Crítica – Das Dores | Entre Sapatos e Cicatrizes

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Imagem – Divulgação
Por Aline Maria Barros Carneiro e Talita Paloma de Lima Sacramento
O projeto Entre Brinquedos e Sapatos deu origem à performance-instalação Das Dores, criação da Compassos Cia. de Dança, companhia fundada em 1990 pelo bailarino e ator Raimundo Branco. A apresentação aconteceu em 16 de outubro de 2025, às 19h, na Sala de Dança Ana Regina, no Centro de Artes e Comunicação (CAC/UFPE), com incentivo da LPG-PE/2023 e apoio cultural da Universidade Federal de Pernambuco. Na ocasião, a performance foi interpretada por Sandra Rino, embora também seja performada, em outras ocasiões, por Patrícia Costa.
Inspirada na personagem Dorotéia, de Nelson Rodrigues — mulher atravessada pela dor, pelo silêncio e pela tentativa de libertação —, Das Dores transforma o espaço em território de memória e denúncia. Em cena, mais de uma centena de pares de sapatos e sandálias espalham-se pelo chão, convertendo-se em símbolos de poder, dominação, consumo e lembrança. A partir desses objetos, a performance convoca uma reflexão urgente sobre a violência contra a mulher e o feminicídio.
Essa urgência é reforçada pelos números: em 2024, o canal Ligue 180 registrou 31.030 atendimentos em Pernambuco, um aumento de 40,6% em relação a 2023 e 4.609 denúncias, crescimento de 16,3%. Entre janeiro e maio de 2024, foram 22.649 ocorrências de violência doméstica, o que representa uma mulher vítima a cada dez minutos no estado. Nesse contexto, os sapatos em cena deixam de ser meros objetos cênicos e tornam-se vestígios dos passos interrompidos de tantas mulheres.
A narrativa de Das Dores se constrói a partir da entrada da intérprete Sandra Rino, que surge em cena com uma bolsa de feira com rodinhas. Ela despeja no chão os sapatos contidos na bolsa e escolhe um sapato infantil, tratando-o como um bebê de colo, gesto que se desdobra em uma dança breve, íntima, de cuidado e perda. Em seguida, escolhe outro sapato, agora de adulto, e sai caminhando, como quem atravessa uma nova fase da vida. Ao longo da performance, vai escolhendo novos pares, e com cada um estabelece uma relação cênica diferente. O gesto da escolha, que se repete e se transforma, sugere um ciclo contínuo de experiências e dores que se refazem.
O momento mais impactante da cena acontece quando a intérprete começa a parear os sapatos, organizando-os como quem constrói um memorial silencioso. A cada par, ela pronuncia nomes femininos, incluindo o seu próprio, evocando vítimas de violência. Enquanto isso, o intérprete de Libras, que também integra a performance, traça linhas vermelhas de batom sobre o corpo, nos braços, abdômen e pescoço e, em seguida, as oculta. Suas mãos, agora tingidas de vermelho, são recolhidas aos bolsos, num gesto que sugere o agressor que fere, apaga os rastros e silencia as provas.
Das Dores insere-se, assim, num contexto pernambucano ainda atravessado pela desigualdade e pela violência de gênero, transformando o corpo da intérprete em território de resistência. Os sapatos infantis, esportivos, masculinos e femininos expandem o sentido da cena, transcendendo o feminino individual e evocando uma dor coletiva, universal.
A Compassos Cia. de Dança possui uma trajetória sólida na cena recifense, marcada pelo diálogo entre a dança contemporânea, o teatro e a cultura popular, desde seus primeiros trabalhos, como Ilustração e Luzeiro (1990), Portas (1994), Pássaros (1997), Nó’s e Três Aberturas Iluminadas (1997), Oratorium (1999) premiado pela Apacepe e reconhecido pela crítica, como um divisor de águas na trajetória da Compassos por aprofundar o diálogo entre dança e teatro.
Durante os anos 2000, a companhia ampliou suas investigações poéticas e sociais, com os trabalhos Em Anexo (2005), Eu Sinto a Terra Mover-se… (2006), Des-encaminhado e Sobre um Paroquiano (2007), inspirada no texto Um Paroquiano Inevitável de Hermilo Borba Filho, que circulou por várias cidades do interior de Pernambuco, Igual sem Igual (2008), Três Mulheres e um Bordado de Sol (2014), um espetáculo que entrelaça as trajetórias e as sensibilidades de Clarice Lispector, Edith Piaf e Frida Kahlo, O Tempo Passa e O que Cabe em Mim (2017), Um Pano que Limpa o Tempo (2023) e, agora, Das Dores (2025).
Em Das Dores, essa tradição de criar a partir das urgências do real se renova. Em conversa com Sandra Rino, intérprete-criadora da performance, compreende-se que o processo emergiu de experiências pessoais e de relatos de mulheres que viveram relacionamentos abusivos. A artista descreve a obra como um organismo vivo: a cada apresentação, os sapatos mudam de lugar, os gestos se reconfiguram e os sentidos se reinventam. Essa impermanência espelha a própria condição da dor e da resistência feminina — sempre em movimento, sempre por refazer.











