Crítica – A Visita | Inconformismo marca encenação rapsódica do Arte-Em-Cena
Imagens – Marcos Nascimento
Por Vinícius Vieira
Jornalista, Ator e Professor
O Teatro Capiba vestiu-se de lembranças nesta terça (12) e quarta (13), com o espetáculo A Visita, do grupo Arte-Em-Cena, de Caruaru. As memórias eram da personagem António que, ao trazer à tona ritos, canções e a complexa simplicidade da vida interiorana, convocou o público para um lugar de saudade, erigido sob o imaginário do homem sertanejo nordestino, embora com ecos de amplitude universal. Para construir uma linha dialógica de regresso, a encenação privilegiou a palavra.
O discurso proferido no espetáculo nos fala sobre a impossibilidade de estarmos sós. Como seres sociais, temos a tendência de buscar o outro, ainda que esse alguém esteja acessível apenas pela materialidade onírica. É nesse sentido que António, defendido pelo ator Severino Florêncio, se move em cena, mostrando-nos, nesse processo, múltiplos tempos e espaços de seu interior, um passado longínquo, agora, inabitado. A direção de Nildo Garbo – também responsável pelos figurinos, adereço e maquiagem -, coloca o ator como um rapsodo em uma interpretação anti-ilusionista, valendo-se da utilização de diversos recursos para a reconstituição de situações já ocorridas. Também há uma intertextualidade dos modelos épico e dramático para conceber a estrutura narrativa posta em cena.
António nos apresenta as figuras preciosas da sua vida e costumes que parecem não mais fazer sentido em tempos pós-modernos. Para realizar essa dinâmica, o intérprete dialoga com figuras imaginárias. O artista nos mostrou potencialidade nas várias nuances, inflexões, entonações durante as conversas inscritas entre o presente e o passado. No entanto, alguns registros vocais poderiam receber maior cuidado pois dificultaram a dicção e, consequentemente, a compreensão do que foi dito. Os elementos cenográficos, um trilho que corta o palco de um canto a outro, uma cruz à esquerda, uma peneira, um pilão e uma pequena mesa no centro com uma sanfona em cima, além de outros materiais espalhados no chão, eram vestígios sígnicos os quais deveriam ser completados pelo público com uso da imaginação. Os objetos foram manipulados pelo ator, mudaram de lugar e, por vezes, adquiriram novos sentidos.
A teatralidade foi bastante explorada: uma colcha florida transformou-se em lona de circo e a junção da cruz com três aros de bicicleta formou um projetor a rodar um filme na “máquina de fazer gente”: o cinema. Tudo composto de uma simplicidade encantadora. Entretanto, adaptar a cenografia ao palco do Capiba tornou estranha a localização do trem, que precisou ser colocado no fundo da cena, ficando longe dos trilhos e dificultando a marcação criada. O figurino, um sobretudo e uma calça cinza, mostrou-se funcional e se desfez, nas mangas, para revelar a condição de Antônio, que também se perde sem as suas referências (seu pai, irmãos, primos… E até a tia Maria). Esse traje deu lugar a outro, dessa vez, um avental. Nesse momento, os papéis de gênero são postos em questão ao revelar as performances femininas e masculinas como sociais, sem naturalizá-las. Abordar essa temática é emergente para que possamos desconstruir discursos balizadores das práticas de violência contra aqueles e aquelas que – assim como a personagem central da obra – não seguem o padrão ou, como o próprio António enfatiza, “não segue a boiada”.
A montagem também dialoga com as angústias promovidas pelo impacto da globalização na vida do sujeito, no qual perde suas referências locais e tem as suas necessidades pessoais superadas pela lógica capitalista. Talvez a personagem seja o alter ego do espanhol Moncho Rodrigues, que assina a dramaturgia da peça. Cidadão do mundo, Rodrigues externa por meio de António um mal estar decorrente de uma identidade fragmentada pela ordem provisória, instável das coisas. Ele escreve como quem sente na pele os dissabores e os amores de fincar os pés no entrelugar. Ao encenar A visita, o grupo Arte-Em-Cena faz um teatro com sede de compreender as apreensões do nosso tempo e não apenas com finalidade comercial. É uma necessidade irrefreável de evidenciar o inconformismo perante as dinâmicas de poder vigente.
Seria essa interação, essa vontade de intervir no mundo, provocar um estalo no espectador, que faz um coletivo perdurar por longos anos? Sem dúvida, o espetáculo foi uma escolha assertiva para comemorar os quase 30 anos de atividade da companhia no município de Caruaru, interior Pernambucano.