Ao Traviarcado | Crítica – O Evangelho Segundo Vera Cruz
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Imagem – Divulgação
Por Rita Luna
O Evangelho Segundo Vera Cruz é um testemunho que ironiza e coloca seus algozes em papéis de subalternidade. A inferioridade deles é tanta que suas caricaturas não se projetam para além das funções que exercem. Seus nomes reais, no fim das contas, pouco importam. Eles se projetam aos montes em diversos lugares do país. A elucidação das experiências compartilhadas por Renata Carvalho, no episódio de censura ao seu espetáculo, ocorrido em 2018, reafirmam um manifesto legítimo por liberdade, um conceito tão deturpado que, ainda hoje, necessitamos urgentemente retomar como palavra símbolo de transgressão progressista.
A peça de encenação que conflui ficção e realidade, protagonizada por pessoas trans e LGBTQIA+, reafirma reivindicações legítimas de existência para as/os corpas/os que não são convidados a sentar à mesa, como afirma Sara Ahmed, quando, no seu texto Estraga Prazeres Feministas (e outras sujeitas voluntariosas) vai definir quem são os dissidentes que tanto incomodam a branquitude, a heteronormatividade e a cisnormatividade.
Assisti à gravação do espetáculo no fim do ano de 2022 e a apresentação virtual em pequenos quadros do Zoom desperta a sensação de clausura e restringimento da quarentena e, em paralelo, desde o início sou afetada pelo termo censura, palavra definidora máxima da sensação de limitação. Durante suas uma hora e quinze minutos, a peça questiona a realidade cerceadora e ditatorial, por vezes normalizada, que pessoas dissidentes vivem todos os dias.
Através dos personagens Chico e Joe, interpretados por Rodrigo Cavalcante e Dante Oliver, observamos a união e dissonância de uma casal gay, um homem cis e um homem trans. Estamos inseridos nos conflitos, descompassos e nos diferentes pontos de vista entre eles, tanto em relação ao trabalho quanto às projeções de futuro. Joe, como observamos nas cenas, está muito mais disposto a tomar atitudes e ações práticas, enquanto Chico vive uma angústia no campo do mental, sempre projetando uma tragédia.
Após a apresentação do casal, nos encontramos com o descontrole do Prefeito (interpretado por Jailton Junior), representante máximo da voz do povo de Vera Cruz, onde se passa a história, contra a chegada da artista ELA. No cenário que mimetiza uma rádio, luzes azul e rosa piscam e se refletem na parede. Azul e rosa, cores que foram tomadas por como sendo demarcadores da diferença de gênero, entram em colapso enquanto intervenções de comentários zombeteiros atiçam o prefeito.
Outros momentos cômicos vão se repetindo durante o espetáculo, trazendo dinamismo à obra. Um deles é a representação da disputa política entre o Prefeito e o Governador em relação a apresentação da peça O evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, onde os atores passam a interpretar em coro os políticos e os espectadores. Há, ainda, menção aos jogos de poder através da propagação de fake news. Outras cenas repetem tal dispositivo e o humor dà conta de desmantelar o resultado da permissividade que homens cis/hetero angariaram durante séculos no campo do social, político e jurídico, colocando o discurso e as instituições comandadas por eles no campo do ridículo.
Uma música delicada anuncia a chegada da “heroína” da história, Ela, que é recebida por Joe e Chico. Na cena, a personagem relembra a realidade enfrentada por artistas trans. Ela se contenta com a pouca ajuda que recebe, afirma que está acostumada com pouco luxo, com a violência e a perseguição. “Eu não lembro mais como é me sentir normal”, diz Ela, ao falar sobre o vício em remédios para dormir do qual é dependente. Interpretada por Joe Andrade, Ela protagoniza uma cena impactante, onde, vestida com uma lingerie, faz uma performance sensual enquanto repete a frase “Mulher, mulher, mulher. É sempre uma mulher!”.
Ao mesmo tempo que reforça o papel de gênero atribuído ao feminino, é um gesto de afirmação da própria personagem e atriz. Envolvida com seu lugar de fala e disposta a lutar por ele, ela diz com eloquência: “Chega de transfake”. Numa interação direta com a plateia, Joe coloca o desconforto no colo de quem se beneficia com a invisibilidade de sua identidade. Apresenta o seu lado da história, aspectos de sua personalidade e gostos pessoais. Desconstruindo imaginários através da palavra e do gesto, ela se veste e retira a maquiagem que utilizava no início do ato.
Para tê-la como atriz, com um corpo trans em cena, Joe afirma que é preciso que artistas lidem com as violências que ela sofre e os diversos contextos que a atravessa. A cadeia da produção artística não se limita apenas à presença física no palco, tela ou produto final. Ela envolve muito mais, para o desespero de quem acredita que os investimentos na cultura são supérfluos. As/os artistas não são apenas totens que entram e saem de cena. São trabalhadores da cultura, comem, bebem, dormem e pagam contas.
As dificuldades apresentadas por Joe sobre os percalços que uma artista trans enfrenta é a forma como o espetáculo comunica a importância da remuneração e ea representatividade desses profissionais no mundo das artes. A permissividade do violento discurso de que “não existem artistas transexuais” ou “que artistas trans não são bons” reflete uma tendência conservadora no meio artístico, que beneficia a proteção de um status quo de corpos normativos e, consequentemente, viabiliza violência contra artistas LGBTQIA+. Se a arte e o teatro são espaços de liberdade, por quê artistas trans precisam se reafirmar enquanto profissionais? Por quê espectadores não vão assistir aos trabalhos de pessoas trans?
No ato final do espetáculo, ELA narra a violenta repressão do episódio sofrido, com a destruição do cenário de sua peça e o assédio da polícia. Sobre sua cabeça, ela cobre um manto e recita uma oração, iluminada pelas luzes dos que não cederam a tentativa de censura. Sua missão nas terras de Vera Cruz é encerrada e sua palavra ecoa diane daqueles que tiveram a oportunidade de vê-la e também a protegeram. Nos últimos momentos da peça, assistimos a um vídeo onde há diversos recortes de imagem de arquivo, animações e reportagens, numa tentativa de elaboração de futuro. É 2022. Os algozes de ELA perderam seus poderes para o Traviarcado, uma nova ordem que substitui a república, onde todas as minorias se unem para governar. É notório que quando a ordem é invertida causa estranheza. Mas, a utopia poderá nos salvar dessa distópica realidade apresentada pela peça do Teatro de Fronteira.