Entrevista – Victor Di Marco | Do marear e hackear os desejos

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Imagem – Ma Villa Real
O Festival Acessa BH 2025 celebra a cultura DEF com uma programação potente, plural e acessível, reunindo artistas de diversas regiões do Brasil e do Reino Unido. Entre os destaques está Azul Marítimo, primeiro solo teatral do ator e cineasta Victor Di Marco, que transforma os movimentos involuntários do próprio corpo em linguagem cênica, afetiva e poética.
Dirigido por Jéssica Teixeira, o espetáculo traça um paralelo entre o corpo e o mar: gestos erráticos como ondas, carne como paisagem em transformação, intimidade que pulsa entre erotismo e fragilidade. Na entrevista aa Quarta Parede, Victor fala sobre esse processo de descoberta, a parceria com Jéssica, os atravessamentos entre teatro e cinema, e os limites como margens em movimento.
A conversa também aborda Zagêro, curta-metragem dirigido por Victor em parceria com Márcio Picoli, que será exibido no festival. O filme tensiona a estrutura dos documentários e desafia o imaginário capacitista com humor ácido e crítica feroz ao sistema manicomial, construído por uma equipe formada exclusivamente por pessoas com deficiência.
Em Azul Marítimo, você estabelece um paralelo entre os movimentos involuntários do mar e do seu próprio corpo. Como esse gesto de tornar o corpo território de navegação surgiu no processo criativo?
Azul Marítimo nasceu de uma pesquisa que eu sempre tive vontade de realizar, de buscar novas técnicas e formas de se encenar. Por isso fez muito sentido chamar a Jéssica Teixeira. Quando ela chegou ao projeto, começamos os ensaios e, com eles, o processo.
Jéssica disse, desde o início, que a palavra “controle” estava proibida. A partir disso, fui descobrindo meu corpo em cena. Eu vinha de uma formação como ator bastante aprisionada, e Azul Marítimo foi, e ainda está sendo, um divisor de águas tanto na minha trajetória profissional quanto na vida pessoal.
A condução de Jéssica fez toda a diferença para que eu entendesse como meu corpo poderia se transformar em linguagem dentro do teatro.
Você tem experiência como cineasta e ator no cinema, e Azul Marítimo é seu primeiro solo teatral. Quais foram os desejos e desafios que encontrou nesse processo?
Acho que o principal desafio foi me permitir ser o ator que eu sempre quis ser nos palcos. Embora existam diferenças entre atuar para a câmera e para a plateia, são dispositivos que me atravessam com muito desejo. E acho que consegui acessar isso por entender o teatro como desejo, não como dificuldade.
Minha experiência no audiovisual me deu bagagem para entender meus limites, e o teatro tem me dado a bagagem para entender que talvez eu não tenha tantos. E não no sentido de forçar um limite, mas de perceber que o limite é margem. E a margem já é mar. É onda. E foi assim que entendi o processo e o espetáculo: como desejo, não como desafio.
Ao longo da sua trajetória, você contou com colaboradores diversos na direção e co-direção dos seus trabalhos. Como foi o processo com Jéssica Teixeira, e quais aspectos da encenação mais te surpreenderam ou desafiaram?
Sempre acreditei na arte como potência política e nos micropoderes dentro dela. Tento ao máximo descentralizar processos. Meus filmes são co-dirigidos, porque acredito numa arte coletiva.
Quando chamei a Jéssica, sabia que esse encontro seria sobre troca de vida, de experiências, de técnicas. Foi um processo simbiótico: a gente se aproximou como amigos, como artistas. E isso permitiu que Azul Marítimo se tornasse ao mesmo tempo singular e universal. A Jéssica falava muito sobre isso: a ideia de sair de si para poder alcançar o outro.
Azul Marítimo fala de mim, mas não para em mim. É um solo que reverbera outros corpos, outras histórias. E esse foi o maior ganho do processo: conseguir falar de si sem falar só de si.
Em Zagêro, também na programação do Acessa BH, você assume direção, roteiro e atuação, colocando seu personagem Ian em confronto direto com o espectador, o sistema manicomial e o próprio cinema. Como foi estruturar uma obra que mescla sátira, autobiografia e crítica?
Zagêro não é autobiográfico. O que ele carrega de mim talvez seja um desejo compartilhado com o personagem, mas é uma obra 100% ficcional. Ele surgiu de um encontro meu com o Márcio Picoli e outros artistas com deficiência, durante o Festival de Cinema de Gramado em 2023. A gente se encontrou numa festa, por acaso, e percebemos que havia feridas comuns, incômodos semelhantes. Eu já tinha uma ideia inicial, mas ela foi se transformando a partir dessas trocas.
Todas as cabeças de equipe em Zagêro são de pessoas com deficiência. Cada uma teve um papel fundamental e o filme virou um gesto de invasão de imaginário. E, para mim, foi muito prazeroso descobrir que eu podia usar o humor (até a comédia) para falar de dor. A obra tem momentos didáticos, sim, mas o didatismo ali é usado como linguagem. E fico muito feliz com o resultado, além de chegar à final do Grande Otelo neste ano foi uma conquista simbólica importante.
Entre teatro e cinema, seu trabalho recusa a normatividade a partir do gesto de falar sobre corpo, sexo e sexualidade. Como essas escolhas se refletem também nas opções estéticas que você faz?
Eu sempre me coloco, como pessoa pública e artista, como alguém com desejo. Com tesão pela vida, pelas pessoas, pelo corpo. Acredito que essa seja uma das formas mais eficazes de hackear os imaginários. Quando me coloco como alguém com vaidade, com pulsão sexual, isso já comunica muita coisa, sem precisar dizer mais nada. Investigo esse lugar nos meus trabalhos, porque acredito que o desejo revela muito sobre quem somos como indivíduos e como sociedade.
Sou um entusiasta da psicanálise, e acho que a maneira como desejamos diz muito sobre o que nos atravessa. Uso o erotismo nas cenas não como provocação vazia, mas como ponto de tensão. Quero entender o que incomoda, o que alivia, o que faz rir ou retesa o espectador quando me vê dizendo ou fazendo algo em cena com esse corpo que é meu, mas também é de muitos. Por isso, uso essa ferramenta com muita intenção.












