Ser mulher e despir-se
Silvia Góes
Dançarina e Pesquisadora do Corpo (Coletivo Lugar Comum)
O tecer dessa minha nudez em cena se deu num bordado de eventos dentro e fora daqui. Tive uma chance extravagante de lidar com o meu corpo nu, acordada e refletida numa dança com o tempo e envolvendo muita gente. A minha primeira experiência foi com OSSevaO, uma criação que desde o princípio se pretendia nua, mas demorou para descolonizar-se. Estávamos trabalhando solos para compor uma noite do Coletivo Lugar Comum, o que depois se tornou o espetáculo Corpos Compartilhados… OSSevaO brotava em criação como uma troca de pele, um renascimento, era o meu primeiro trabalho cênico e queria com ele um sussurro capaz de através da pele doada, entregar ao outro esse tecido poético que me envolve e me injeta vida nas veias para atravessar o caos do mundo.
Engraçado, arranquei muitas vezes a pele (usando para isso cola branca sobre o corpo todo, o que sempre exigia um tempo longo de preparação e imobilidade para ficar pronta para entrar) sem tirar a calcinha e o sutiã, essa pré-nudez ainda presa ao julgamento, incerta do seu exercício no mundo, ou pelo menos no mundo da cena. A inquietação, o que se passava comigo? Medo, timidez, vaidade, incapacidade de resposta a um machismo dominante que nos açoita de repente como coisa de dentro às vezes? Resumindo o desassossego, decidi um dia que da próxima vez não usaria sutiã. Era como se fosse um grito!
Foi quando aprovamos a circulação de Corpos Compartilhados em espaços populares na Região Metropolitana do Recife, em centros comunitários, escolas públicas… Nunca, em nenhuma condição, projetei qualquer intervenção policial nesse trabalho, exercitaria apenas o cuidado de deixar claro nos cartazes o limite de idade, exigência legal conversada e cumprida com a concordância dos outros artistas do Coletivo junto comigo no projeto.
A nudez passava a ocupar uma ordem de importância no debate que ultrapassava a intenção da obra e precisava ser evidenciada assim já nos cartazes espalhados? Era a noite, a primeira, de uma série que viria em cantos distintos de olhares vastos… Esquecemos de avisar que não era permitido fotografar e no momento em que a roupa de papel coberta de poemas meus e alheios ia se rasgando, mostrando a pele ainda escrita antes de ser arrancada também, no centro dos seios nus um ‘Sim’ que foi para sempre a palavra a ocupar esse espaço do corpo, o público quis e tirou um monte de fotografias. Agora todas aquelas pessoas tinham imagens dos meus seios nus, o que isso significava afinal? O retorno que recebi ao final dessa apresentação de duas senhoras de saias abaixo dos joelhos, de tecido grosso e camisas de botões, me ajudava a refletir… “Obrigada por mostrar a gente que o corpo é sagrado!”, foi isso que disseram… Aquilo me emocionou e moveu.
O corpo, eis que é disso que participo, dessa ideia crua que nascemos e morremos nus antes de qualquer roupa que se use aqui, herança indígena entranhada na cor e textura da minha pele, vontade de gritar a liberdade de estar sem razão para ocultar-se… Desespero poético de dar-se, fazendo do corpo esse instrumento que nos une e nos faz tão semelhantes entre nós. Bicho-gente que somos entre os deuses e deusas que trazemos por dentro.
OSSevaO é o espelhamento de OaveSSO, dentro da palavra, nesse jogo de minúsculas e maiúsculas, Eva e Osso… Eva, a primeira mulher, ela, que por sua nudez e liberdade em morder o prazer de estar, vem sendo apedrejada há tantas gerações cristãs… Ser mulher e despir-se porque simplesmente assim é, pelo direito de ser mulher e despir-se… Quanta coisa entranhada!
Em 19 de dezembro de 2015, mais de quatro anos depois da estreia, graças ao convite dos atores e produtores Asaias Rodrigues (Zaza) e Júnior Aguiar para integrar a programação do Festival Cova da Onça, em meio à natureza, céu aberto, árvores, vento, onde era só chegar e ver, OSSevaO foi finalmente encenado pela primeira vez em total nudez, do começo ao fim… Bonita e polêmica, a troca trouxe reflexões à comunidade de Camaragibe, sobre o nu, a arte, a vida, a liberdade e a mulher no mundo, numa roda de conversa que sucedeu o festival, incluindo um pai emocionado que colocou claramente o tamanho da contradição aberta em seu peito quando disse que ao mesmo tempo que se sentia tocado e compreendia como era importante estar ali ao lado da filha, também gostaria no profundo de si que sua filha não tivesse visto ‘aquilo’. Um pai em crise mansa se repensava junto.
Daquele dia em diante, eles teriam que lidar com a ideia desse corpo que em poesia tenta lutar por seu direito mais simples de existir despido e cru sendo mulher no caos do mundo. A filha, ainda lembro o sorriso em seu rosto como o agradecimento silencioso pelo encontro. A bênção imensa de tocar-nos e de sermos corpo aqui e agora é a minha maior fé na existência, e é disso que vivo, sem isso morro… Lutarei assim, desnuda e descalça, porque assim sinto a voz que chamo, em nenhuma condição, projetarei qualquer intervenção policial nesse trabalho… OSSevaO é uma performance que fala sobre a poesia de oferecer o corpo como dádiva na troca da vida… O que isso tem a ver com a violência policial e política que vivemos? Hoje, agora, apenas afirmo, lutarei assim, desnuda e descalça, até que a morte nos separe na transmutação constante do que sendo vida se faz necessário estar-se…