Crítica – Desencaixe | Você também está na mira
Imagem – Divulgação
Lucas Emanuel
Licenciando em Dança (UFPE)
Incomodar: verbo transitivo direto e intransitivo e pronominal; causar (a) ou sentir incômodo, físico ou não; indispor, importunar, estorvar, perturbar.
Desencaixe é um espetáculo do Coletivo Mosaico, concebido e performado por Yuri Silva, com direção de Bárbara Espíndola, ambos estudantes da Universidade Federal de Pernambuco. A iluminação foi assinada por Alírio Assunção e Zé Iná é responsável pela sonoplastia. O trabalho foi apresentado apresentado na XII Semana de Cênicas (UFPE), que tinha o tema Teatro, Democracia e Censura nesta edição. Na sinopse do projeto, afirma-se que este é um “trabalho de dança e teatro que, além de falar sobre as vivências negras […], [e] traz a capoeira em sua estrutura, abordando a visão ritualística ancestral. O intérprete questiona o racismo, pondo suas inquietações em movimento”.
Tudo em Desencaixe vibra, pulsa, cutuca, faz tremer, incomoda.
De uma forma afetiva, eu presenciei a constante do corpo de Yuri, muito de perto. Somos da mesma turma do Curso de Licenciatura em Dança e, durante esses últimos quatro anos, é possível notar as novas roupagens que o corpo dele ganhou. Ele se dedica às danças urbanas, uma linha da dança que é particular, muito bem codificada. Este termo abrange um conceito muito amplo (e tem vertentes como o break dance, popping, looking, etc) mas que tem em comum a resistência e força física, a contração e expansão de partes isoladas do corpo e o equilíbio. Em Desencaixe, os movimentos se ressignificam, ainda que dentro de uma estética contemporânea, foge dos padrões e formas eurocêntricas de se fazer dança: pelo contrário, é ancestral; é local de pertencimento; de regionalidade; é acolhedor. Esse acolhimento é um alerta, fazendo o espectador não relaxar em nenhum momento. É como um ataque que não se sabe de onde vem: ele só vem e quando atinge o alvo, dilacera-o, preenche. Não existe previsibilidade. O público é surpreendido a todo momento. O burburinho fica no ar.
A dança, em linhas gerais, passa pela subjetividade de uma forma muito orgânica. É uma linguagem do corpo. Fica à critério do interprete objetivar ou não a obra. Se o teatro possui, majoritariamente, a fala como mecanismo de comunicação, a dança perpassa por uma linguagem que esta estritamente ligada ao corpo. É nele e por ele que o diálogo com o público é construído. Ambas, por sua vez, trabalham muitas vezes com o que não é visível. A união dessas duas linguagens ressignifica a obra, trazendo uma nova camada. Em Desencaixe, Yuri faz isso quando, em alguns momentos, o texto do corpo coloca em dúvida, se conecta com o falado, e fica também suspenso se aquelas histórias contadas foram fatos ocorridos na história de vida dele. Ele passa uma ideia de verdade… Tanto pelo corpo quanto pela fala. Entrecruzando as linguagens, ele provoca questões: algumas são fáceis de decifrar, outras são o sentir de cada pessoa.
Tudo em Desencaixe incomoda: em nenhum momento o público relaxa. Em uma cena específica, em que só era possível ver o que Yuri estava fazendo as primeiras fileiras, virou um murmúrio de corpos querendo saber a todo custo o que ele estava fazendo, o público estava sempre em busca de mais. A tensão paira desde o momento que o público entra até a última cena. Eu sentir como se tivesse prendido a respiração e só voltasse a respirar normalmente quando o espetáculo acabou e as luzes se acenderam. A pirotecnia incomodava os olhos. A luz se apresentava como um mosaico. Como o próprio Yuri falou: a iluminação a todo tempo dançava com ele. O som fazia com que eu me sentisse em perigo, mesmo no conforto da poltrona. Juntando esses elementos, o espetáculo me transportou para um estado quase de transe, de hipnose. Voltei para casa com o incomodo que permanecia nos olhos. O som ecoava em meus ouvidos. Mesmo assim, ainda era uma sincronia perfeita.
Uma das questões sociais que o espetáculo aborda é o racismo. Isso me afeta, principalmente, quando as cenas me lembram fatos que já presenciei na favela onde moro. Ele faz de uma forma muito singela, mas sem amolecimento, Yuri narra, expõe, pixa e grita sobre o que a juventude negra sofre diariamente. Mesmo sem saber se os fatos da história contada, em Desencaixe, são ou não da vida dele, as histórias contam sobre fatos que se repetem: uma criança negra ter o pai assassinado; mulheres pretas (faveladas) ser arrimo de família. E, logo associamos, talvez que esses poderiam ser fatos da história de Yuri porque é um corpo negro que está em cena. A sociedade (e digo sociedade para generalizar mesmo) está tão acostumada a rotular o que é o negro que, ao ver essas questões, penso que é um dever de todos discutir sobre o racismo, sempre, até que isso não se repita mais.
Desencaixe é um grito ecoado. Um nó na garganta. É como uma carne dura que desce rasgando. Todos os alvos são atingidos com sucesso. É completo estado de alerta. Em tempos de fragilidade, como a que estamos passando no nosso país, Yuri desencaixa e reordena todos os seus pensamentos. Yuri é gigante. O corpo dele pulsa, dança. Pulsa arte. Desencaixe é sobre negritude. Negritude que não se cala. Que está em busca de resposta. Que está cansada do comodismo da cabeça baixa. De saber que os seus estão morrendo aos montes todos os dias. A mensagem está posta, é escancarada. O corpo negro presente. Vive. Pulsa. Resiste.