o acesso a pensamentos teóricos e artísticos construídos fora dos limites da academia. Também fomentaram a apreciação de espetáculos mediados por registros e debates que consideram as temporalidades entre obra e público como elementos fundamentais da crítica contemporânea — uma crítica que se reconfigura no tempo, nas formas e nas escutas.
Referências
ARAÚJO, Laura Castro; DIDONET, Candice. A dramaturgia expandida: um campo aberto de (in)definições). Revista Dramaturgia em foco, Petrolina-PE, v. 5, n. 1, p. 34-50, 2021.
ARRAIS, Joubert de Albuquerque. Por uma crítica coimplicada e itinerante: como e por onde se move a escrita da crítica de dança hoje? In: NORA, Sigrid; SANTOS, Carlos Alberto Pereira dos. Húmus 5. Caxias do Sul: [s.n.}, 2016.
KATZ, Helena. Crítica de dança em tempos de me, Myself and I. n: NORA, Sigrid; SANTOS, Carlos Alberto Pereira dos. Húmus 5. Caxias do Sul: [s.n.}, 2016.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PESSOA, Patrick. Dramaturgias da crítica. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.